A recente carta encíclica do Papa Francisco – "Laudato Si'" – é simultaneamente um apelo à inteligência coletiva, um incentivo à reconsideração do atual modelo de sociedade e um estímulo para agir. Dirigida ao mundo e não apenas aos católicos, e independentemente das suas dimensões teológicas, filosóficas e doutrinárias, esta encíclica aborda de modo surpreendente e decisivo todos os debates do campo ambiental.
Desde o 2º Pós-Guerra e ao longo das últimas décadas habituámo-nos a ver progredir o tema do ambiente: começando pela criação da FAO, do Clube de Roma e da ONU; passando depois pelas Conferências de Estocolmo em 1972, Rio92 e Rio+20; pelo Protocolo de Quioto e pelo IPCC (International Panel for Climate Change); por personalidades como Gro Brundtland, Al Gore, Naomi Klein ou pelas várias Conferências do Clima (COP). Contudo, a questão ambiental não tinha ainda alcançado uma expressão tão veemente e clara como a que o Papa lhe deu agora.
O que será que torna tão evidente uma verdade já conhecida, agora que ela aparece dita pelo Papa? O que será que esta extraordinária encíclica traz a mais até nós? Acima de tudo põe-nos a pensar com espantosa nitidez e uma simplicidade desarmante em assuntos altamente complexos e tensos, trazendo-nos, por isso, uma nova esperança e sem dúvida um novo caminho.
Desde logo, numa visão integrada, articula as questões do ambiente às das desigualdades, mostrando que não é possível pensar umas sem as outras pois o ciclo é vicioso: a degradação dos recursos vai de par com a degradação social e humana. E aponta essa verdade inconveniente que há muito devia estar assumida e resolvida, que é a da inaceitável pobreza espalhada pelo mundo inteiro e da enorme responsabilidade política a todas as escalas.
Depois, retomando uma expressão feliz de Gorbachov, o Papa Francisco remete-nos para a noção da «casa comum» que todos partilhamos, sublinhando a extrema interdependência em que vivemos, mostrando como a ecologia tem que ser apreendida de forma integral e está profundamente embrenhada na nossa vida quotidiana.
Indica depois novas formas e fórmulas para repensar a economia e o progresso, desafiando-nos na «busca de um desenvolvimento que seja sustentável», pois sabemos que «as coisas podem mudar» mas, para isso, é preciso «debates sinceros e honestos» e «transparência nos processos decisórios».
Baseado em informação científica rigorosa e atual, traça o retrato do gravíssimo estado em que se encontra esta nossa maltratada «casa comum», fazendo apelo a uma tomada de consciência.
E está lá tudo: o erro brutal de destruir a biodiversidade, que é a base de alimentos e medicamentos; está lá o desacordo face à privatização da água, recurso escasso e vital, que «não é uma mercadoria sujeita às leis do mercado», mas um direito humano sem o qual outros direitos não se poderão exercer.
Está o abuso da lógica cega das grandes corporações e da sua ideologia liberal; está a obliteração da irresponsabilidade social e ambiental de muitas multinacionais que abusam, poluem e degradam sobretudo os países pobres; está lá a crítica à atual subjugação da Política à finança; e está a corrupção que nos corrói.
Estão os oceanos e a necessidade de alterar os sistemas de governança dos bem comuns globais. Está a crítica à substituição da flora e floresta autóctones pelas monoculturas; está a desumanização das "monoculturas" do betão em subúrbios abjetos.
Estão os OGM com os riscos à sujeição dos agricultores face aos oligopólios das sementes de curta duração, apelando a que se façam pesquisas verdadeiramente independentes nesta matéria.
Estão obviamente as alterações climáticas - «mudanças inauditas de uma destruição sem precedentes» - se a atual tendência se mantiver e continuarmos tão dependentes dos combustíveis fosseis. Aliás, a questão nuclear, é que o Papa conseguiu formular a relação entre justiça e carbono que é decisiva na resposta aos efeitos das alterações climáticas. Evidenciando a dívida dos países do Norte (pelo excesso das sua emissões fosseis) aos países mais pobres do Sul que agora mais sofrem as consequências das alterações climáticas, já não será possível negar o tão óbvio compromisso humano e natural que, nos dias de hoje, une carbono e justiça na mesma equação de vida e de morte onde todos estamos envolvidos. Esta questão é tanto mais importante, quanto a encíclica foi publicada uns meses antes da grande Conferência do Clima - COP 21 – que se realizará em Paris no início de dezembro de 2015 e onde, sentados à mesma mesa, todos os países decidirão não tanto o nosso futuro comum, como se haverá ou não algum futuro para todos.
Estão ainda alertas vigorosos para os excessos do consumismo e suas consequências a vários níveis, o que nos lembra o apelo de Mahatma Gandhi: «vivam de forma mais simples para que outros possam simplesmente viver». Mas, na encíclica, encontramos também a tecnologia e a alegria; os exemplos positivos que se devem multiplicar; as energias limpas; a importância crucial da cultura e do diálogo permanente com a ciência, e a necessidade de construção de lideranças que tracem novos caminhos.
Está, em suma, um veemente apelo à "Humanidade" do ser humano e uma condenação clara de coisas que nos vêm sendo impingidas como modelo único de sucesso e competitividade – sempre glorificando o fetiche do indivíduo e virando a cara ao coletivo humano e à magnífica beleza do mundo que tais ‘glórias’ afinal destroem.
A encíclica dá-nos, por fim, várias pistas de orientação para agir – do individual e local, ao coletivo e global. De forma muito clara e simples indica o caminho que se deve trilhar para decidir a nível internacional; apela ao diálogo para concretizar novas políticas nacionais e locais; insiste no desígnio de pôr a economia ao serviço dos povos e na imperiosa necessidade de outro estilo de vida no caminho da paz e da justiça. É preciso assumir a educação numa verdadeira aliança entre ambiente e humanidade na busca de uma simbiose duradoura que nos permita defender e cuidar da Terra para com ela viver em harmonia.
Não sabemos ainda quais os impactos desdobrados que o "efeito encíclica" está a gerar e irá ainda desencadear, mas sabemos que ela traz consigo não só a força das verdades que de modo tão simples diz a todos os povos, como a surpresa de as ver ditas num momento em que a espessura das crises e o endurecimento do mal parecem estar a ganhar terreno à esperança e à vida. Hoje, alerta o Papa Francisco, já ‘não há espaço para a globalização da indiferença’, nem o direito de deixar às gerações futuras tantas ‘ruínas, desertos e lixo’.
O "efeito encíclica" pode ser, como disse Edgar Morin, o «ato número 1 para uma nova civilização» que substitua o «bem estar» exclusivamente materialista pelo «bem viver» do autêntico desenvolvimento pessoal e comunitário.
Há que lê-la e meditá-la. Traz, sem dúvida, uma esperança inovadora.
Luísa Schmidt