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João Paulo II e a paz

João Paulo II e a paz

Imagem S. João Paulo II | D.R.

Os tempos que correm, nos atos que os compõem, desprezando «o sangue, o suor e as lágrimas» (relembramos a promessa de luta contra os fascismos feita por Churchill ao seu povo) com que se procurou manter um mínimo de decência de um viver digno de humanidade, não de um amontoado de escravos, são de guerra. Apenas os mais distraídos ou os mais estúpidos necessitariam das palavras do Papa Francisco para acordar para tal evidência.

Tais tempos necessitam de um esforço especial que permita anular a ação tendente a universalizar a guerra que vai minando topicamente o mundo.

Um contributo interessante para tal é o livro publicado pela Cáritas Portuguesa, da autoria de Francisco Piedade Vaz, intitulado João Paulo II. O compromisso pela paz.

Nesta obra, inteligente leitura dos fundamentos da paz feita por um militar de carreira, podemos encontrar, p. 70, a seguinte citação, retirada da «Mensagem do XXXIII Dia Mundial da paz: Paz na terra aos homens que Deus ama». Diz João Paulo II:

«Haverá paz na medida em que toda a humanidade for capaz de redescobrir a sua vocação primordial de ser uma única família, na qual a dignidade e os direitos das pessoas – de qualquer estado, raça ou religião – sejam afirmados como anteriores e predominantes relativamente a qualquer diferenciação e especificação».

A primeira nota a salientar é que, na sua posição racional radical, este texto assume-se não como um texto religioso sectário, mas como um texto de humanidade e para a humanidade. Não se dirige a católicos, apenas, mas a todos os seres humanos, como entidades racionais, não como entidades religiosas – se bem que algumas destas realidades, todas racionais, sejam racionais e religiosas. Uma realidade não exclui a outra; pelo contrário, percebe-se que o escopo do Papa é ser entendido racionalmente por entes racionais.



A teimosia em fazer da vida ética e política da cidade humana universal um permanente campo de batalha, negando a sua condição de vocação a família humana universal, significa a condenação a prazo da humanidade à aniquilação, ocorrida às suas próprias mãos



A paz é uma realidade racional, própria de e para entes racionais. Não é compatível com a realidade das bestas, isto é, de seres irracionais. Não é a estes últimos que João Paulo II se dirige. A besta nunca entenderá o sentido da paz. Esta é a razão principal de a paz ser tão difícil. A paz é antropologicamente difícil porque tem como obstáculo a bestialidade que teima em existir em certos seres humanos, incapazes de se afastar de uma dinâmica e cinética própria de seres predadores. A predação é própria das bestas. O que é próprio dos seres humanos, das pessoas, é a ação no sentido do bem-comum. Este elimina a guerra.

Sem prosopopeia: é a ação de todos os seres humanos no sentido do bem-comum que elimina a guerra.

Por tal, pode o Papa afirmar: «haverá paz na medida em que toda a humanidade for capaz de redescobrir a sua vocação primordial de ser uma única família». Os termos desta afirmação são de uma exatidão insuperável. Para que haja, mesmo, paz, tem de esta ser um esforço, um ato de «toda a humanidade». Esta ação implica a redescoberta da «vocação primordial de ser uma única família». A intuição é muito clara: como é que se pode construir a paz, sem que todos sejam por ela abrangidos? A quem deixar de fora? E quanto aos que inicialmente apostam na bestialidade da guerra, que destino mediato e final lhes dar?

O ostracismo? Para onde, num mundo que é único?; a aniquilação? Mas, então, pode construir-se a paz segundo a lógica da guerra?

Apenas como «família» pode a humanidade ser um ato integrado de pessoas universalmente em paz. Relativamente à paz, como em Sodoma e Gomorra, a cidade ou se salva como um todo ou não se salva. A teimosia em fazer da vida ética e política da cidade humana universal um permanente campo de batalha, negando a sua condição de vocação a família humana universal, significa a condenação a prazo da humanidade à aniquilação, ocorrida às suas próprias mãos.



Não é por se ser mais ou menos escuro, mais ou menos belo, mais ou menos rico, mais ou menos inteligente, que se deve ser sujeito e objeto de «mais ou menos direitos humanos»



Não se deve confundir o que é a constante transcendental tensão entre todos os constituintes do mundo com a guerra. A realidade mundana é uma realidade de movimento, de constante passagem de possibilidade a ato, numa dialética incessada, e, se cessada, tudo com ela cessará, pois este mundo, em sua imanência, nada mais é do que esta tensão resolvida em movimento.

A guerra não é esta tensão, mas a perversão da dialética compositiva da ordem numa relação tendencialmente caótica e finalmente caótica. A guerra é a relação que tem como fim a destruição de toda a possível relação. Sem este escopo, não há guerra. A guerra é a forma humana mais poderosa de contribuição para a entropia da coisa mundana. A guerra é o poema de justiça poética que nunca terá leitor.

A citação que apresentámos acima, termina com: « família, na qual a dignidade e os direitos das pessoas – de qualquer estado, raça ou religião – sejam afirmados como anteriores e predominantes relativamente a qualquer diferenciação e especificação».

A paz implica o sentido universal de uma humanidade que se constitua como uma verdadeira família, isto é, como uma comunidade de amor, em que apenas o bem de todos e de cada um prevaleça. Para tal, para que quer a dignidade quer os direitos das pessoas sejam respeitados, há que amar tais pessoas: é este amor que funda a dignidade como fruto de ação política e os direitos humanos como realidade prático-pragmática indefetível e universal. Sem tal amor, dignidade humana e direitos humanos não passam de hipócritas noções teóricas, instrumentos de domínio por efeito de adormecimento das consciências morais, beatificamente saciadas com a contemplação noética de perfeições nocionais e jurídicas sem presa real, sem eficácia.



Em termos cristãos, por maioria de razão, porque o cristão é esse que é o campeão do amor ou, então, não é cristão, o que sumariámos como «direito à paz», é algo de incontornável, que motiva a ação do cristão como ação de amor, de amor tendencialmente universal



O direito à paz, que implica tudo o que ficou exposto acima, obriga a que seja atual a realidade do bem-comum para todos, independentemente da sua pertença a «qualquer estado, raça ou religião». Obriga a que os seus direitos humanos, pessoais, irrevogáveis, «sejam afirmados como anteriores e predominantes relativamente a qualquer diferenciação e especificação».

Tal significa que todo o ser humano é sujeito e objeto de direitos, que antecedem quaisquer deveres, sobre os quais este se podem fundar, pois, sem direitos, não é possível haver sequer um qualquer ser a que se possa adjudicar deveres.

Tal significa que tais direitos são antropologicamente – porque ontologicamente – anteriores a qualquer «diferenciação ou especificação».

Laicamente, isto significa que todo o ser humano, como pessoa que é, tem direitos próprios inalienáveis, que antecedem ontologicamente, onto-antropologicamente, tudo o mais e que se sobrepõem a quaisquer considerações. Por exemplo, não é por se ser mais ou menos escuro, mais ou menos belo, mais ou menos rico, mais ou menos inteligente, que se deve ser sujeito e objeto de «mais ou menos direitos humanos», mas também significa que não é por se ser diferente de outros modos que tal direito a ter direitos se perde. Tal aplica-se desde a diferença segundo a saúde, à diferença segundo a chamada orientação sexual e outras: nada disto anula a pessoalidade da pessoa, nada disto faz de um qualquer ser humano menos ser humano ou mais ser humano do que qualquer outro.

De um ponto de vista laico, todo o ser humano, precisamente só por ser um ser humano, tem direito a tudo o que ficou estabelecido, que se pode sumariar na expressão: tem direito a viver em paz; tem direito à paz.

Ora, em termos cristãos, por maioria de razão, porque o cristão é esse que é o campeão do amor ou, então, não é cristão, o que ficou estabelecido acima e que sumariámos como «direito à paz», é algo de incontornável, que motiva a ação do cristão como ação de amor, de amor tendencialmente universal, em construção de uma realidade humana que é uma realidade de paz universal.

A Paz é um nome outro de Cristo, que não é apenas «Senhor da Paz», mas a Paz incarnada.

Relembramos que negação da paz corresponde à negação última da possibilidade de ordem, o que implica a destruição do mundo, em sentido humano. Relembramos, também, que Sodoma e Gomorra não valem como símbolo por causa dos pormenores picantes, mas porque significam a ausência de ordem, de possibilidade de paz, reinos de bestas predadoras que eram.

No nosso tempo, mais uma vez, o bem do mundo pede-nos não que sejamos anjos ou bestas, mas seres humanos de boa-vontade, em constante boa-ação.



 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 14.06.2017

 

 
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