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João Paulo I: “Papa do sorriso” deixou marca duradoura de Igreja que vive do essencial

Imagem João Paulo I | D.R.

João Paulo I: “Papa do sorriso” deixou marca duradoura de Igreja que vive do essencial

Na véspera da sua eleição, citando Ávito de Vienne – santo bispo do século VI –, Albino Luciani (1912-1978) apontava na sua agenda pessoal: «Se o Bispo de Roma é posto em causa, não é o Bispo, mas todo o episcopado que vacila». No preciso momento da sua eleição como bispo de Roma, o cardeal argentino Eduardo Francisco Pironio, recorda-o assim: «Estava precisamente frente a ele e observava-o. Estávamos todos os cardeais à espera do seu sim. O seu sim a Cristo, um sim à Igreja como servidor, um sim à humanidade como pastor bom. Vi-o com uma serenidade profunda, que provinha de uma interioridade que não se improvisa».

Com uma unanimidade «que tinha o sabor da aclamação», segundo a expressão atribuída ao cardeal belga Léon-Joseph Suenens, após um conclave rapidíssimo, que durou apenas vinte e seis horas, a 26 de agosto de 1978 Albino Luciani subia ao sólio de Pedro. Ou melhor, a ele descia, como “servus servorum Dei”, abaixando-se ao vértice da autoridade que é a do serviço pretendido por Cristo.

Não foi por isso sem significado aquela convergência maciça e espontânea dos 111 eleitores, para a maior parte dos quais se tratava da primeira experiência de conclave, e que não pareciam dispostos a tratar apenas de uma “mudança da guarda”. É quanto basta para dizer que aquela escolha foi expressão de uma comum mentalidade eclesial e que chegou como fruto de uma mais longa e atenta reflexão. E esta unanimidade revelava precisamente que não se tratava de um papa programado por um determinado projeto político.

O conclave que elege o sucessor de Paulo VI foi o primeiro após a conclusão do Concílio Ecuménico Vaticano II [1962-65]. E essa eleição queria significar a vontade de progredir na atuação das orientações. Os cardeais tinham, portanto, olhado para a dirimente virtude da pastoralidade. E tinham escolhido o pastor. Não houve necessidade de análises particulares ou compromissos sobre o seu nome. O valor de Luciani, reconhecido desde há muito, estava todo na sua fisionomia centrada no essencial. Era o pastor nutrido por uma humana e serena sabedoria e de fortes virtudes evangélicas, que precede e vive no rebanho com o exemplo, sem qualquer separação entre a vida pessoal e a vida pastoral, entre a vida espiritual e o exercício de governo, na absoluta coincidência entre quanto ensinava e quanto vivia.

Perito em humanidade e nas feridas do mundo, conhecedor das exigências da imensa multidão dos pobres que vivem fora da opulência, era um sacerdote de vasta e profunda sabedoria que sabia conjugar numa síntese feliz e genial “nova et vetera” [novo e antigo]. E se o Concílio queria ser um sinal da misericórdia do Senhor sobre a sua Igreja, como foi referido por João XXIII no discurso de abertura solene dos trabalhos conciliares – que foram, efetivamente, a sede em que a Igreja escolheu «a medicina da misericórdia“ –, fora eleito um apóstolo do Concílio, que dele tinha feito o seu noviciado episcopal, explicando com cristalina lucidez os seus ensinamentos e traduzindo retamente na prática, com coragem perseverante, as suas diretivas, que incarnava com naturalidade e simplicidade. Em primeiro lugar na pobreza, que para Luciani constituía a fibra do seu ser sacerdote e do seu ser pelos homens, na operativa caridade evangélica.

Com a inédita escolha do binómio “João Paulo” ergueu o arco de conjunção daqueles que tinham sido as colunas desse tempo. Colunas que por alguns foram julgadas como separadas. Luciani conhecia este dissenso insidioso no seio da Igreja e considerava-o ofensivo da verdade e inimigo da unidade e da paz. A escolha do binómio foi, portanto, uma das não raras expressões da intuição genial com que sabia prontamente agarrar as questões, vendo com segurança o seu fundo, dissolvendo os nós das situações e dos problemas difíceis na Igreja.

Durante o seu ainda que breve pontificado manifestaram-se assim as prioridades de um pontífice que fez progredir a Igreja ao longo da dorsal daqueles que foram os caminhos principais indicados pelo Concílio: o regresso às fontes do Evangelho e uma renovada missionariedade, a colegialidade, o serviço na pobreza eclesial, o diálogo com a contemporaneidade, a procura da unidade com os irmãos ortodoxos, o diálogo inter-religioso, a procura da paz. Em cada uma destas prioridades vimo-lo exprimir-se nos gestos e nas palavras dos trinta e três dias de pontificado. Como fruto de um trabalho há muito começado, através de um magistério inauditamente suave e atrativo, plantado na radical escolha teológica de uma linguagem simples, coloquial e acessível, aquele “sermo humilis” canonizado por Santo Agostinho, que compreensivo pelo mundo e pelos homens é com eles dialogante e compreensível, a fim de que a mensagem da salvação possa chegar a todos.

 

A premente e provocante atualidade de Luciani

Não é por isso necessário perguntar-se sobre qual seria o caminho que com ele teria percorrido a Igreja. A imagem que da Igreja nutria João Paulo I é a do discurso das Bem-aventuranças, dos pobres de espírito, mais próxima dos sofrimentos das pessoas e da sua sede de caridade, que não se esconde nem se confunde com a lógica dos escribas e dos fariseus, nem com a dos manipuladores ideológicos ou dos espíritos mundanos misturados na trama das fações. O caminho de Albino Luciani teria sido aquele que mergulha as raízes no nunca esquecido tesouro de uma Igreja antiquíssima, sem triunfos mundanos, que vive da luz reflexa de Cristo, próximo do ensinamento dos grandes Padres e aos quais regressou o Concílio. É aqui que deve ser reconsiderada a profundidade da sua obra. É aqui que deve ser recuperado o valor histórico do seu pontificado. Aquele que foi ignorado, diminuído e até ridicularizado, porque evasivo aos confrontos em chave ideológica de quantos, então como hoje, não só na imprensa, comparam os gestos e as palavras com a tabela dos valores estabelecidos ou pelos progressistas ou pelos conservadores, para decidir como encaixar a figura, como dar-lhe uma conotação ideológica, porque só conta o que se torna ideológico, só aquilo que pode reduzir-se às alternâncias do jogo político direita-esquerda, progresso-reação, tradição-revolução. Não foi a sua morte repentina, mas as caricaturas sobre a sua morte que liquidaram Luciani da dignidade histórica. Uma dignidade histórica que continua toda por retransmitir, redescobrir e estudar. Para voltar a compreender também o presente.

«Todos nós, especialmente nós da Igreja, devemos perguntar-nos: realizamos verdadeiramente o preceito de Jesus que disse “ama o teu próximo como a ti mesmo”?». Definiu-se como «pobre papa» e chegou àquele inaudito «Deus é mãe» para exprimir o visceral amor de Deus. «Que eu vos ame sempre mais» foram das últimas palavras que proferiu publicamente, na audiência geral de 27 de setembro, véspera da sua morte. Não foi Luciani, provavelmente, o papa por excelência da misericórdia? Relativamente à colegialidade, que fez parte da sua intervenção escrita no Concílio, voltou insistentemente à fraternidade episcopal.

Na audiência com os cardeais, a 30 de agosto, referindo-se à constituição do Vaticano II sobre a Igreja, “Lumen gentium”, no seu número 22, tocou um dos pontos-chave da eclesiologia do Concílio. «Os bispos – afirmou de improviso – devem pensar também na Igreja universal… atrás de vós vejo os vossos bispos, as conferências episcopais, que no clima instaurado pelo Concílio devem dar forte apoio ao papa… Isso é verdade, mas hoje há uma grande necessidade de o mundo nos ver unidos… Tende piedade do pobre papa novo, que realmente não esperava entrar neste lugar. Procurai ajudá-lo e procuremos juntos dar ao mundo uma mostra de unidade, mesmo sacrificando por vezes algumas coisas; mas teremos tudo a perder se o mundo não nos vê solidamente unidos».

Com a sua morte repentina interrompeu-se esta história da Igreja, que tende a servir assim o mundo? A sua eleição foi o sinal de um escândalo. Um escândalo saudável, que deveria erguer junto da sede de Pedro uma onda antiquíssima de emoções e de fé em todo o mundo. Ela foi a prova de que o sobrenatural não abandona a Igreja, deixando-a entrever o mistério da sua presença histórica.

Albino Luciani não passou como um meteoro, a sua passagem deixou uma marca duradoura e ardente com a sua desconcertante piedade. Permaneceu no tempo, como as brasas sob as cinzas, tornando-se forte e indeclinável testemunho do que é a essência, o fundamento autêntico do viver na Igreja e para a Igreja. Por isso não se encerrou com ele um capítulo da história dos papas, não se volta atrás, não se recomeça do princípio. O que a Igreja está a reviver no interior desde João XXIII, desde o Concílio Vaticano II, desde Paulo VI, não é um parêntese.

Se o governo de Albino Luciani não se pôde desdobrar na história, ele contribuiu mais do que qualquer outro para reforçar e testemunhar hoje o projeto de uma Igreja que com o Concílio voltou às fontes, mais essencial, mais evangélica. Não parecerá pouco. Porque o sinal desta história é o da Graça que entra no mundo, e por caminhos misteriosos o penetra para vencer, como a aurora a noite, os fingimentos hipócritas, as inenarráveis alienações desta nossa lacerada humanidade. Fora e dentro da Igreja.

 

Stefania Falasca
In "Avvenire"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 25.08.2016

 

 

 
Imagem João Paulo I | D.R.
O valor de Luciani, reconhecido desde há muito, estava todo na sua fisionomia centrada no essencial. Era o pastor nutrido por uma humana e serena sabedoria e de fortes virtudes evangélicas, que precede e vive no rebanho com o exemplo, sem qualquer separação entre a vida pessoal e a vida pastoral, entre a vida espiritual e o exercício de governo, na absoluta coincidência entre quanto ensinava e quanto vivia
Durante o seu ainda que breve pontificado manifestaram-se assim as prioridades de um pontífice que fez progredir a Igreja ao longo da dorsal daqueles que foram os caminhos principais indicados pelo Concílio: o regresso às fontes do Evangelho e uma renovada missionariedade, a colegialidade, o serviço na pobreza eclesial, o diálogo com a contemporaneidade, a procura da unidade com os irmãos ortodoxos, o diálogo inter-religioso, a procura da paz
A imagem que da Igreja nutria João Paulo I é a do discurso das Bem-aventuranças, dos pobres de espírito, mais próxima dos sofrimentos das pessoas e da sua sede de caridade, que não se esconde nem se confunde com a lógica dos escribas e dos fariseus, nem com a dos manipuladores ideológicos ou dos espíritos mundanos misturados na trama das fações
Não foi a sua morte repentina, mas as caricaturas sobre a sua morte que liquidaram Luciani da dignidade histórica. Uma dignidade histórica que continua toda por retransmitir, redescobrir e estudar. Para voltar a compreender também o presente
Se o governo de Albino Luciani não se pôde desdobrar na história, ele contribuiu mais do que qualquer outro para reforçar e testemunhar hoje o projeto de uma Igreja que com o Concílio voltou às fontes, mais essencial, mais evangélica. Não parecerá pouco
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