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A Missão de Ibiapaba - Padre António Vieira

Com a aproximação do quarto centenário do nascimento do Padre António Vieira (06.02.1608 – 17.06.1697), ganham ainda maior relevo os livros com textos e/ou estudos sobre a sua vida e obra. É o caso de “A Missão de Ibiapaba”, publicada em Julho de 2006 pelas Edições Almedina.

A obra, coordenada por António de Araújo, apresenta o texto de Vieira “Relação da Missão da Serra de Ibiapaba” e um estudo de João Viegas intitulado “O Padre António Vieira e o Direito dos Índios”, que ao longo de 130 páginas desenvolve os seguintes temas: A conquista progressiva do território; A escravatura antes da chegada dos jesuítas; A escola espanhola da paz; Os jesuítas e as primeiras leis brasileiras sobre os Índios; Vieira antes das missões; A actividade missionária; As ideias de Vieira sobre o direito dos Índios.

A abrir o volume encontramos o prefácio de Eduardo Lourenço – “Vieira ou tempo barroco” – que reproduzimos de seguida, agradecendo a amável disponibilidade da editora.

 

O autor de “A missão de Ibiapaba”, ao mesmo tempo narrador e principal actor dos acasos da evangelização numa região da América, então quase inacessível, sob jurisdição do rei de Portugal, é não apenas um missionário empenhado da Companhia de Jesus, mas um orador de excepção, uma personalidade política de primeiro plano e o mais ilustre dos escritores portugueses do seu tempo. Falo, naturalmente, de António Vieira. Ainda hoje somos sensíveis ao encantamento e ao poder da sua escrita, num texto de circunstância, desprovido de qualquer pretensão literária, contrariamente aos sermões que lhe deram reputação como pregador, em especial os que pronunciou na corte, em Lisboa, ou em Roma, perante o Papa.

O interesse deste relato ultrapassa quer o quadro do testemunho histórico de um episódio, no fim de contas banal, do processo de colonização-evangelização (à época realidades indissociáveis), quer do estatuto anacronicamente literário que lhe poderíamos facilmente reconhecer. Na verdade, o relatório da missão de Ibiapaba vale menos por aquilo que descreve ou mesmo pelo seu estilo bem moderno – marcado por uma ausência de afectação a que não são alheios uma grande lucidez e mesmo a ironia ou o humor – do que pelo tipo de olhar que António Vieira lança sobre a “questão índia”. Esta questão corresponde ao conjunto das perplexidades, mas também ao das resistências reais, suscitadas pela relação entre colonizadores – sejam ou não missionários e a cultura índia. Tantos anos depois de Las Casas, a famosa “questão índia”, em vez de ter sido resolvida, adquiria novas dimensões, verdadeiramente inextricáveis.

De uma forma quase espontânea, é frequente comparar-se o estatuto de Las Casas, que já na sua época se tornara o “defensor dos Índios”, e o de António Vieira, que é louvado, a justo título, pelo seu combate a favor da dignidade dos Índios e dos seus direitos enquanto súbditos do rei de Portugal, seu legítimo soberano. Aparentemente, os combates de Las Casas e de António Vieira respondem a uma dificuldade e a uma situação análogas, decorrentes do confronto com um novo género, que emergiu desde o dia em que Colombo desembarcou nas Antilhas. Os mares oceânicos foram mais fáceis de atravessar do que o abismo de incompreensão cavado, por assim dizer, desde o início, e que perdura até aos nossos dias. De um lado, uma civilização e uma cultura que se vêem e entendem como naturalmente universais, convencidas da sua origem e genealogia divinas; do outro, uma nova humanidade de que ainda se não conhecia a língua e cujos códigos eram rejeitados quando se julgava adivinhá-los ou conhecê-los. Em suma – e, pelo menos, nas suas consequências práticas -, trata-se da erupção do Outro no momento em que é descoberto. Na verdade, as coisas foram mais complexas, e se, para retomar o título mítico de Las Casas, ocorreu uma “destruição dos índios” (que persiste até aos nossos dias), ela foi acompanhada, desde o início, de uma permuta, sem dúvida feita na base da violação, mas de onde nasceu, se não o novo mundo entrevisto no momento da descoberta, um outro mundo que é actualmente o das duas Américas.

Las Casas e Vieira ocupam dois lugares distintos, apesar da similitude das suas intervenções enquanto actores de uma tragédia que os ultrapassava – como, aliás, ultrapassava a todos. Apenas Las Casas compreendeu até que ponto o encontro entre os europeus e os índios era uma fonte de tragédia e, em última análise, sem solução, como verdadeira tragédia. À semelhança de Colombo, Las Casas dirigiu-se ao Novo Mundo sonhando com o Paraíso. Pertence à geração do Almirante, de que será o insubstituível cronista e apologista. No decurso dos primeiros anos do século XVI, é um colono que partilha as ambições e as ilusões dos que rumam às Antilhas, deslumbrados pelos sonhos loucos e ruinosos de Colombo. Uma vez aí chegado, perante o espectáculo da crueldade dos outros espanhóis, sensível aos protestos de Montesinos, muda de vida. Verdadeiramente, converte-se; desposa “a causa dos Índios”, como lhe dirão frequentemente em jeito de crítica. Tornado dominicano, como se sabe, o futuro bispo de Chiapas – um nome de que ainda hoje se ouvem os ecos – entregar-se-á com tenacidade – alguns dirão mesmo com obstinação – a pleitear junto dos reis de Espanha e, depois, de Carlos V, a causa dos novos súbditos de Sua Majestade, contra os colonos cuja sobrevivência e o sucesso no Novo Mundo exigem a exploração desta nova espécie de pessoas a que se chegou a negar a condição “humana”.

O combate de Las Casas foi frequentemente invocado – sobretudo durante o liberal século XIX – como o de um herói romântico. Foi um combate heróico, tenaz, conduzido em nome de uma tradição teológica e jurídica perfeitamente ortodoxa. Poder-se-ia esmo qualificá-la de “imperial”, se tal for entendido como a recusa de conceder a Roma o direito e o poder de atribuir as “novas terras” aos reis e aos príncipes, assim se justificando a expropriação dos nativos (neste caso, os Índios). A Europa e, mais importante, a Igreja, não se encontravam ainda divididas quando Las Casas empreende a sua luta pelo direito de os Índios disporem livremente das suas terras. Quer como sujeito político, quer como sociedade, a Espanha da altura não se encontrava ainda na defensiva. Las Casas viverá tempo suficiente para ver a Europa e a Igreja expostas a uma divisão sem precedentes, criada pelo desenvolvimento da Reforma. Mas isto não mudará a sua atitude. A sua “defesa dos Índio” terá sempre a marca de uma cultura ainda unificada, com profundas ressonâncias medievais, ou seja, argumentativa quanto aos meios e maravilhosamente cristã quanto aos fins.

O tempode Vieria é completamente diferente. Em todos os planos (teológico, ético ou político) o tempo barroco não é, como temos tendência de o imaginar, fechado sobre si próprio, quase atemporal, ancorado na confiança em Deus. Na verdade, este tempo, aparentemente tão unido, é um tempo intimamente fragmentado, inquieto, que exige incessantemente regressar à sua origem. Mas o seu segredo está bem guardado. A Fé, a nova Fé, repousa sobre a vontade. A Igreja Católica, por certo, guarda em si todos os seus tempos. Mas a de António vieira, a da Companhia de Jesus, surgiu, desde o início, como igreja militante. Num sentido forçadamente metafórico, era a muralha de uma Igreja amputada, em luta consigo própria, e de uma Europa em parte “perdida” para ela.

Só a Providência tinha o poder, graças a esta milícia por excelência, de ultrapassar este revés, esta ferida que não nascera simplesmente do inapto espírito do Mal, mas do próprio Deus, mestre do mundo e da História. A História contava-se sempre a partir do Pecado Original, que a havia posto em movimento, e estava interiormente suspendida pelo sacrifício do próprio Deus. Mas um fenómeno como o protestantismo deveria aparecer a uma cultura como a de Inácio de Loyola e, de maneira diferente, á de António Vieira – mais enérgico que o seu mestre – como uma espécie de segunda queda. Destinada, sem dúvida, ao despertar do Homem e – porque não? – a um segundo e definitivo triunfo de Cristo, que deveria ocorrer não aqui – como um dia a Inquisição lhe haveria de censurar – mas lá em baixo, espaço e tempo ainda não desvendados e de que o advento de milhares de almas em terras desconhecidas seria o prenúncio.

Oferecer à Igreja novos fiéis para substituir as ovelhas perdidas, encontrar na Ásia, no Brasil, aquilo que se havia perdido na Alemanha, em Inglaterra, na Holanda, na Suécia e, ao mesmo tempo, consolidar as nações fiéis, a Espanha e Portugal – devendo este, antes de mais, conceder à Companhia a sua protecção – tudo fazia parte de um só projecto. Ninguém como António Vieira parecia predestinado, num tempo, aliás, mais turbulento que o dos primeiros apóstolos da Companhia (Francisco Xavier, os mártires do Japão), a ser o laço entre os dois mundos, o da Europa e do Brasil – terra que era também a sua, pela sua educação, pelo seu coração – pois que o tempo de Manuel da Nóbrega e de Anchieta já tinha passado. Mas António Vieira poderia ser o seu conversor e, de certa forma, o seu salvador.

Enquanto missionário e enquanto português, a relação de Vieira com o Brasil é bem diferente da de Las Casas com o Novo Mundo, num momento em que ainda se procurava este último e a Espanha buscava desenvolver um projecto imperial. Para António Vieira, a colonização, ao colocar questões de natureza cultural, ética e política quando a Europa descobria novas terras, não tinha mais razão de ser. Por outro lado, a colonização portuguesa jamais se confrontou com aquelas questões. O Novo Mundo, em meados do século XVII, é já visto como um “prolongamento” da Europa. Espaço geográfico e político que tinha de ser protegido, ordenado e, acima de tudo, defendido da cobiça de outras nações, inimigos políticos ou potências comerciais rivais de Espanha e de Portugal. Que o Brasil do século XVII seja fruto de uma colonização-conquista não coloca qualquer problema a António Vieira, ao missionário da Companhia que aí se havia instalado há quase um século. Quando muito, constata ele, numa fórmula realista e crítica, pensando que as novas terras estão abandonadas quer no plano temporal, quer no plano espiritual, o Brasil “é uma conquista que reclama ser conquistada”. O seu papel, à semelhança do dos seus companheiros, na Baía, em São Paulo, no Maranhão, era conduzir ao cristianismo uma parcela numerosa da humanidade que o desconhecia. Antes que fosse demasiado tarde e que as almas dos Índios não estivessem perdidas quer para a Igreja, quer para o rei de Portugal de que ele é não apenas súbdito (após a Restauração), mas um conselheiro escutado e, sem que isso prejudique a sua qualidade de missionário, um agente diplomático de excepção. A sua cultura, os seus dons oratórios, a sua incrível habilidade, o seu gosto pelos negócios e pela política, torná-lo-ão, no momento em que um Portugal restaurado luta pela sobrevivência no contexto profano, um personagem de primeira grandeza. O mais notável da sua época, assinala João Lúcio de Azevedo, o seu “descobridor” moderno.

Capa do livro

Quando Portugal recupera a sua independência, em 1640, o Brasil torna-se o teatro de uma luta cujo desfecho se assume, aos olhos de António Vieira, decisivo quer para o destino de Portugal como nação, quer para o catolicismo no Novo Mundo. A região açucareira de Pernambuco suscita, desde há muito, a cobiça dos Holandeses que, após uma tentativa de conquista da Baía, a capital do Brasil na altura, acabam por se instalar duradouramente no Recife, onde criam, nas palavras de António Vieira, uma “nova La Rochelle”. O patriota que é o autor dos “Sermões” sofre tanto mais quanto os recém-chegados são protestantes, hereges. Se lermos cuidadosamente a sua “Relação”, apercebemo-nos de que António Vieira está bem consciente não apenas da superioridade marítima dos Holandeses, mas também da sua habilidade em chamar para a sua causa os Índios, a ponto de os tornar seus aliados.

Vemos, assim, até que ponto se alteraram os dados da evangelização do século XVI. Agora, prolonga-se além-oceano o confronto entre catolicismo e protestantismo. E foi este confronto que levou precisamente a Companhia – de e modo mais ou menos consciente – a considerar a conquista espiritual dos Índios como uma reparação providencial do golpe sofrido na Europa. A situação é inédita. Ela acrescenta um suplemento de singularidade e sobretudo novas dificuldades à enfrentadas pela evangelização tradicional. Era necessário, como no tempo de Nóbrega e de Anchieta, arrancar os Índios da sua barbárie sempre emergente, mas também arrancar um grande número, “conquistado” pelos Holandeses – de que Vieira traça um retrato implacável –, ao fascínio que a cultura protestante e a sua religião mais permissiva – no fundo, uma outra concepção de liberdade – exercia sobre eles.

O relato de António Vieira, à semelhança de toda a sua experiência no Maranhão, é, em filigrana, o testemunho de um desaire que, somente se for lido a outra luz – a dos fins misteriosos da Providência –, pode ser convertido em epopeia para a “mais alta glória de Deus”. O seu combate em favor dos Índios, parcialmente perdido, tem semelhança com o de Las Casas, mas o espírito da sua acção, a visão que a determina, é totalmente distinto. As controvérsias do século XVI, o século de Las Casas ou de Sepúlveda, eram controvérsias europeias onde o Outro – e as questões que ele colocava – não tinha lugar. Las Casas resolve, em nome do Índio, as questões que ele suscita à cultura do conquistador, mas o Índio ainda não coloca questões ao seu conversor. A verdadeira originalidade do relato de António Vieira está na presença da voz do Índio. Esta é narrada sob a forma de sonhos que podemos interpretar, ao modo do próprio Vieira, seja como manifestações da “graça”, seja como temíveis ardis do demónio. Através das narrativas destes sonhos ou das questões colocadas pelos Índios, pondo em causa a própria essência da visão que os missionários com eles queriam partilhar, não pode deixar de se ouvir a voz de António Vieira, suspensa no mais profundo de si próprio, entre o choque da luz e das trevas. Como se fosse um Voltaire – ainda que inconsciente –, Vieira confere aos seus “cândidos” Índios uma lucidez tremenda na recusa em aceitar os mistérios ou as crenças que a seus olhos pareciam inadmissíveis ou tão repugnantes como os do Inferno.

Por outro lado, o século XVII foi, sob a égide de Leibniz, uma época voluntariamente optimista. Mas tal não sucedeu nas pátrias de Graciano e de António Vieira, os dois maiores génios da Companhia nesse século. O seu optimismo, se assim lhe poderemos chamar, é um optimismo transcendente. A alvura das nossas igrejas do Brasil lá está para testemunhar um sonho do Paraíso que é o inverso dos seus ornamentos – a realidade do mundo e da humanidade afogados nas trevas da ignorância e do mal, praticamente invencíveis. Estamos bem longe da visão ainda medieval de Las Casas. Só a Graça de Deus, invocada como uma espécie de milagre permanente, evita o mergulho no caos ou mesmo o desespero dos evangelizadores perdidos em terras inóspitas, no seio de povos que não pediram para ser esclarecidos e muito menos salvos. Na verdade, estes soldados de Cristo, tal como aqui os descreve António Vieira, não são conquistadores protegidos na sua missão pela presença de colonizadores ou de representantes do rei. Estão sós, fazendo um serviço que lhes foi ordenado, para instruir os bárbaros, ou os pagão de uma espécie desconhecida, na única fé verdadeira, a que lhes revela o seu parentesco com o próprio Deus e os subtrai à influência do demónio, abrindo-lhes as portas da felicidade eterna. Praticamente desconhecendo a língua dos autóctones, estes homens que, para mais, possuíam uma cultura vasta e refinada – ministrada pela Companhia –, contavam menos com o seu poder de persuasão do que com o efeito dos seus actos, da sua caridade, que se assemelhava a uma pedagogia mágica. Cumpriam á letra a parábola do semeador. Não era por sua causa que a palavra de Deus enfrentava resistências. Queriam ter podido criar com os Índios laços duradouros, fixá-los, impedir que, uma vez tocados pela fé, retornassem aos seus bárbaros costumes, visto que, ao contrário de Las Casas, era assim que os encaravam e suportavam.

Temos dificuldade, pela nossa parte, em nos colocarmos no lugar destes singulares semeadores da palavra de Deus, que se regozijavam quando as crianças baptizadas ou os adultos convertidos deixavam este mundo. Mas tal não nos parecerá assim tão extraordinário se tivermos presente o sentimento pessimista que impregna a visão barroca do mundo. Não é de estranhar que as orações fúnebres, como as de Bossuet ou de Vieira, sejam os momentos por excelência onde se expunha aquela visão, sob o duplo registo da vacuidade deste mundo e do esplendor do outro. Mas aquilo que na Europa correspondia a uma dramaturgia cultural perfeitamente inteligível assumia nos sertões do Maranhão algo de extravagante, de onírico, quase de insano. Ópera ou requiem sem espectadores. Salvo Deus. E isto era o bastante para estes homens, que, trabalhando para a salvação das almas de uma humanidade renitente às suas ofertas caridosas, procuravam quase deliberadamente o martírio.

No seu relato, António Vieira não esquece este martirológio, que narra sem realce. Sob a sua pena clarividente, aquele não tinha mais a ressonância triunfalista do clássico martirológio cristão, o da Igreja primitiva que retirava do sangue dos santos a sua força e o seu esplendor. Há algo de sombrio neste relato dos trabalhos e dos esforços deste punhado de missionários de que ele próprio, homem de confiança do rei e orador célebre, fazia parte. Compreende-se que o autor, actor deste gesto anónimo, condenado ao insucesso ou a um sucesso mitigado segundo a opinião deste mundo, seja também aquele que, ao mesmo tempo, se entrega à concepção de um mundo outro, o verdadeiro reino de Deus, de que será o novo Isaías. O advento do Quinto Império, a meio caminho entre o céu e a terra, cumprindo a missão – atribuída por Deus aos reis de Portugal – de impor a lei de Cristo ao mundo inteiro, é uma espécie de imagem invertida do meio-revés providencial da epopeia missionária da Companhia no Novo Mundo. Não é particularmente esclarecedora a ligação do Quinto Império a outros sonhos messiânicos ou utópicos de que a cultura do Ocidente é fértil. Ele corresponde ao devaneio imperial português no momento exacto em que Portugal se liberta do seu cativeiro da Babilónia e em que o imperialismo bem activo da nova Europa não católica se expande pelo mundo. O império de Portugal, o seu império real, dissipa-se no seu crepúsculo. Mas sob o sol que se põe brilha um outro império, oposto ao mundo, como o sonhará a seu tempo Pessoa; o império que Vieira, apóstolo de um Deus ao mesmo tempo todo-poderoso e insondável, erige “sobre as ruínas da realidade”. Com estas ruínas – a sua experiência de glória mundana e de insucessos –, auxiliado não apenas pelos seus dons de visionário mas também por uma linguagem que jamais deixa de espantar e fazer sonhar os que penetram no seu jardim de metáforas, oferece-nos a essência de uma palavra que consegue apreender o sentido da realidade no espelho de Deus. Como se fosse a sua sombra.

Eduardo Lourenço

Publicado em 18.01.2008

 

 

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Capa do livro

A Missão de Ibiapaba

Autor
Padre António Vieira

Editora
Almedina

Páginas
224

Data
2006

Preço
€ 14,00

ISBN
978-972-240-774-6





























De um lado,
uma civilização
e uma cultura que
se vêem e entendem como naturalmente universais, convencidas da sua
origem e genealogia
divinas; do outro,
uma nova humanidade de que ainda se não
conhecia a língua e cujos códigos eram rejeitados quando se julgava
adivinhá-los ou conhecê-los









Apenas Las Casas compreendeu até
que ponto o encontro entre os europeus e os índios
era uma fonte de
tragédia e, em última
análise, sem solução,
como verdadeira tragédia










Oferecer à Igreja novos
fiéis para substituir as
ovelhas perdidas,
encontrar na Ásia,
no Brasil, aquilo que
se havia perdido na Alemanha, em Inglaterra,
na Holanda, na Suécia
e, ao mesmo tempo, consolidar as nações fiéis,
a Espanha e Portugal – devendo este, antes
de mais, conceder à Companhia a sua
protecção
– tudo fazia
parte de um só projecto










Compreende-se que
o autor, actor deste gesto anónimo, condenado ao insucesso ou a um sucesso mitigado segundo a opinião deste mundo, seja também aquele que, ao mesmo tempo, se entrega à concepção de um mundo outro, o verdadeiro
reino de Deus, de que
será o novo Isaías









Aquilo que na Europa correspondia a uma dramaturgia cultural perfeitamente inteligível assumia nos sertões do Maranhão algo de extravagante, de onírico, quase de insano











Sob o sol que se põe
brilha um outro império, oposto ao mundo, como o sonhará a seu tempo
Pessoa; o império que
Vieira, apóstolo de um
Deus ao mesmo tempo
todo-poderoso e
insondável, erige “sobre
as ruínas da realidade”










Só a Graça de Deus, invocada como uma
espécie de milagre permanente, evita o
mergulho no caos ou
mesmo o desespero dos evangelizadores perdidos
em terras inóspitas,
no seio de povos que não pediram para ser esclarecidos e muito
menos salvos










Ninguém como
António Vieira parecia predestinado a ser o laço entre os dois mundos, o da Europa e do Brasil










Praticamente
desconhecendo a língua
dos autóctones, estes homens que, para mais, possuíam uma cultura
vasta e refinada –
ministrada pela
Companhia –, contavam menos com o seu poder de persuasão do que com o efeito dos seus actos,
da sua caridade, que se assemelhava a uma pedagogia mágica.
Cumpriam á letra
a parábola do semeador












O seu papel, à semelhança do dos seus companheiros, na Baía, em São Paulo, no Maranhão, era conduzir ao cristianismo uma parcela numerosa da humanidade que o desconhecia










O relato de António Vieira,
à semelhança de toda
a sua experiência no Maranhão, é, em filigrana, o testemunho de um desaire que, somente se for lido a outra luz – a dos fins misteriosos da Providência
–, pode ser convertido em epopeia para a “mais alta glória de Deus”










Antes que fosse demasiado tarde e que as almas dos Índios não estivessem perdidas quer para a Igreja, quer para o rei de Portugal de que ele é não apenas súbdito (após a Restauração), mas um conselheiro escutado e,
sem que isso prejudique a sua qualidade de
missionário, um agente diplomático de excepção









A sua cultura, os seus
dons oratórios, a sua
incrível habilidade, o seu gosto pelos negócios
e pela política, torná-lo-ão,
no momento em que um
Portugal restaurado luta
pela sobrevivência no contexto profano,
um personagem de
primeira grandeza










Quando Portugal recupera
a sua independência, em 1640, o Brasil torna-se o teatro de uma luta cujo desfecho se assume, aos olhos de António Vieira, decisivo quer para o destino de Portugal como nação, quer para o catolicismo
no Novo Mundo











Se lermos
cuidadosamente
a sua “Relação”, apercebemo-nos de que António Vieira está bem consciente não apenas da superioridade marítima dos Holandeses, mas também
da sua habilidade em
chamar para a sua causa
os Índios, a ponto de
os tornar seus aliados












Agora, prolonga-se
além-oceano o confronto entre catolicismo e
protestantismo. E foi
este confronto que levou precisamente a Companhia
– de e modo mais ou
menos consciente
– a considerar a conquista espiritual dos Índios como uma reparação providencial do golpe sofrido na Europa









A verdadeira originalidade
do relato de António Vieira está na presença
da voz do Índio

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