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Evocação

A imperdoável Maria Gabriela Llansol

Se a circunstância fosse mais neutra e a alguma distância deste momento de recordação e homenagem à grande escritora que morreu na segunda-feira, dia 3, aos 76 anos de idade, ousaria dizer, sem medo de o meu juízo soar como demagógico: o século XX português, no domínio da literatura, é inquestionavelmente pessoano; um dia também será llansoliano. Não se trata de medir grandezas, mas de reconhecer o que há de incomensurável na obra de Maria Gabriela Llansol, pelo modo como inventou um género literário (para o qual não servem as categorias de romance nem de ficção, e em rigor se esbatem as fronteiras entre prosa e poesia) criou a sua própria tradição e projectou-se fora das constelações literárias.

Por tudo isso, terá sido muitas vezes recebida como um objecto estranho, inclassificável, extremo. Mas quem aceitou o desafio e foi acompanhando o percurso que se cumpriu em cerca de trinta títulos, desde os contos de “Os Pregos na Erva” (1962) até ao recente “Os cantores de Leitura” (2007) percebeu que aquela grandiosa torrente de escrita, sem fronteiras nítidas na passagem de um livro para outro, fornecia as suas próprias condições de leitura. Era, ela própria, escrita e leitura. Mais do que isso: era um elogio de uma experiência que não coloca a escrita de um lado e a leitura do outro, mas entende-as a ambas como escuta, decifração e conhecimento. Evidentemente que a experiência de leitura que Maria Gabriela Llansol exigiu dos seus leitores – dos seus “legentes”, diria a escritora no seu idioma e com uma particular capacidade de criar conceitos – não se confunde com um envolvimento psicológico tendente a reconstituir aquilo que o autor quis dizer.

Maria Gabriela Llansol foi uma escritora solitária e dotada de uma imensa paciência, num duplo sentido: porque nunca teve pressa de chegar aos lugares de consagração e permaneceu em posição excêntrica, sem ligações com os poderes, as ideologias, as imposições da época; porque era dotada, no mais alto grau, do poder de recepção afectiva que lhe permitiu fazer da escrita um lugar de hospitalidade, de acolhimento, de encontro, de relação de amizade. A sua escrita é de uma inaudita e jubilante abertura a tudo quanto é vivo, a todos os seres (pessoas, animais, plantas), numa espécie de paixão do absoluto que redesenha os confins da experiência, ampliando-a, prolongando-a em direcção ao seu mistério. Podemos inclui-la com toda a propriedade naquela categoria que a escritora italiana Cristina Campo definiu como os “imperdoáveis”. Imperdoáveis são aqueles escritores que se mantêm estranhos ao contexto, que permanecem inclassificáveis e dissidentes em relação ao jogo das forças, que afirmam uma essencial não-contemporaneidade face ao seu tempo, que realizam a concentração do tempo histórico em tempo pessoal. Os imperdoáveis, neste sentido, são ao mesmo tempo pensadores, poetas, místicos.

A relação com os místicos é uma das linhas mais notórias da obra de Maria Gabriela Llansol. As figuras dos místicos medievais, de João da Cruz, de Santa Teresa, do mestre Eckhart comparecem como figuras em muitos dos seus livros. Deles, provém a lição das palavras radicais e ardentes e da procura da perfeição. Mas a mística é, em Llansol, uma mediação a par de muitas outras e é preciso ter cuidado com essa relação porque ela não indica muito mais do que uma experiência espiritual. Se há alguma dimensão mística na obra de Llansol, é a de uma mística da imanência, daquela espécie que encontramos no pensamento de Bataille e de Blanchot.

Mas devemos falar ainda de outras mediações e de outras figuras de invocação: Camões, Espinosa, Bach, Nietzsche, pessoa são algumas delas. Trata-se de “personagens” com características especiais, despojadas do seu conteúdo histórico. Estas personagens sempre trouxeram para os livros de Maria Gabriela Llansol não tanto uma aventura biográfica (aquilo que as tornaria imediatamente assimiláveis ao “romanesco”, que é algo completamente estranho a esta escrita), mas antes o que nelas permanece ligado ao mundo das ideias e, sobretudo, a um «ethos» da afirmação intensa: afirmação de experiências do pensamento e do conhecimento que expõe tais personagens às objecções dos saberes cristalizados e dos lugares-comuns normativos. Toda a obra de Llansol é conquista de um território salvo da «doxa», das «imposturas da língua», da alienação das relações sociais, e é nesse sentido que estas personagens ganham o estatuto exemplar de membros de uma gloriosa família: elas vivem, nos textos de Llansol. numa condição de expatriamento, habitam as orlas de um território em que o tempo parece ter sido abolido e instituída a lei da universalidade e da simultaneidade, longe, portanto, da linearidade histórica e narrativa. Nesta condição, Pessoa pode dialogar com Bach e São João da Cruz pode ser contemporâneo de Nietzsche. Estes cruzamentos improváveis dão lugar ao que de mais irredutível nos oferece a obra de Maria Gabriela Llansol: a ficção elevada à natureza de discurso especulativo. Ou melhor, a neutralização daquilo que poderia surgir como “ficção”, conceito de que a escritora sempre se afastou soberanamente, por ser manifestamente inadequado aos mecanismos e à matéria dos seus textos: “Ficcionar é repulsivo para o silêncio”, escreveu uma vez Llansol. A recusa da ficção, prolonga-se numa recusa do autobiográfico, ainda que a matéria autobiográfica lá esteja. O que acontece é que, para Maria Gabriela Llansol, a vida não está de um lado e a escrita do outro, há, a ligá-las, uma essencial unidade e uma indeterminação. A vida é verdadeiramente o que se gera na palavra e é neste sentido que não é aceitável que a vida se torna biografia. Daí que, mesmo em livros que se apresentam como diários, a vida quotidiana e a intimidade a que temos acesso não sejam da ordem do que estaríamos à espera. Em contrapartida, há um exacerbamento da noção de texto, que não devemos no entanto remeter para uma noção materialista e autotélica de textualidade. Aqui, o texto é outra coisa: é uma extensão do mundo e é também o próprio mundo como texto. Habitá-lo, decifrá-lo, construir nele clareiras de sentido foi a grande tarefa desta escritora que, no fundo, esteve sempre na margem da língua e fora da literatura.

António Guerreiro

in Expresso (Actual), 08.03.2008

Capa da revista "Actual"

10.03.2008

 

 

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Maria Gabriela Llansol































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Maria Gabriela Llansol
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