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Debate

Igreja é chamada a favorecer «um diálogo harmonioso e a várias vozes» com a cultura

O que é mais importante (criar, manter, repensar) na relação da Igreja com a cultura?

Na sua obra “Excertos dos Diários de Adão e Eva”, Mark Twain, imagina os nossos primeiros pais a tomarem nota das contínuas descobertas que iam fazendo. Como tudo, no mundo, é novidade! Mas a maior é constituída pelas inquietações e formas de pensar de cada um. Tão iguais e tão diferentes! Quando Adão estava sozinho no Éden, as coisas lá iam decorrendo com aquela monotonia rotineira. Mas chegou Eva e tudo se alterou: desapareceu a solidão e o silêncio, o poder de dar nome aos animais e às coisas e entrou a «sócia», o ter de partilhar direitos e de se acomodar ao outro ser.

Na mente de Mark Twain está a problemática das relações humanas: “Segunda-feira. Esta nova criatura de cabelo longo é um valente empecilho. Anda sempre à minha volta e segue-me para todo o lado. Não gosto disto; não estou habituado a ter companhia.”. "Terça-feira. Não posso dar nome a nada. O novo ser dá nome a tudo o que aparece antes de eu poder esboçar um protesto.". "Segunda-feira. O novo ser diz que se chama Eva. Que não é um simples ser, mas uma «Ela». Tudo bem. (...) tanto me faz. O que Ela seja não me faria diferença se Ela se metesse na sua vida e não falasse."

Com o tempo, lá se vão adaptando mutuamente. A ponto de Adão confessar que dificilmente sobreviveria sem o «alter-ego»: "... Vejo que me enganei a respeito de Eva. Reconheço hoje que é melhor viver fora do Éden com ela do que no Éden sem a sua companhia”.

Citei este notável autor porque me ajuda a concretizar o que se me afigura mais relevante na aproximação ao âmago da cultura. Entendo-a como dimensão transversal de toda a atividade humana, como multiplicidade dos âmbitos e experiências por onde perpassa a nossa existência, simultaneamente detentora e carente de comunicação. E angustiada pela necessidade de ver iluminado o mistério que nos sentimos e que sentimos à nossa volta (mundo, razões da existência, Deus). Obviamente, estas linhas de força têm de tomar forma em altas manifestações artísticas. Mas estas são sempre uma linguagem, um meio, ainda que necessário, e jamais a essência da cultura.

Concordo, pois, com as palavras de João Paulo II, na ONU (1995): “Qualquer cultura é um esforço de reflexão sobre o mistério do mundo e, em particular, do homem […]. O coração de qualquer cultura é constituído pela sua aproximação ao maior dos mistérios: o mistério de Deus”.

Assim sendo, na relação da Igreja com a cultura, há, de facto, que criar novas linguagens, aptas a des-velar os mistérios com que topamos. Há que manter «religiosamente» as que, num dado tempo, serviram para o exprimir. Há que repensar técnicas e conceitos. Mas há que, fundamentalmente, confrontar, compenetrar, intercambiar, relacionar e colocar as diversas culturas em diálogo. Até para evitar aquele “confronto de civilizações” para o qual nos alertou Samuel Huntington (1996). A “nova ordem mundial” só pode acontecer mediante uma gramática relacional que evite a absorção das culturas autóctones por uma hegemonia neo-colonialista e não siga pelos caminhos do confronto, como parecem desejar alguns setores radicais ao opor o Islão ao Ocidente.

Concluindo: na sua relação com a cultura, a Igreja é chamada a favorecer um diálogo harmonioso e a várias vozes. Como na polifonia: um barítono e um soprano são portadores de timbres de voz discrepantes e até cantam distintas notas musicais. Não obstante, a excelência da peça verifica-se na fecunda harmonização que o compositor intuiu.

Com a cultura deve passar-se o mesmo.

 

D. Manuel Linda
Bispo auxiliar de Braga
© SNPC | 25.03.12

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John Heseltine / Corbis

 

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