Vós que destes claro a tanto escuro
«…minha mão na vossa mão imaculada…»
Maria de Lourdes Belchior
O problema da definição de uma poesia religiosa não reside tanto na dificuldade de inclusão, quanto na exclusão implícita que descreve. Há certamente, em cada geração, alguns poemas notáveis onde o embate com o Transcendente reluz de tão agudo. Porém na poesia, quando se deixa de lado o silêncio, que folheiam ainda nossas mãos? E quando se esquece a trepedição tão profunda que nem se pode sequer esboçar, os declives secretos que são sempre apenas aludidos, apenas entrevistos, ou o marulhar necessariamente indistinto do que avança sobre nós, quando isso se esquece de que nos vale, como àquela figura evangélica, voltar do campo ou tentar entrar em casa para salvar o que já perdemos (Lc 17,31)? Como disse, recentemente, António Ramos Rosa: «o caminho que vai para baixo é o caminho que vai para cima. O que é negativo na poesia é essencial…» (in Público, 23/10/04, p.8).
Aquelas que são, porventura, as mais importantes antologias feitas em Portugal sobre a chamada “Poesia religiosa” enfermam por isso, com os indiscutíveis méritos que possuem, desta impossibilidade de traçar fronteiras nesse território baldio, alagado e imprevisto que é o da criação. Refiro-me a “Na mão de Deus – Antologia da Poesia Religiosa Portuguesa”, organizada por José Régio e Alberto de Serpa (1958) e “Poesia e Teologia”, apresentada pelo P.António de Azevedo Pires e editada pela União Gráfica, nos anos de 73-74. Pois não se pode, evidentemente, fugir ao facto de que «A poesia é só uma» - esclarecedor lema da geração de poetas que emergiu em torno aos Cadernos de Poesia (Ruy Cinatti, Sophia de Mello Breyner, Blanc de Portugal…), a maioria deles, por sinal, com uma forte ligação ao catolicismo.
A maior pertinência de se escolher a poesia para sondar o modo como a figura de Maria e da sua Imaculada Conceição atravessam a cultura portuguesa, está nessa espécie de co-naturalidade entre representado e expressão que representa. A própria poesia vive de uma tensão de transcendência que conduz as palavras, ou melhor a realidade, a um processo de transfiguração: o tempo aí inaugurado acende-se «cintilante, como nácar ou neve», torna-se «instante milagroso, como se todas as dissonâncias se resolvessem harmoniosamente em silêncio» (e uso coisas que Eugénio de Andrade escreve em Rosto Precário).
A permanência, desde os primeiros cancioneiros medievais até à última modernidade, de fundamentais categorias semânticas como claridade, pureza, vida intacta, acção da Graça permitem-nos perceber como, para lá de uma persistência explícita da figura da Imaculada, há, inerente à própria poesia, uma abertura, um rasgo fundo para essa formulação do Mistério. E o facto de, muitos séculos antes da definição dogmática, já o sentido crente referir ousadamente na criação poética esse dado de fé, constitui uma silenciosa forma de confirmação.
Da sagacidade de Mestre Gil Vicente (1465-1540),
«Alta Senhora, saberás
Que da tua santa humildade
Te deu tanta dignidade,
Que um filho conceberás
Da divina Eternidade.
Seu nome será chamado
Jesu e Filho de Deus;
E o teu ventre sagrado
Ficará horto cerrado;
E tu-Princesa dos Céus»
(Auto de Mofina Mendes)
à lírica, quase transparente, de Sá de Miranda (1485-1558):
«Virgem formosa, que achastes graça
Perdida antes por Eva, onde não chega
O fraco entendimento chegue a fé.
……………………………………….
Vós que nos destes claro a tanto escuro,
Remédio a tanta míngua
……………………………………….
Virgem toda sem mágoa, inteira e pura,
Sem sombra nem daquela culpa, herdada
Por todos nós, té o fim desde o começo
Claridade do sol nunca turbada».
Da magnífica elegia X de Camões (1524-1580),
«Tu, Virgem pura, santa, Avé Maria,
Cheia de Graça, Esposa, Filha e Madre,
Mais fermosa que o Sol ao meio dia,
Que vás buscando ao Esposo, Filho e Padre,
Qual cordeira perdida da manada,
Sem guarda de pastor, nem cão que ladre;
Vai Rainha dos Anjos mui amada,
E preciosa pedra adamantina,
De perfeições e graças esmaltada…
……………………………………………
ao recôndito Frei Agostinho da Cruz (1540-1619), que na estreita cela da sua penitência, profusamente alumiou com seu Verbo espiritual o nosso séc. XVI:
À Imaculada Conceição
Virgem formosa, que do sol vestida,
De luzentes estrelas coroada,
Do sol supremo fostes tão prezada,
Que em vós trouxe sua luz e nossa vida.
Virgem, do alto esposo recebida,
Tanto mais humil, quanto mais alçada,
Só vós pera o Criador fostes criada,
Só vós entre as humanas escolhida.
Qual sai a aurora, que trazendo o dia,
O céu, esmalta de púrpura e de ouro,
E as negras nuvens fogem de improviso:
Tal vós, estrela clara e nosso guia,
Trazendo à terra vosso alto tesouro
Convertestes o pranto de Eva em riso.
No século XX foi, talvez, um poeta brasileiro (mas a nossa pátria não é a língua portuguesa?) quem fez da reflexão sobre a Imaculada um dos eixos capitais de uma construção literária. Mostrando, ao mesmo tempo, como a linguagem teológica ganha em densidade significativa quando integra a dimensão poética. Falo de Murilo Mendes, sobretudo no período que Os quatro elementos (1935) e O sinal de Deus (1935-1936) assinalam.
I
A Virgem Maria sempre apareceu
A Virgem Maria sempre figurou nos planos divinos
Desde a mais remota antiguidade.
Deus e o homem sempre conceberam a pureza e a inocência
Antes do rio antes do pólo antes do abismo.
Nas horas mais duras impossíveis de explicar
A Virgem Maria sempre apareceu e aparecerá.
II
A Virgem de Lourdes
O maior milagre
É o desaparecimento da Virgem:
Quem me dera estar em Lourdes
Quando a Virgem desapareceu.
A “implacável” consciência do abandono
A solidão “infinita”
O desespero “absoluto”
E a saudade d’Ela me salvariam para sempre.
III
[…] Tu , Maria, primeira teóloga, primeira poetisa, tu que encerraste em teu seio a sabedoria do Verbo de Deus, me deste a vida do mistério, o conhecimento do dogma. Tu és o molde onde Deus se fundiu, e por isto tens sido e serás até o fim dos tempos o molde dos predestinados, dos santos, dos poetas. Todos os membros do Corpo Místico de Jesus Cristo são teus filhos, e foram e continuarão a ser paridos sobrenaturalmente por ti, Virgem e Mãe. O impulso do meu ser para tua Pessoa, tornada infinita pela isenção do pecado original, estancará minha sede dos amores que acabam. Em ti amarei, ó Inatingível! […]
José Tolentino Mendonça
© SNPC | 09.12.2008
Topo | Voltar | Enviar | Imprimir