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Itinerário

O Padre Américo e a generosidade da cidade do Porto

A 16 de Julho de 1956, o Porto estava de luto. Poucas vezes se terá visto um sentimento tão profundo abater-se sobre toda uma cidade. E a extensão desse sentimento pôde ver-se no dia seguinte, no funeral. Escolheu-se a Igreja da Trindade como a de maior capacidade, mas, mesmo assim, não houve lugar nem sentado nem de pé que tivesse ficado vazio. Pelo contrário, a multidão teve que permanentemente rodar pelas coxias para dar lugar a outros que também queriam e tinham direito. E, na vida dos que então viviam, nunca se terá visto chorar tanto no Porto.

Uma parte do Porto ou só do Porto, uma classe só ou só um estrato? Não, estava ali em peso a representação maciça de todo o Porto e não só, de todos os estratos e de todas as ideias, desde as personalidades mais em vista até aos mais desfavorecidos dos desfavorecidos. Mais estes. E poucas vezes, se alguma, todos se terão sentido mais misturados. Era bem o Porto que chorava. E chorava quem? Chorava um Homem diferente e pouco vulgar, Homem que até tinha nascido no termo do Porto, mas que um dia bem cedo o abandonara, talvez à força, à procura de outras terras e outros horizontes. Quando um dia, desiludido, quis regressar, qual filho pródigo, e ser Padre, as entidades responsáveis do Porto não o receberam. E, agarrado ao bordão que começara a adoptar, lá teve ele que caminhar mais para sul, à procura de quem melhor o compreendesse e aceitasse. Que, há 80 anos, nem a sociedade nem a Igreja de Portugal estariam muito preparadas para receber um Padre assim, no seu pensar e no seu agir tão fora dos princípios rígidos de então. Mas Deus, que sabe o que faz e comanda, mandou-o para Coimbra ao encontro de um grande Bispo que, austero e duro, à primeira vista pareceria que seria quem menos o poderia compreender. Mas foi afinal quem o compreendeu e aceitou. A caminhada do Filho Pródigo acabara e a obra ia nascer. Quase por linhas tortas, à base de inadaptação, iríamos dizer de incapacidade, mas não dissemos que Deus escreve direito por linhas tortas?

Era necessário que houvesse em Portugal um Padre assim, diferente, e as circunstâncias depararam-lhe o caminho que não entrevira, mesmo que nele tivesse que entrar pela porta pequena: a da incapacidade, ou pelo menos, a da originalidade. Porque desde logo se via que Américo de Aguiar nunca seria um Padre como os outros, e o seu Bispo, numa hora de inspiração, indicou-lhe o caminho: visitaria os pobres, trataria dos mais humildes. Para isso, pensava que servisse.

Acredita-se que nem tivesse sido a visão daquele Bispo, que aliás era profunda, que tivesse descoberto aquele caminho. Mas se não foi a visão, foi a inspiração. O certo é que acertou e acertou em cheio. Exemplo para tantos de nós, para tantos pais que hoje procuram para os seus filhos só os cumes da sociedade, sem perceberem que a vocação deles não é essa, que renderão mais e se realizarão muito mais em tarefas que aos pais repugnam. É que o Mundo não é simples e linear como os Homens às vezes o querem entender.

Começando pelos quelhos sujos e de mau nome da Baixa de Coimbra, o Padre Américo logo descobriu o que os outros não viam ou não queriam ver: a miséria. E logo procurou lançar um cabo-salvador a essa miséria, encontrar nela a sua própria alçaprema. E viu que outra não podia ser senão a sua infância, a multidão de garotos que por toda a parte deixavam a sua marca e que de toda a parte eram corridos. Se houvesse alguém que os não corresse, que os soubesse atrair e amar, pois acreditava firmemente que tudo se modificaria, que tudo levaria o seu tempo, mas que, se não fosse aquela, pois a geração seguinte já seria bem melhor e mais disciplinada. Era o limite, mas porque não aquela? Com um condicionamento «sine qua non»: que toda a obra que se viesse a fazer, fosse uma obra de Amor e baseada no Amor, Amor pelas crianças e Amor por todos os Homens, que não é por se repartir que o Amor deixa de ser Amor. Antes bem pelo contrário! Foi assim que sonhou a sua Obra no imundo daqueles quelhos e daqueles tugúrios, e foi dali que partiu.

Foi assim nas ruas sem sol da Baixa de Coimbra, depois ao sol efémero das Colónias de Férias que com grande esforço conseguiu organizar, depois, e a partir dessas colónias, foi já o sonho da institucionalização em casa de tijolo e cimento, como dizia, nessa primeira ideia perto de Coimbra, a sua base. E foi assim que nasceu a pioneira Casa do Gaiato, em Miranda do Corvo, e a Obra ganhou raízes. Como bom camponês, exigia bens ao sol.

Mas isto passava-se em 1940, era a guerra, havia fome, tudo era difícil, mesmo as deslocações. Por outro lado, a Casa de Miranda depressa se encheu, e, ou ao Amor se admitiam limites, ou era preciso procurar outra ou outras casas. Porque não no Porto, cidade maior e que então fazia vista de mais rica? Veio, mas em vez de encontrar a casa e os meios que procurava, encontrou ainda maior miséria e mais garotos que dele tanto ou mais precisavam.

Afinal o problema era bem maior do que de Coimbra podia ver. Até que um dia foi à sua terra (Galegos, Penafiel) e, ou o pároco lhe terá chamado a atenção, ou terá sido a sua ânsia que terá visto, o que é certo é que lhe não passou despercebido o vasto espaço abandonado do velho Convento de Paço de Sousa. No seu jeito de não perder tempo, logo dali escreveu ao sub-secretário de Estado da Assistência Social, Dr. Joaquim Diniz da Fonseca. E, oh milagre!, a resposta veio positiva!

Mas, para o que sonhava, era preciso muito dinheiro e ele não o tinha. Resolveu ir pedi-lo ao Porto, cidade com fama de rica, rica de meios e rica de valores, e em que de facto uma guerra em paz e a possível indústria do tempo tinham concentrado muita riqueza. Todos os estratagemas utilizados em Coimbra, ampliados agora com certeza, deram no Porto muito mais dinheiro, encheram muito mais a velha capa que estendia nas igrejas. Dinheiro começou a não faltar, e tanto o Porto lhe deu que lhe arrancou o suspiro profundo: “Ai Porto, Porto! Quão tarde eu te conheci!...”

Por outro lado, suprema vitória, conseguiu convencer o então todo-poderoso e muito efectivo Ministro das Obras Públicas, Eng. Duarte Pacheco, a acreditar nele e, mais, a apostar na Obra. Agora sim, tinha a certeza, esta viria a ser uma grande realidade. Como foi. Era a consolidação, mas para essa consolidação muito viria também a contribuir uma outra ideia que nasceu quase ao mesmo tempo, ideia a que se não tem dado nem dá ainda o real valor e o significado que teve e tem. Diríamos que foi e é uma das maiores obras que Padre Américo nos legou: o jornal “O Gaiato”. (...)

Com Paço de Sousa e “O Gaiato” estava de facto consolidada a obra. Agora não havia senão que crescer até aos limites de Portugal. Foi a seguir Lisboa (Tojal), foi Setúbal, e, porque Portugal não terminava então em Sagres, foi Malange, foi Benguela, foi Lourenço Marques (Maputo) e mais seriam e mais longe (Índia, Macau, Timor) se Deus tem querido e Padre Américo não tivesse morrido tão cedo. E quem sabe se um dia não serão? O futuro a Deus pertence, que não ao Homem, mas é ao Homem que o compete sonhar e, até ao limite das suas forças, realizar.

Seja como for, não queremos pôr um ponto final no sonho. Ele também não o poria, estamos certos. De qualquer maneira, como ele queria, a semente já está a germinar nessa África imensa que é preciso venha a ser o que o Mundo precisa que seja. É o grão de mostarda, a seu tempo veremos os seus frutos. Porque é pelos frutos e unicamente pelos frutos que as obras humanas devem ser julgadas, não por quaisquer teorias por mais actuais ou científicas que se possam pensar. E os frutos da Obra do Padre Américo, ninguém, nem mesmo que queira ser cego, os poderá negar.

Que quem quer que seja, muito poderoso e muito sábio com certeza, não o duvidamos, venha e ponha os seus muitos meios, a sua acção e os seus frutos ao lado dos da Casa do Gaiato, E depois que julgue, mas julgue em espírito de verdade. Julgue e deixe os outros julgar. E que não negue a verdade reconhecida como tal. Já vai sendo tempo de voltarmos às origens. Há 50 anos, foi o povo que julgou, e julgou bem. O povo nunca se engana. Muito mais nos enganamos nós quando nos pretendemos sábios.

Francisco de Almeida e Sousa

in O Tripeiro, Novembro 2006

08.09.2008

 

 

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