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Ciência

O Tratado dos Olhos de Pedro Hispano

O Tractatus de Oculis, pequeno folheto dedicado ao tratamento das doenças de olhos, sobressai entre as muitas obras que são atribuídas a Pedro Hispano por várias razões. Em primeiro lugar, por ter sido escrito por uma eminente autoridade médica, cuja formação em medicina terá sido bastante rigorosa, em particular se tiver sido obtida em Montpellier. Em segundo lugar, e tendo em consideração as credenciais profissionais do autor, por constituir um levantamento absolutamente atualizado das questões que discute. Em terceiro lugar, por ter sido muito divulgado à época, tendo continuado a ser usado na profissão durante pelo menos dois séculos e meio após a sua composição. Por fim – e esta é talvez a razão mais relevante –, por nos proporcionar uma visão do que era a teoria e a prática, não só da medicina medieval em geral, mas da oftalmologia medieval em particular.

 

Pedro Hispano, filósofo, médico e pontífice

A figura de Pedro Hispano, mais tarde papa João XXI, teve uma projeção tal no mundo da cultura europeia medieval, que hoje nos surpreendemos com a sua obra no campo da filosofia e da medicina.

O seu impacto nas universidades e escolas conventuais foi enorme e prolongado, não isento de controvérsia, como se pode ver pelos vestígios transmitidos por um número
enorme de códices e de edições, ainda não contabilizados. Ele foi, de facto, um dos grandes mestres medievais que na Europa se impuseram por um saber enciclopédico à procura de novos caminhos, como estudos recentes têm mostrado. Curiosamente, no seu país de origem, a fama de Pedro Hispano chegou mais tarde e só mais recentemente alguns estudiosos voltaram a atenção para este vulto extraordinário da história e da cultura pátrias.

Na sequência de alguns trabalhos em fins do século XIX, na primeira parte do século xx assistiu-se a um ressurgimento do interesse académico pela figura de Pedro Hispano, sobretudo a partir dos estudiosos alemães, contemplando os campos da filosofia e da medicina. Os estudos do Prof. Martin Grabmann, com base num códice descoberto em Madrid (Mss. 1877), aplanaram o caminho do reconhecimento científico da obra de Pedro Hispano enquanto médico e filósofo. A partir de então multiplicaram-se os estudos, mostrando como Pedro Hispano se encontrava, na Idade Média, familiarizado com Aristóteles, e como penetrava os problemas da alma humana tão característicos da ciência moderna da psicologia.

Mas, se o estudo da sua obra se encontra eriçado de dificuldades, o conhecimento das etapas e da cronologia da sua existência, aliás curta, também não é isento de incertezas. Esta incerteza, porém, de algumas datas da sua vida não colide com o eco académico das obras que nos legou.


Ilustração de uma cirurgia às cataratas por extração. Manuscrito do séc. xi, Oxford.

 

Estudos e Magistério

Pedro Julião nasceu em Lisboa, em data não conhecida, certamente antes do ano 1220. Era filho de Julião Rebelo, médico, cuja profissão seguiu, e de Teresa Gil. Começou os estudos na escola da catedral de Lisboa, passando, a seguir, para Paris. Nesta universidade doutorou­-se em «Artes», seguindo os estudos curriculares da época (Trivium e Quadrivium). Afortunadamente, ensinavam em Paris os mestres mais ilustres daquela época, contando-se entre eles Alberto Magno, Guilherme Shyreswood e Lamberto de Auxerre. Da cátedra de tão eminentes professores, Julião aprendeu os novos caminhos da Ciência e auferiu os conhecimentos enciclopédicos da Natureza, da Física, da Filosofia e da Metafísica, próprios do tempo. Quanto ao estudo da Medicina, deve tê-lo feito na cidade de Montpellier, por na data anterior a 1250 não haver ainda em Paris essa faculdade Pedro Hispano refere-se à sua estada em Paris na carta escrita como papa ao bispo Tempier, em 18 de janeiro de 1277, incitando-o na luta contra os hereges, quando recorda os estudos feitos durante a juventude («ab annis teneris variis scientiis et per annos plurimos») no Studium parigino, chamado «fons vivus sapientiae salutaris».

O mestre universal era, então, Aristóteles. Nas suas pegadas, Pedro Julião encontrou aí, como condiscípulos, Tomás de Aquino, Boaventura di Bagnoreggio, Rogério Bacon, todos grandes mestres da Idade Medieval. Fruto da escola de Paris, a sua obra Summulae logicales deixa entrever a importância da Lógica no ensino universitário, nomeadamente no que se refere à Dialética, definida como «ars artium, scientia scientiarum»,

Como os mestres da Escolástica Medieval, Pedro Julião dedicou-se às questões de Filosofia. Entre os seus escritos, emerge o tratado Summulae Logicales, composto em sete partes, por volta de 1250. Esta obra foi o manual de referência sobre a Lógica aristotélica durante mais de trezentos anos, nas universidades europeias, com centenas de edições em toda a Europa e com traduções também para grego e hebraico. Bastante popular ainda no tempo da Reforma protestante (século XVI), esta obra foi objeto de lições sobre Lógica ouvidas por Lutero, e Melanchton citou-a em vários dos seus escritos.

A raiz da importância desta obra assenta no facto de o autor partir do pensamento de que só a Lógica pode ser o fundamento de qualquer ciência. Só quem conhecesse e dominasse a Lógica poderia compreender e ensinar os outros campos do saber. Certamente, para conseguir esta forma de pensar, o mestre necessitava de dominar a língua, os modos de expressão e de argumentação, as subtis formas de comunicação, os universais, os predicamentos, os silogismos (Syncathegoreumata). Pelo significado da sua projeção no campo da Filosofia, esta obra tem sido objecto de estudo de diversos autores (M. Alonso, J. P. Mullally, I. Bochensky, L. M. De Hijk).


Página de uma edição impressa, do final do século XV, do Thesaurus pauperum.

Esta obra de Pedro Julião também foi objeto de aceradas críticas, por basicamente se confinar a repetir e a copiar os pontos fundamentais da Lógica de Aristóteles e de Boécio, tendo em conta os pensadores do seu tempo apenas na última parte («De terminorum proprietatibus»). Os problemas multiplicaram-se, envolvendo a própria identificação de Pedro Hispano e a autenticidade dos textos que lhe eram atribuídos.

O seu livro Scientia libri de anima foi considerado por Martin Grabmann o mais completo tratado de psicologia da Escolástica. A partir do códice da Biblioteca de Madrid, M. Grabmann diz, de Pedro Hispano, tratar-se não só de um célebre médico, mestre de Lógica, mas também de um dos mais importantes psicólogos e dos primeiros comentadores de Aristóteles Segundo ele, trata-se do «mais importante escritor médico do século XIII».

Por seu lado, a obra Quaestiones super libros de animalibus Aristotelis toca problemas de zoologia e do início da vida.

No campo da Teologia, escreveu pouco. É-lhe atribuído apenas a Expositio librorum Beati Dyonisii, com comentários à obra do Pseudo-Dionísio. A importância desta obra na literatura espiritual avalia-se pela exposição dos temas: êxtase, conhecimento negativo de Deus, natureza do mal e demónio.

Pedro Julião também se dedicou ao estudo da Medicina e às ciências físicas e matemáticas. Após a obtenção do grau de mestre em Filosofia e Medicina, em 1245, Julião empreendeu uma viagem de estudo ao sul da Itália, nomeadamente a Salerno e Palermo, rocas fortes da medicina da época. Aí frequentou as lições do médico Teodoro, da corte de Frederico II. A amizade com personalidades da corte imperial valeu-lhe a nomeação como «professor artis medicinae» em Palermo, onde permaneceu pouco tempo.

Em 1246, tendo conhecimento da procura de docentes para o Estudo Geral por parte das autoridades comunais e atraído pela escola recentemente fundada, transferiu-se para Siena, onde ensinou Medicina durante seis anos, como professor (Physicus). Na abertura do Estudo Geral de 1247, o seu nome já aparece no elenco dos mestres presentes. Sabe-se que habitou num bairro pobre da cidade (Villegiatta).


Operação aos olhos. Imagem extraída de publicação de 1583, Dresden.

Aqui, entre 1246 e 1252, desenvolveu as linhas mestras da sua escola de medicina, divulgando-as em vários escritos, que se multiplicaram indefinidamente. Aí conquistou prestígio entre colegas e estudantes, e terá escrito os tratados Thesaurus pauperum, Regímen sanitatis e De oculo. Nos séculos seguintes, esses escritos foram sofregamente compilados, copiados, comentados, com tal frequência que se tornou difícil contar os exemplares de manuscritos existentes e espalhados ainda por muitos arquivos. Com este extraordinário facto andam relacionados problemas de difícil solução, tais como os da datação e da autenticidade de alguns escritos com o seu nome.

Segundo Pedro Julião, a Medicina assentava em duas colunas: ratio et experimentum. Estes dois atributos, próprios da Ciência, impuseram as suas obras na opinião pública, nomeadamente no campo da Terapêutica, por ele explanada de modo claro e acessível. Como base fundamental propunha regras de Dietética, dava importância aos naturais meios de cura acessíveis e divulgava, como meio de recurso último, a Cirurgia.

O opúsculo Thesaurus pauperum, copiado vezes sem conta, foi objeto de uma centena de edições, após a invenção da imprensa, com traduções em doze línguas. Trata­-se de um compêndio de receitas caseiras e económicas, algumas das quais extravagantes. Como o nome indica, o compêndio destinava-se ao povo simples e pobre. Começa por definir os critérios de composição de leitura, segundo princípios de uma verdadeira deontologia. Acrescentado com receitas próprias, o livro encontrou uma enorme divulgação popular, mas perdeu crédito junto dos estudiosos, os quais reconhecem, com ceticismo, que Pedro Hispano tinha questões de medicina muito mais importantes do que elaborar uma série de receitas comuns e populares. Por outro lado, o autor não se apoiava apenas na tradicional escola de medicina dos gregos, mas recorreu igualmente aos conhecimentos islâmicos, mais avançados na época. Entre os diversos autores encontram-se os nomes de Avicena, Dioscórides, Hipócrates, Isaac, Galeno, Ar­Rhases, Kyrannis, Ali-Abbas, Alexandre, Esculápio, etc. Tal atitude era sinal de uma nova posição no seio da Igreja relativamente às ciências práticas.

Uma outra obra médica de Pedro Julião é o Liber de conservanda sanitate. Uma obra menos conhecida, mas não menos significativa, na medida em que constitui um dos primeiros tratados de medicina preventiva, enumerando as infeções conhecidas ao tempo e os meios de as prevenir. O motivo que presidiu à composição da obra foi o de que é melhor conservar a saúde do que curar as doenças. Com esse intuito, deve ter escrito outros tratados, como o das febres.

A seguir a 1250, os dados cronológicos a respeito de Pedro Hispano são mais controversos ainda. Terá passado algum tempo em Portugal, onde recebeu a ordenação sacerdotal. Como clérigo, assumiu então diversas funções e títulos, conforme os dados documentados por escritos de 1250 e 1254, que falam da sua presença com os títulos de decano ulissiponense e arcediago bracarense. Ao mesmo tempo, deve ter acumulado o priorado de Mafra. Se os títulos não comportam a presença efetiva, então torna-se mais difícil ainda estabelecer quais os anos que Pedro Julião viveu em Portugal.


Tratado dos Olhos, de Pedro Hispano. Manuscrito do séc. XIV, Biblioteca Estatal da Baviera, Munique.

Regressado a Siena, o estilo discreto da sua atividade mudou por volta de 1260, quando foi assumido como médico do duque de Lavagna.

A partir desse momento, Pedro Julião percorre rapidamente os diversos estádios da carreira eclesiástica. No ano de 1261, foi eleito decano da Sé de Lisboa, e em 1263 foi nomeado, pelo rei D. Afonso III, Dom Prior da Colegiada Real de Santa Maria de Guimarães.

Ao tempo, estes eram títulos honoríficos, de que podia usufruir não residindo em Portugal, mas significavam já o reconhecimento da sua fama.

 

Na Cúria Pontifícia

Atraído a Viterbo pela corte papal, então fora de Roma, foi nomeado médico pessoal do cardeal Ottobono Fieschi, futuro Adrião V, e, a partir de 1263, foi arquiatra do papa Gregório X (Tebaldo Visconti). Em 1272, por morte de Dom Martinho Geraldes, Pedro Julião foi nomeado arcebispo de Braga pelo papa Gregório X. Não chegou a tomar posse, uma vez que, em 1274, foi feito cardeal de Túsculo/Frascati.

Na qualidade de arquiatra e conselheiro, acompanhou o papa a Lião para tomar parte no Concílio Ecuménico que estabeleceria a união das Igrejas do Oriente e do Ocidente (1274). Em Viterbo, onde os papas procuravam a paz que Roma não oferecia, Pedro Julião pôde testemunhar as diligências do papa junto do patriarca de Bizâncio e do imperador Miguel VIII Paleólogo, assim como as discórdias entre os príncipes cristãos e as pressões políticas sobre os cardeais.

Apesar do seu curto pontificado, João XXI foi uma das personalidades mais famosas do seu tempo, sobretudo pelo seu contributo no campo da Filosofia e da Medicina. Dante Alighieri cita Pedro Hispano como sumo filósofo, não como papa ou ilustre médico, colocando-o no «Paraíso» da Divina Comédia, ao lado de Ugo de São Vítor, sumo teólogo e filósofo, de Pedro Comestor, chanceler do Studium de Paris: «E Pedro Hispano, que luz na terra em seus doze libelos».

O rei de Aragão, Afonso X, o Sábio, pai da rainha Santa Isabel de Portugal, também o elogia numa canção, no «Paraíso» (Canto XII). Admirado como «varão de letras», «grande filósofo», homem de ciência física e naturalista, Pedro Julião ficou na história como médico ilustre e papa mecenas de artistas e estudantes.


Gravura de Pedro Hispano, Papa João XXI, com o brasão de armas.

Dele ficou a memória de um homem sábio e simples. A todos recebia, sem excluir os pobres. Manifestava predileção pelos jovens e pelos estudantes de Letras. Como homem de ciência, continuou a dedicar-se a experiências de laboratório, procurando descobrir os segredos da Natureza, a ponto de alguns o suspeitarem como mago. A sua morte ficou envolta no mistério. Certamente, foi vítima do abate da ala oeste do palácio em construção, na noite do dia 10 de maio de 1277. O papa foi tirado do meio dos escombros horrivelmente maltratado e em fim de vida. Tinha 53 (?) anos de idade, três de bispo e oito meses de pontificado. Sobreviveu seis dias ao trágico acidente, e morreu no dia 16 de maio de 1277. Entre atrozes sofrimentos, os presentes ouviam as suas últimas palavras: «Quidfit de libello meo? Quis complebit libellum meum?» (O que será do meu libelo? Quem completará o meu libelo?).

Durante o seu pontificado, foram produzidos cerca de cem documentos. Também durante esse tempo foi introduzida na Igreja a oração mariana do Angelus.

O seu brasão consta de um escudo esquartelado com três crescentes e três bandas negras alternadas em campos de prata e de ouro.

O mote das suas armas não é seguro; segundo uns, era a inscrição: «Dirige, Domine Deus meus, in conspectu tuo viam meam» (Senhor, meu Deus, faz que eu caminhe na Tua presença: Salmo 5,9); segundo outros, inspirar­se-ia nas profecias de Malaquias: «Piscato, Tuscus

Dentro do espírito da época, o papa João XXI deve ser considerado um dos grandes sábios do seu tempo, não obstante algumas opiniões divergentes. A Europa culta apelidou-o de Hispano, já como professor, tendo em conta a sua proveniência da Península Ibérica, a que os Romanos chamavam «Hispânia». Por outros foi designado como Pedro Lusitano ou Pedro Hispano Portugalense. Com Santo António de Lisboa ou de Pádua, Pedro Hispano é a personagem do Portugal medieval com maior projeção na Europa e no mundo.

 

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Pedro Hispano Portugalense - Papa João XXI

Arnaldo Pinto Cardoso (com A. Mark Smith)

Texto e imagens: O Tratado dos Olhos, ed. Alêtheia

26.02.2009

 

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Capa

O Tratado dos Olhos
de Pedro Hispano

Autores
A. Mark Smith
Arnaldo Pinto Cardoso

Editoras
Alêtheia
FMR

Páginas
106

Ano
2008

Preço
€ 72,00 (Bertrand)

ISBN
978-989-622-145-4

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