Tem o gosto do desafio o projeto discográfico centrado numa das páginas mais radicalmente "russas" de Sergej Rachmaninov (1873-1943), as "Vésperas op. 37", interpretadas por duas formações vocais norte-americanas de grande reputação, os Coros de Phoenix e Kansas Citym que como o seu diretor, Charles Bruffy, venceram dois prémios "Grammy" com trabalhos dedicados ao repertório sacro do século passado.
Traduzido literalmente, o título original da obra - Vsenošcnoe bdenie - significa "Vigília de toda a noite"; nos mosteiros russos, com efeito, as Vésperas, hora litúrgica de oração que começa normalmente ao declinar da tarde, chegam a incluir o ofício da manhã.
Nos 15 trechos que constituem esta "Grande Vigília Noturna", executada pela primeira vez em Moscovo no ano de 1915, o compositor absteve-se da utilização de qualquer instrumento musical; é somente o conjunto coral que joga um papel decisivo, e aquele que está sob a orientação de Bruffy move-se com tempos lentos, dilatados, alargados, entre mudanças contínuas de tessitura tímbrica fielmente enfatizados e valorizados por uma extraordinária recolha áudio que, embora mantendo um halo de ressonância, resulta perfeitamente focalizada na fonte sonora e é capaz de cristalizar cada mínimo detalhe da trama musical.
São muitos e disseminados ao longo de toda a partitura os momentos de absoluta inspiração artística e de forte impacto emotivo que chegam diretamente ao coração do ouvinte, como a entrada a plenas vozes no trecho de abertura, "Vinde, adoremos o rei nosso Deus!", o episódio final do Cântico de Simeão, que toca os registos mais profundos da secção dos baixos, ou os claro-escuros expressivos do "Magnificat" e da "Grande Doxologia", prelúdio à última oração à Virgem Maria, a quem Rachmaninov confia a sua obra-prima.
Andrea Milanesi