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É sobejamente conhecida a posição de Friedrich Nietzsche que condena o cristianismo como algo próprio de fracos, de doentes, de escravos, de pessoas que inverteram os valores próprios da vida, fazendo da doença, da fraqueza, da submissão os novos bens. Seriam eles os verdadeiros niilistas, pois o seu movimento é um movimento que nega tudo o que é força vital, energia, ato, procurando aniquilar tudo o que não é próprio de cobardes perante a tragédia anunciada e irresgatável de uma vida sem outro sentido para além do absoluto do instante em que a vida irrompe, amoral, soberana, sempre em dialética e sucessiva morte e renascimento.
Lendo os Evangelhos, é difícil atribuir ao seu protagonista – o termo é propositado, pois, «protos/primeiro» e agonia não podem ser mais adequados, neste contexto – algo como «fraqueza». Mesmo nas passagens em que Cristo apela a uma ação humilde, tal ação implica sempre uma atitude de força interior por parte de quem a queira realizar, nunca é uma demissão de autonomia, pelo contrário, é sempre uma afirmação de autonomia, logo, de vida própria. No entanto, esta vida não é ao modo espalhafatoso de um Dioniso ébrio de vida, mas ao modo sóbrio de um homem em que a vida se revela forte na decisão, mas sem espalhafato.
O sim e o não ao que nos é proposto, por homens ou demónios, por santos anjos ou bestiais anjos, não é mais ou menos forte por causa do aspeto exterior que tem, mas pelo ato lógico-ontológico, que consuma, de adesão ou de não-adesão a algo. Um sim à vida, que pode passar por um sim ancilar à morte, não é mais forte se for gritado do que se for dito serenamente como quem sabe que tem razão e que, por tal, não precisa de berrar o que pode até apenas balbuciar. O sim e o não dos agonizantes não é menos poderoso lógico-ontologicamente do que o de um berrante vociferador.
Os atos de Cristo em que a sua força transparece são muitos e o mais poderoso é precisamente aquele em que a sua fragilidade mais se faz notar: trata-se da «cena do cálice». Apenas a fragilidade total e absoluta do ser humano perante a possibilidade da morte eminente – iminente é sempre – justifica a reiterada pergunta. Esta fragilidade é, aqui, imediato paradigma do que é a condição humana universal perante a possibilidade da aniquilação. Aplica-se a todos os seres humanos que tiverem a capacidade para perceber o que, em última instância, está em causa em semelhante passo. Não é uma «coisa cristã», é uma «coisa humana». Cristo assume tal condição.
Mas a fragilidade aumenta ao limite paroxístico – qual Job perante a primeira e terrível aparição de Deus – quando à pergunta se segue resposta nenhuma, quando de Deus apenas o silêncio ressoa estrondosamente. Fragilidade absoluta do ser humano absolutamente só. Mas esta condição não é excecional: esta é a condição ontológica do ser humano – ser, estar, viver sempre ontologicamente só. Ninguém nasceu na vez de Cristo, ninguém por ele bebeu da mama de sua Mãe, ninguém por ele amou sua Mãe, seu Pai – seus Pais –, ninguém se alegrou por ele, ninguém foi forte por ele, ninguém foi frágil por ele, ninguém bebeu o cálice por ele.
E, assim por todos nós.
Esta nossa fragilidade ontológica é a condição da nossa força: é que toda a força que daqui se retira é nossa, saída da nossa fragilidade. É que a fragilidade é o divino dom da possibilidade da força.
É da sua fragilidade humana comum que Cristo retira a força, única, sua, de mais ninguém, sobretudo não do Pai, para beber o cálice.
Espantosa força esta que desmente antecipadamente qualquer acusação de fraqueza.
Então, de onde retira Nietzsche a fraqueza do cristianismo? Inventa-a? Não: encontra-a na incapacidade de cada dito cristão beber o cálice, que não é cálice niilista de morte, mas enérgico cálice de vida. Alguém imagina Cristo a beber o seu cálice com cinzento «ar de desgraçado»?
O cálice bebe-se de cabeça erguida, não apenas perante os seres humanos, santos ou bestas, Marias ou Pilatos, mas, sobretudo, perante o mesmo Deus que, dando-nos a força da fragilidade, merece que lhe agradeçamos olhos nos olhos tal dom, que nos torna não apenas seus filhos, mas seus iguais nisso do absoluto do ato da tomada de decisão: soberano ato de força em que o ser humano se torna divino, se beber o cálice do bem, se torna besta, se beber o cálice da morte.
A força reside em beber o cálice do bem, como esse homem fortíssimo que foi Jesus, o Nazareno.