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Eu vi Cristo na fronteira

Cristo surpreende sempre. Revela-se no inesperado. Ele teria adorado jogar às escondidas. É que nunca se sabe onde se pode encontrá-lo. Cristo disse que podia ser encontrado menos se espera, no mais pequeno e mais fraco entre nós. E também disse: «Tudo o que fizerdes ao mais pequenino dos meus irmãos e irmãs, é a mim que o fazeis». Eu maravilhei-me com as inesperadas epifanias de Cristo que experimentei ao longo da fronteira sul dos Estados Unidos.

Encontrei Cristo, surpreendentemente, numa pequena capela em Altar, Sonora, México, há alguns anos. Vi homens jovens e assustados, na maioria envergando t-shirts estampadas com a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, ou a segurar contas do terço. Homens que se ajoelharam em oração. Como Cristo ajoelhado no jardim, procuravam a ajuda de Deus, ansiosos e desesperados, imaginando o que os aguardava na sua jornada para norte.

Não queriam magoar ninguém. O único desejo que os impeliu foi uma vida melhor e mais digna para si ou para as suas famílias. Como Dorothy Day, a grande ativista social que viu Cristo nos rostos das centenas de pessoas sem-teto que estavam na fila para o pão e café na Mott Street, que ela tinha começado, olhei nos olhos desses jovens e vi o sofrimento, o rosto dolorido de Cristo.

Eu estava na estrada improvisada de Altar para Sasabe, Arizona, quando passava carrinha após carrinha, cheias de migrantes em direcção à fronteira. Uma carrinha parou. Uma senhora abriu a janela da carrinha e gritou: «A sua bênção, padre». Olhei lá para dentro e vi pessoas apertadas como nas carruagens do metropolitano no auge da hora de ponta. Os seus rostos refletiam a ansiedade que sentiam. Levantei a minha mão para abençoar e vi Aquele que conhece o nosso sofrimento, pois sofreu pesadamente. Pareciam ter ficado confortados com um simples sinal de bênção. Deus acompanhou-os. Deus ficou ao lado deles. Estava dentro da carrinha lotada, espremido ao lado dos outros.



Cristo tinha a intenção de realizar o trabalho de seu Pai, acontecesse o que acontecesse, tal como este jovem estava determinado a melhorar o destino da sua mãe e irmãos. O amor custa sempre, exige autossacrifício



Celebrei missa na fronteira que separa Ambos e Nogales, duas cidades divididas por um muro. D. José Leopoldo González, bispo de Nogales, e eu concelebrámos, ele do lado dos Estados Unidos e eu do lado mexicano. Juntamos as mãos através das barreiras de aço que separam o nosso povo. Eu vi Cristo com os braços estendidos, tentando unir os nossos dois mundos. Quase podia ouvir os anjos a cantar: «Em Cristo não há oriente nem ocidente, nele não há nem sul nem norte, mas uma grande comunhão de amor em todo o vasto mundo».

Conheci um jovem de 15 anos, no centro médico universitário em Tucson, Arizona. Ele era de Chiapas e não falava espanhol nem inglês, mas apenas a sua língua indígena. Era de uma família de 10, criada por uma mãe solteira que sofria de depressão. Decidiu ir para a fronteira para estar com o tio, que morava em Tucson. Apanhou boleia da "besta", um comboio que transporta pessoas para o norte. A dado momento saltou, e ficou com ambas as pernas cortadas debaixo do comboio. Enquanto estava deitado na cama do hospital, pude ver a sua frustração, o seu desespero. Ele que tinha saído de casa para sustentar a família, estava agora incapacitado, tornando-se um fardo adicional para a família.

Eu vi neste rapaz o Cristo que deixou a companhia dos seus pais para tratar do seu ministério. Cristo tinha a intenção de realizar o trabalho de seu Pai, acontecesse o que acontecesse, tal como este jovem estava determinado a melhorar o destino da sua mãe e irmãos. O amor custa sempre, exige autossacrifício.

Ao longo da fronteira, os samaritanos colocam água para ajudar os migrantes, com provisões inadequadas, que atravessam o implacável deserto de Sonora. É impossível transportar água suficiente para evitar a desidratação do sol implacável do Arizona. As ações dos samaritanos refletem as de Cristo, que sentiu a dor humana e teve compaixão ao ver os perseguidos e desamparados, como ovelhas sem pastor. Cristo vive no nosso deserto, as suas mãos depõem a água para saciar a sede das pessoas.



Dizem-nos para vermos os migrantes e refugiados como perigosos, com intenção de causar danos. Mas, se alguém olhar atentamente, encontrará Cristo nos migrantes e refugiados que, como nós, querem apenas o melhor para os seus filhos e para si mesmos



Todos os dias, ao longo da fronteira em Ambos, Nogales, o padre jesuíta Sean Carroll e a sua equipa Kino Border Initiative servem comida para os migrantes que foram deportados para o México. Os migrantes sentam-se em mesas com alguma aparência de dignidade, e são-lhes servidas refeições caseiras. Lembra-me Cristo a multiplicar alimento para as massas. Os voluntários, muitas vezes estudantes, imitam Aquele que alimentou os exaustos.

Os pés magoados e feridos dos migrantes são lavados e enfaixados por membros da equipa Kino. Atravessar o deserto tem seu preço. A jornada rasga os pés. Costumo imaginar Cristo a tirar a sua roupa e a ajoelhar-se aos pés dos discípulos, lavando os seus pés.

Muitos ao longo da fronteira espelham as ações de Cristo, imitam a sua terna compaixão, vivem o seu chamamento para servir, praticar o seu amor autossacrificado.

Dizem-nos para vermos os migrantes e refugiados como perigosos, com intenção de causar danos. Mas, se alguém olhar atentamente, encontrará Cristo nos migrantes e refugiados que, como nós, querem apenas o melhor para os seus filhos e para si mesmos. Se você olhar atentamente o suficiente, verá nos seus rostos o rosto de Cristo.

Dizem-nos para ficarmos longe dos migrantes e refugiados, fecharmos as nossas fronteiras, mas se alguém olhar atentamente o suficiente, verá Cristo presente no aqui e no agora através das ações de pessoas que veem onde o amor é necessário e quem responde.


 

D. Gerald Kicanas, bispo de Tucson até 2017; atualmente administrador apostólico de Las Cruces, Novo México, EUA
In National Catholic Reporter
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 06.03.2019 | Atualizado em 06.10.2023

 

 
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