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Etty Hillesum: quatro vias para a espiritualidade cristã contemporânea

Etty tem muito a dizer sobre questões do nosso tempo. Esta jovem intelectual, emocionalmente confusa e sexualmente aventureira, de uma família disfuncional, que não estava interessada em religião institucional, é uma pessoa curiosamente moderna.

Ao refletirmos sobre ela, mais de sessenta anos após a sua morte e ao ouvirmos hoje a sua voz, temos de deixá-la interromper bruscamente as nossas vidas, e precisamos de escutar atentamente o seu convite a procurarmos um caminho mais verdadeiro e mais profundo.

Há quatro áreas em que ela fala de modo particular.

Primeiro, quebra o nosso ceticismo acerca da fé e convida-nos a acreditar de novo. Segundo, interrompe as nossas estreitas convicções acerca da própria religião, e convida-nos a rezar. Terceiro, interrompe os nossos ódios fáceis ao nosso inimigo, convidando-nos a ver. Finalmente, interrompe o nosso desespero acerca do futuro, e convida-nos a ser corajosos.

 

Um convite a acreditar de novo

A história de Etty desafia o profundo estado de espírito de ceticismo que prevalece em grande parte da Europa Ocidental, sobre se a fé em Deus pode continuar a ser cre­dível no mundo moderno, e convida-nos a crer de novo.

O seu diário e as suas cartas contam a história de uma aventura de descoberta. Há uma entrada do seu diário em que, impaciente com a «primitiva» palavra «Deus», Etty lhe dá uma nova definição, descrevendo Deus como «a nossa maior e mais contínua aventura interior». A energia, o dinamismo e a direção desta «aventura interior» lenta, mas, seguramente, como um grande rio, reuniu tudo o que ela era, e transformou-a. Do fundo do caos emergiu a coerência emocional; o poder do seu turbulento desejo foi transformado numa paixão pelo amor; o empenhamento pela verdade tornou-se uma força motriz; por baixo da sua vitalidade intelectual e emocional, Etty descobriu uma corrente subterrânea de sabedoria; e, no segredo de uma casa de banho suja, o desejo mais profundo do seu coração foi satisfeito na prática de adoração. Finalmente, até mesmo frente ao mal mais bárbaro, Etty mostrou que uma vida pode encontrar dentro de si própria profundos reservatórios de uma estranha alegria. Acima de tudo, deu testemunho da realidade de uma profunda dimensão interiorà pessoa humana. Era à vastidão interior da sua alma a que Etty regressava constantemente, e foi esta qualidade de profundidade que lhe permitiu enfrentar o barbarismo e o ódio que a circundava, e lidar com eles.

A sua vida constitui um desafio à dúvida e ao ceticismo radicais do nosso tempo. Não às dúvidas da honesta interrogação própria da abertura de espírito que constitui um aspeto essencial da fé, mas o tipo de dúvida que alimenta o desespero cínico, pois afirma cegamente que a aventura da fé é uma ilusão, e, por isso, está condenada desde o princípio.

Esta jovem mulher tomou a seu cargo a responsabilidade extraordinária de tornar Deus crível, até mesmo num mundo como Westerbork. «Tem de haver alguém que viva tudo isto e dê testemunho do facto de que Deus continuou a viver, até mesmo em tempos como estes. E porque não havia de ser eu essa testemunha?»

 

O seu caminho de fé

Etty cumpriu a sua missão, tornando-se realmente essa testemunha. E essa testemunha convida-nos a explorar o seu caminho de fé.

Foi a sua prática de prestar profunda atençãoque a transformou. Ela começou por aprendê-lo ajoelhada no tapete castanho de fibra de coco da casa de banho de sua casa, em Amesterdão. Essa prática foi-se desenvolvendo sob a pressão do terror até se ter tornado habitual. Ao longo dos meses no campo, à medida que o seu contemplativo coração se ia apercebendo cada vez mais da sua vida interior, a sua direção ia-se afirmando. Etty desenvolveu um profundo sentido de solidariedade para com o seu povo, e ela descobriu que ansiava por cuidar dos mais fracos e dos mais vulneráveis. Sempre atenta a sinais dessa vida «nas suas milhares de nuances»no rosto dos que a rodeavam e no mundo natural para lá do arame farpado, estava decidida a não ficar estonteada pela crueldade, mas a continuar a ver, a fim de poder contar a história do seu destino. Foi descobrindo cada vez mais que a sua prática de «repousar em Deus» libertava dentro de si uma profunda nascente de gratidão que, por vezes, se tornava irreprimível. Até no inferno daquele campo ela brotava das profundezas do seu ser. A sua figura de pé, numa extremidade do campo, com lágrimas de profunda emoção e gratidão a correr-lhe pelo rosto é uma imagem, uma expressão, de profunda fé mística.

Escutarera o modo principal da sua crença. A medida que o seu tempo em Westerbork ia passando, essa prática aumentou de intensidade, embora houvesse momentos em que «nada fazia sentido». Na sua carta a Henny Tideman, Etty escreveu: «As coisas vão e vêm num ritmo mais profundo, e as pessoas devem ser ensinadas a escutar; é a coisa mais importante que temos de aprender nesta vida.» E a escuta conduziu a um anseio mais profundo: «A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, ó Deus»; e esse anseio conduzia-a numa única direção: «Desemboco sempre numa única palavra: Deus.»

Era esta a fé de Etty. Tê-la-á sustentado até ao fim? A fé tem de fazer frente àquilo que tenta bloqueá-la. Na sequência da longa carta de 24 de agosto, em que ela descrevia os guardas grosseiros a carregar a sua miserável carga humana, escreveu a Maria Tuinzing, confessando-se «estranhamente cansada». Pressente-se que as torrentes de gratidão a que se referira numa carta, poucas semanas antes, já não seriam apropriadas. Talvez já não fossem possíveis. Etty vira demasiado. «Agora estamos um pouco mais velhos. Nós próprios mal nos apercebemos disso: ficámos marcados pelo sofrimento para toda a vida.» Contudo, não tinha perdido a fé. «...A vida, nas suas profundezas insondáveis, é tão maravilhosamente boa, Maria», escreveu ela. E Deus não se perdera, «...se nós nos preocuparmos o suficiente, Deus estará seguro nas nossas mãos, apesar de tudo o resto...»

A sua fé susteve-a até ao fim. Deixou o campo a cantar. A última vez que a vimos foi sentada na mochila dentro do vagão de gado superlotado e fechado com tábuas, cercada por inúmeros outros judeus, tendo pela frente uma viagem de três dias. No último postal que enviou para o mundo exterior, a primeira coisa que escreveu foi um versículo: «O Senhor é a minha torre segura.» É difícil imaginar uma situação em que a fé pudesse ser mais posta à prova. A sua vida diz muito sobre o que é a fé e o que a fé torna possível. Etty interrompe o ceticismo sarcástico do nosso tempo, acerca da fé religiosa, e também nos convida a aprender o que significa escutar profundamente e voltar a acreditar.

 

Um convite à oração

A segunda forma pela qual a vida de Etty nos interpela e desafia é sobre as pressuposições da própria religião: de que as instituições a detêm e controlam, acerca da questão que reside no cerne da mesma e a forma pela qual nós pensamos nas suas fronteiras. Aproveitando os diversos tipos de sabedoria, convida-nos a descobrir e a explorar a nossa prática de fé pessoal.

A sua caminhada até à fé em Deus transformou a sua vida, mas aconteceu fora de qualquer instituição religiosa. Etty é uma figura contemporânea, também neste sentido.

A sua história convida-nos a reconhecer caminhadas de fé alheias a instituições religiosas, e anima-nos nessa caminhada. Também desafia aqueles que trabalham nas instituições religiosas a refletir mais profundamente sobre a razão pela qual são tão desconsiderados, e a escutar aqueles que se encontram para lá das suas fronteiras.

Grande número de pessoas do mundo ocidental, sobretudo jovens, sentindo as pressões de uma irrequieta sociedade consumista, sentem que o seu estéril secularismo não lhes oferece nada em termos das questões de significado mais profundo. Podem sentir-se num deserto espiritual... e assim, por entre as exigências, as pressões e o ritmo de vida vivido à superfície das coisas, existe uma fome profunda de «espiritualidade».

Contudo, este interesse pela «espiritualidade», que se revela numa grande diversidade de maneiras, não se encaixa facilmente nas narrativas e nas expectativas das instituições religiosas preestabelecidas. Assim, na Europa (a situação nos Estados Unidos parece ser diferente), verifica-se a situação paradoxal de que um interesse crescente pela «espiritualidade» corresponde a um declínio da frequência institucional da Igreja. Isto conduz-nos ao que reside no coração da espiritualidade num mundo pós-moderno.

Num útil artigo intitulado «A crise da pós-modernidade»5, o escritor e teólogo Philip Sheldrake sugere que, aqui, se verifica uma confusão de interrogações. Há a interrogação em que as instituições religiosas ainda se centram com afinco, nomeadamente, «O que é ou quem é Deus?» Mas, por detrás da «busca espiritual contemporânea», há uma questão diferente (embora, na tradição mística, com ela relacionada), designadamente, «Quem sou eu?» O problema para as instituições religiosas é que, nos seus credos, liturgias e, muitas vezes, na sua pregação, exploram e expõem uma resposta para a primeira questão, que tem vindo a ser cada vez menos colocada.

 

O poder do secularismo

O secularismo fez um poderoso trabalho minando a antiga visão do mundo que as espiritualidades tradicionais pressupunham e que colocava a questão de Deus no centro das preocupações. Agora, pelo menos no mundo europeu, a assunção universal é que o mundo, o universo, a pessoa humana e o curso da história só podem ser devidamente entendidos em termos da compreensão das disciplinas da ciência moderna. A Física Quântica e a Cosmologia falar-nos-ão da natureza do Universo; a Biologia evolutiva explicar-nos-á o mundo que nos rodeia; a Biologia, a Genética, a Psicologia e o estudo do cérebro revelar-nos-ão a natureza da pessoa humana; e as Ciências Sociais, Políticas e Económicas ajudar-nos-ão a ver e a sondar o curso da História.

Esta pressuposição - excetuando pequenas bolsas de pensamento fundamentalista - tornou-se totalmente dominante no mundo ocidental do pós-Iluminismo e, na mente de muitas pessoas, minou e tornou irrelevante, e até absurda, a noção de Deus.

Etty deve tê-lo entendido. Há um ponto no diário em que, depois de um intenso debate sobre a fé, ela vai para casa, interrogando-se: «Não será tudo isso um disparate? Não estarão eles a iludir-se a si próprios? Esta dúvida espreita continuamente no fundo da minha mente.»

 

A questão do ego

E assim esta questão sobre Deus já não é o ponto em que começa a busca espiritual contemporânea. O que conduz esta busca é a questão - a surpreendente, e até misteriosa questão - do ego. Quem sou eu, no caráter único dos meus sentimentos, relações, reações e sentido de pertença ou não pertença; no contexto particularíssimo da minha vida, da minha história e do meu possível futuro?

As instituições religiosas não parecem ter apreendido toda a força desta mudança: o poder do terramoto secular a nível do entendimento que ocorreu e que alterou o centro dos interesses. Continuam a comportar-se como se a antiga visão do mundo continuasse a imperar. Não deviam estar tão surpreendidos pelo facto de os seus números continuarem a declinar.

Etty Hillesum fala ao mundo moderno porque a sua caminhada começou com a psicoterapia, com a questão que muitos outros fazem, de vários modos: «Quem sou eu?» Ela começou com o enigma desconcertante e perturbador de si própria,e a sua caminhada prosseguiu fora de qualquer instituição religiosa.

 

Cinco elementos da sua caminhada

Houve cinco elementos-chave nessa caminhada: uma relação de aceitação incondicional dentro da qual ela se sentia segura para explorar a sua experiência; exploração intelectual do pensamento de alguns escritores-chave, nomeadamente Jung e Rilke; a influência do seu mentor, uma pessoa de fé, que a introduziu em textos religiosos fundamentais, nomeadamente os Salmos, o Novo Testamento e Santo Agostinho, e em vários outros, ainda; a sua própria resposta à ânsia que sentia dentro de si para rezar; e o desenvolvimento de discipli­nas particulares da vida espiritual.

O seu caminho particular constitui um estímulo e um encorajamento para aqueles para quem parece difícil pertencer às instituições religiosas. Quer uma pessoa continue a ser ou não membro de uma igreja ou sinagoga ou da instituição de qualquer outra tradição de fé, Etty convida-nos a aprofundar mais a nossa exploração pessoal.

Além disso, a sua história convida-nos, a certa altura, a atravessar uma fronteira; a ultrapassar aquilo que ela sentia como uma resistência profunda.

O momento mais íntimo e talvez mais importante da caminhada de Etty foi quando ela começou a rezar. Escreveu que «deu consigo», de repente, ajoelhada no tapete castanho de fibra de coco na casa de banho. Parece ter ocorrido de forma involuntária, como reação a «uma grande necessidade» proveniente mais de uma parte profunda de si própria do que da sua mente. Sentiu-se profundamente embaraçada com isso, e a «porção ateia racional e crítica» da sua pessoa fitou-a, estupefacta, chamando-lhe louca. Eis um momento-chave da sua caminhada de fé: um momento em que temos de nos libertar de todo o nosso «palavreado», de nos libertar do desapego da mente inquisitiva, e de responder a alguma necessidade primitiva do coração, e - ignorando o embaraço e qualquer sentido de insensatez - atrever-se a dizer «Sim».

Uma vez atravessada esta barreira - embora o embaraço volte a surgir e a parte racional e crítica das nossas pessoas, que tem uma importância profunda, certamente volte a afirmar-se - a oração poderá, lentamente, começar a ser habitual, e até, como Etty descobriu, muito necessária. Em determinado ponto do seu diário, Etty escreve: «Continuo a dar comigo em oração.»

Se quisermos entrar realmente neste potencial - para descobrir aonde o mesmo nos pode conduzir - as disciplinas desta vida têm de ser praticadas. Tal como aprender a pintar, ou a tocar um instrumento musical, é um trabalho difícil e não pode ser aprendido de um dia para o outro. Para Etty, a sua espiritualidade e a sua oração significava aprender «a viver artisticamente», uma expressão que ela foi buscar a Rilke. Para o conseguir, ela sabia que «a paciência é tudo» (fazendo ressoar mais uma vez as palavras de Rilke); a paciência e a prática de certas disciplinas. E quais são essas disciplinas?

- silêncio - «há um vasto silêncio em mim que continua a crescer»

- solidão - «no profundo de nós mesmos, todos nós carregamos uma vasta e frutífera solidão»

- atenção, na tomada de consciência e na abordagem dos «rebanhos selvagens» dos pensamentos e sentimentos

- uso de imagens, aprendendo a conhecer tanto o seu poder como os seus perigos

- ler os Saímos, extraindo deles apenas uma frase e plantando-a nas profundezas do coração, onde o seu significado pode crescer.

E (o mais importante para Etty):

- aprender a escutar «tudo o que nos chega de fora... e... tudo o que brota de dentro» - o desenvolvimento de uma consciência intuitiva daquilo que é «mais essencial e mais profundo» em nós próprios, nos outros, na interligação da vida.

Tudo isto e mais ainda fazia parte da caminhada de Etty, que, sobretudo depois de ter deixado os seus amigos em Amesterdão e de Spier ter morrido, se tornou solitária. Na sua carta dirigida a Henny Tideman vislumbramos a sua solidão. Para este trabalho de espiritualidade se manter, precisamos de amizades e de comunidades. Também precisamos, depois de termos confiança suficiente para nos confrontarmos com ele, do desafio, ajuda e correção mais vastos que a instituição religiosa competente pode oferecer à nossa caminhada pessoal. Sejam quais forem as nossas reservas, é isso que dá vida à nossa tradição: o lugar onde a nossa história é publicamente assumida e celebrada. Nós pertencemos-lhe... e precisamos de participar da sua vida e de contribuir para ela.

E assim, além de encorajar os que não pertencem a instituições religiosas, a história de Etty desafia aqueles que têm a responsabilidade de moldar tais instituições, mediante uma interrogação profunda. Como podemos garantir que as nossas liturgias, rituais e cerimónias respiram com o tipo de espírito contemplativo que atrairá os de fora da instituição além de seduzir mais profundamente aqueles que se possam manter hesitantes nas suas margens?

 

Um espírito ecuménico abrangente

Uma forma de o espírito contemplativo ser forjado é o recurso às tradições de outras religiões. Etty tinha um vasto e inclusivo espírito ecuménico. Na sua busca, ela atravessava, sem qualquer consciência disso, as fronteiras que a separavam de outras tradições religiosas. O seu exemplo ajusta-se ao inquiridor moderno que não se preocupa com a fonte de onde provém a sabedoria (embora a Igreja possa preocupar-se). Etty quebra o nosso nervosismo, dizendo-nos: alargai os vossos horizontes.

Aqueles dentre nós que pertencem à Igreja cresceram dentro das fronteiras da «nossa» fé, em contraposição com a fé de outros: judeus, muçulmanos, hindus, budistas e sikhs. Foi assim que nos ensinaram a pensar. Há uma longa e sangrenta história de medo e desconfiança entre as tradições de fé do mundo, dos cruzados e do colonialismo e o conflito inter-religioso. E isto ainda se mantém, apesar de mudanças e avanços significativos em termos de diálogo e de entendimento nos últimos anos. Não obstante, nós continuamos a pensar apenas em termos da «nossa» fé, observando mentalmente as suas fronteiras. Isto é compreensível, pois cada tradição religiosa tem as suas próprias narrativas e símbolos, que brotam da sua própria história e contexto particulares. Assim, cada tradição religiosa é diferente, e tais diferenças precisam de ser respeitadas. Esta abordagem, porém, também pode ser demasiado restritiva. Nós continuamos a ter uma ignorância profunda acerca das outras tradições religiosas, e permanecemos desconfiados e tímidos, receosos de ultrapassar as fronteiras para aprender com elas.

Etty Hillesum não tinha nenhum problema deste tipo. A ideia teológica mais fundamental para ela residia na raiz da tradição judaica: todos os seres humanos transportam a imagem de Deus dentro de si, por muito escondida e esquecida que essa imagem possa estar; todos são criados para se irem tornando cada vez mais semelhantes a Ele.

Portanto, não existem fronteiras, e tudo o que nos possa ajudar a desenterrar esse Deus oculto do nosso coração deve ser valorizado e apreciado... seja qual for a sua proveniência. Assim, incentivada por Spier, Etty ia lendo o Novo Testamento; mergulhou nos Evangelhos, sobretudo de Mateus, sem consciência aparente de que pertencessem a uma tradição «diferente»; regressou uma e outra vez a Santo Agostinho «tão austero, tão fervoroso e tão cheio de simples devoção nas suas cartas de amor a Deus»; citava continuamente «o judeu Paulo», que deixara para trás a sua identidade judaica - mas isso não a incomoda: foi o seu cântico ao amor, na sua carta aos Coríntios, que trabalhou nela «como uma vara divinizante». O seu maior amor era Rilke, que escreveu o Livro das Horas, na pessoa de um monge ortodoxo russo. Quando, à sua chegada a Westerbork, a sua malinha foi revistada, encontraram aí, lado a lado, o Alcorão e o Talmude; além disso, durante o seu último ano de vida, Etty leu muitas obras de Mestre Eckhart.

Tal como o monge cisterciense Thomas Merton, que acolheu e abraçou conceitos inspirados do budismo zen e da tradição sufi, Etty chama-nos a tomar consciência de que as intuições das diversas tradições religiosas se cruzam e complementam nas profundezas do coração do contemplativo onde se dá a adoração daquele que está para lá de todos os nomes.

 

Um convite a ver

Terceiro, a história de Etty quebra a forma fácil como nós falamos e nos confrontamos - ou não nos conseguimos «confrontar» (pois esta palavra sugere olharmo-nos de frente) - com o nosso inimigo. Tal como entendemos o conflito primordial do nosso tempo, Etty convida-nos a ultrapassar abismos de desentendimento do nosso mundo e a explorar aquilo que pode estar implicado no ver, abrindo assim caminho para a justiça e a reconciliação.

A época de Etty era radicalmente diferente da nossa, mas há alguma semelhança pelo menos no simples contorno dos nossos dois contextos tão diferentes, na medida em que se focam sobre questões de ódio e de atitudes para com os inimigos.

Como judia da Holanda, em 1941, Etty foi confrontada com um inimigo cego por uma terrível ideologia de pureza racial ativada pelo ódio, e que tinha por objetivo destruir o seu povo.

Hoje em dia, o mundo ocidental confronta-se com um inimigo terrorista cujo terrorismo é impelido por uma ideologia religiosa profundamente distorcida. Esta encerra em si um ódio profundo pelo mundo ocidental, de modo particular pela América. Esse ódio deu azo a terríveis atos de violenta destruição contra cidadãos de países ocidentais. E, como reação, suscitou o medo.

A forma como Etty reagiu à sua realidade interpõe-se às formas pelas quais nós podemos reagir à nossa, pondo--as em questão.

Primeiro, Etty recusou-se a odiar o seu inimigo. Trata-se, por si só, de uma postura perturbadora, pois significa que temos de repensar a nossa. Recusar-se a odiar é, em última análise, recusar-se a ver alguém, ou um grupo de pessoas - que são manifestamente um inimigo votado à nossa destruição - comoum «inimigo». É viver com este paradoxo e implica - mesmo que o nosso país se defenda do seu ódio - tentar prestar atenção ao contexto mais vasto e mais complexo das suas vidas, e perguntar, de forma inquisitiva, porque é que eles estão, e porque é que nós estamos, enredados nesse ódio? Quem somos nós para eles, e quem são eles para nós?

 

O inimigo como ser humano

Apesar da compreensão clara daquilo com que se estava a confrontar, Etty esforçou-se por ver aqueles que a perseguiam como seres humanos. Olhou no rosto o jovem oficial da Gestap, «digno de dó», que a ameaçou junto ao balcão dos registos, e tentou estabelecer ligação com a sua humanidade; perscrutou os rostos dos guardas grosseiros na esperança de detetar o mínimo vislumbre de vida dentro deles. Muito raramente, o seu olhar era recompensado. Liesl, uma amiga de Etty, conta que um soldado alemão a quem esta encontrou na rua, lhe meteu um papel na mão dizendo-lhe que ela lhe fazia lembrar a filha de um rabino de quem ele, o soldado alemão, tratara, e que gostaria de visitá-la. Foi um pequeno raio de luz no meio da escuridão do ódio. Etty escreveu: «Do meio de todos aqueles uniformes, um deles agora recebeu um rosto. Haverá ainda outros rostos, nos quais poderemos ver qualquer coisa compreensível...» Um uniforme que agora recebeu um rosto.

Foi uma maravilhosa exceção. No meio da carnificina da guerra, Etty continuava a procurar rostos. «Tento olhar de frente para o rosto das coisas», escreveria ela, «até dos piores crimes, e descubro o pequeno ser humno nu por entre os destroços monstruosos causados pelos atos desvairados dos homens» .

No meio dos destroços monstruosos das atrocidades que experimentámos - os terríveis «atos desvairados» que moldaram os acontecimentos deste novo século - é muito duro para nós ver os autores de tais atos como «pequenos» e «nus» - isto é, vulneráveis e «humanos». Contudo, em todos os conflitos e ataques, é sempre a realidade mais profunda que se deve procurar. Oculta atrás do rosto distorcido daqueles que cometem atos tão monstruosos, há, algures, um pequeno ser humano vulnerável. Etty sabia que o mal, em última análise, é apenas uma máscara, uma grosseira distorção que pode obscurecer por completo o verdadeiro rosto da pessoa subjacente, mas, no entanto, continua a ser apenas uma máscara.«Ninguém - insistia Etty, dirigindo-se a Klaas - é verdadeiramente "mau" no seu ser mais profundo.» No dia em que não conseguiu ver um rosto no comandante que estava a enviar mil judeus para a morte, mas apenas «uma longa e fina cicatriz», Etty não se rendeu a essa convicção. Ela nunca perdeu a esperança de ver - através dos abismos da guerra - o rosto de outro que também seja humano. Tal como nós, também eles são portadores da imagem divina, por muito alterada e oculta que possa estar, por isso, são pessoas a quem nós pertencemos.

Remover da mente o rótulo de «inimigo» é como remover as persianas de uma janela e deixar a luz entrar. Se não os quisermos odiar, então, talvez comecemos a vê-los. Aqueles que desejam destruir-nos são seres humanos. Têm histórias para contar, e famílias e comunidades de onde provêm, tal como nós. Tal como nós, foram moldados pelos seus próprios contextos pessoais e sociais muito particulares. As suas fidelidades, costumes e tradições fazem deles aquilo que eles são. E também têm desgostos, injustiças e humilhações - por vezes terríveis - com que se confrontar.

Esta remoção das persianas permitiu a Etty, no seu tempo, ver a guerra à escala humana, (dês) construindo assim a sua mitologia.

Embora teimosamente centrada na pessoa, ela também reconheceu que as guerras e os conflitos são maiores do que os indivíduos. As pessoas são arrebatadas por sistemas que as devoram: «...não podemos extravasar o nosso ódio sobre os indivíduos - escreveu ela -, a culpa não é de ninguém, o sistema assumiu o controlo...» Com isto Etty queria dizer que a ideologia nazi que envenenara a mente coletiva de um povo inteiro «...uma estrutura ameaçadora capaz de cair sobre nós, esmagando-nos a todos, tanto os que interrogam como os que são interrogados».

Este fenómeno também nos convida a ver e a compreender: a desconstruir sistemas coletivos de pensamento - incluindo o nosso - e a perguntar como e por que razão eles surgiram, e o que está subjacente a eles. As pessoas de ambas as partes dos conflitos podem ficar cegas. Tudo isso só é possível se não houver ódio, pois só assim podemos ser suficientemente desapaixonados para ter alguma probabilidade de ver.

Quando os alemães invadiram a Holanda e a perseguição começou, o ódio passou a ser a moeda corrente de cada conversa entre os judeus, de tal modo que eles já não podiam ver, só podiam odiar. Não conseguiam «apreender as tendências principais», «sondar correntes subterrâneas», não conseguiam perguntar «Porquê?». E os amigos de Etty não queriam fazê-lo. Preferiam o caminho mais fácil. Mantinham as persianas fechadas e só falavam de ódio - tudo muito «claro e muito feio».

Quando nos apercebemos da intensidade da paixão de Etty por desvelar a verdade, o leitor do Novo Testamento é recordado das palavras que se repetem uma e outra vez como um suave e insistente convite dirigido ao leitor, no início do Evangelho de João: «Vinde... e vede.»

 

Um convite a ser corajosos

Finalmente, Etty interpela o estado de espírito do nosso tempo e convida-nos a ser corajosos.

A coragem talvez fosse a sua maior virtude. Graças à sua coragem, Etty confrontou-se com o seu caos pessoal e encontrou a sua identidade; graças à sua coragem, ela foi mais fundo na sua viagem de exploração, descobrindo o terreno divino do seu coração; graças à sua coragem, Etty recusou-se a odiar; finalmente, graças à sua coragem, recusou-se a esconder-se, optando por abraçar o destino do seu povo e por perder a sua vida. Etty mostra que uma vida verdadeiramente humana vive-se seguindo a vida corajosa e paradoxal da autodescoberta e do autoesvaziamento. Assim, no meio da escuridão, Etty encontrou a alegria e manteve-se viva naquele lugar, apesar do poder da morte.

Nas circunstâncias do nosso tempo, de modo particular no meio do nosso medo e do nosso pessimismo acerca do futuro, Etty também nos convida a viver com coragem.

Os que viveram na década de 1960 poderão olhar para trás - sem dúvida com uma grande dose de nostalgia - recordando-a como um tempo de grande otimismo, libertação e novas experiências; como um tempo de rebentar com o horrível colete de forças de tudo o que inibira a vida através da austeridade dos anos do pós-guerra. A década de 1960 convidou-nos à exploração de um novo futuro. Com a sua cor e os seus excessos, com a sua tentativa de derrubar todas as fronteiras, foi uma década que gerou um sentimento de que vinham lá mudanças e de que tudo era possível.

Cinquenta anos mais tarde, passada a primeira década do século XXI, estamos num lugar muito diferente. Esse espírito de otimismo evaporou-se por completo, dando lugar a um profundo sentido de pessimismo quanto àquilo que o futuro nos reserva. Não é exagerado dizer que muita gente, talvez sobretudo as pessoas mais velhas, sentem - segundo Etty Hillesum - que o mundo «se encontra num estado de colapso». Não do colapso violento e apocalíptico por que ela passou, mas de uma lenta e. contínua desintegração da nossa confiança no futuro.

Este pessimismo tem tido por objeto várias preocupações. A mudança climatérica, com todas as suas enormes e assustadoras ramificações, é a mais óbvia, mas há outras. Por exemplo, a possível proliferação de armas nu­cleares, ou a questão imensa da sustentabilidade, em termos de alimentos e de recursos, de uma população mundial projetada para subir de seis mil milhões e meio, para nove mil milhões em 2050. Tudo isto pode parecer questões insuperavelmente assustadoras, tanto para nós como para as futuras gerações. Ao nível nacional, na Grã-Bretanha, o pessimismo tende a focar-se em sintomas de profundo mal-estar social, naquilo que parece ser uma sociedade cada vez mais fragmentada e carente de objetivos.

Ao falar de um mundo que se ia desintegrando com violência à sua volta, Etty interpela o nosso pessimismo, convidando-nos a ser corajosos.

Etty convida-nos a olhar de frente para quaisquer situações difíceis com que possamos confrontar-nos, quer pessoais quer muito mais vastas, e a envolvermo-nos nelas, procurando a vidaatravés desse empenhamento.

 

Integrando o negativo

No caso de Etty, este empenhamento envolveu a aceitação consciente daquilo que não podia ser evitado, uma firme recusa em entregar-se à ilusão, e o acolhimento percetivo dos desgostos e das perdas. Ela confrontou-se com uma situação que parecia completamente isenta de esperança e integrou em si aquilo que parecia completamente negativo, e isso deixou-a livre para enfrentar o presente com coragem, e para acreditar no futuro com esperança. Nisto consistiu a sua transformação. Foi, como já vimos, uma batalha - Etty refere-se a isso como «uma luta» - mas, com tanta honestidade e coragem ela deixou de ser vítima da sua situação, tornando-se plenamente ela própria, nesse contexto. No princípio de julho de 1942, Etty escreveu:

«Sim, nós transportamos tudo dentro de nós, Deus, o Céu, o Inferno, a Terra, a Vida e a Morte, e toda a história. Os aspetos exteriores são apenas outros tantos apoios; tudo aquilo de que precisamos está dentro de nós. E temos de aceitar tudo o que venha: tanto o mal como o bem, o que não signi­fica que não devamos dedicar a nossa vida a curar o mal.»

Eis uma afirmação extraordinariamente abrangente. Etty afirma que traz «Deus» e o «Céu» dentro de si, e talvez com estas palavras se queira referir a momentos e recordações de paz (no exterior, ao sol, junto ao castanheiro?), ou à amizade (em sua casa?), ou ao entendimento (com Spier?), ou à comunidade (os serões musicais que partilhavam?). Mas também escreve que transporta dentro de si o «Inferno» e a «Morte»: que queria ela dizer com estaspalavras? Seria a violência imediata que a cercava? Ou talvez a recordação de amigos que tinham desaparecido de repente? Ou a imagem de casas em ruínas destroçadas pelas bombas? Ou o terror estampado no rosto das crianças? Ou a fome e o medo entre os velhinhos, tão vulneráveis? Ou estaria a referir-se ao futuro com que todos se confrontavam: o sofrimento e a morte num campo de extermínio, que, em seu entender, não podiam ser evitados?

Etty viu tudo isto ou esforçou-se por absorvê-lo. Ela transportava tudo dentro de si. Ela não pretendia alhear-se de tudo o que se estava a passar, nem desviar os olhos do que estava para vir. Tudo isso tinha de ser «transportado» dentro de si. Tudo isso fazia parte dela.

Mas, para o fazer - para aceitar plenamente os factos negativos e para viver com uma abertura tão indefesa frente à totalidade daquilo que a vida nos atira à cara - é preciso ter uma coragem imensa.

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

Patrick Woodhouse
In Etty Hillesum - Uma vida transformada, ed. Paulinas
16.12.11

Capa

Etty Hillesum
Uma vida transformada

Autor
Patrick Woodhouse

Editora
Paulinas

Ano
2011

Páginas
240

Preço
15,80 €

ISBN
978-989-673-173-1




















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