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Estar no mundo e não ser do mundo

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Estar no mundo e não ser do mundo

A construção de estruturas exteriores e a "cristianização", tentativa de conquistar «para Cristo» novos territórios geográficos e culturais/espirituais e anexá-los ao império cristão ("Christianitas [Cristandade]) já existente foi uma missão levada a cabo pelos cristãos durante a manhã da sua história. Em vez da conversão dos pagãos, uma "nova evangelização" deveria começar pela conversão dos cristãos, uma viragem do exterior para o interior, da letra para o Espírito, do estático para o dinâmico, do «sermos cristãos» para o «tornarmo-nos cristãos».

Se esse processo tiver de ser, em certo sentido, um regresso, não deverá constituir uma vã tentativa de regressar a qualquer uma das formas históricas extintas da Igreja, mas antes um regresso àquele que, embora sendo igual a Deus, escolheu a forma humana. Se nós desejamos seguir Cristo, devemos renunciar a qualquer anseio por que o cristianismo ocupe um lugar privilegiado neste mundo. Cada um de nós deve tornar-se "uma pessoa mais", e tomar a sério essa solidariedade para com as pessoas do nosso tempo, em favor das quais a Igreja se empenhou mediante as bonitas palavras do início da Constituição Pastoral "Gaudium et spes": «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de Cristo».

Não receemos perder-nos assim no meio da multidão, ou perder a nossa identidade cristã. Aquilo que nos distinguirá da massa de gente que nos rodeia (mas também o que nos ligará àqueles com quem nós próprios não nos tentaríamos aliar) não são as cruzes nos estandartes nem nas paredes dos edifícios públicos, mas, precisamente, a nossa disponibilidade «para assumir a forma de servos». Tal atitude ("quenose" - o autoesvaziamento da nossa própria vontade) significa adotar uma postura acentuadamente não conformista no meio de uma civilização regida de forma predominantemente pelo êxito material: aqueles que vivem assim podem ser ao mesmo tempo um «sal da terra» oculto e também uma «luz do mundo» bem visível. Cristãos, não continueis a ser «um povo separado» - é assim que eu entendo a mensagem do Concílio. O apóstolo Paulo conduziu-nos para fora desses limites há muito tempo. Não tenhais medo de mergulhar no mundo, de ser um com as pessoas dos nossos dias, nos seus cuidados e interrogações, nas suas angústias e esperanças. Chorai com os que choram, alegrai-vos com os que estão alegres. Porém, nunca esqueçais: isto não é um apelo à conformidade, mas ao amor.

Poderá um discípulo de Jesus amar o mundo? Sobre este ponto - como sobre muitos outros - encontramos várias afirmações no Novo Testamento que - pelo menos à primeira vista - se contradizem mutuamente. Por um lado: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna» (João 3, 16). E por outro: «Não ameis o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo - a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o estilo de vida orgulhoso - não vem do Pai, mas sim do mundo. Ora, o mundo passa e também as suas concupiscências, mas quem faz a vontade de Deus permanece para sempre» (1 João 2, 15-17). (...)

Só se formos chamados por Cristo a segui-lo e se, graças a essa chamada, «o mundo foi crucificado para nós e nós para o mundo» (Gálatas 6, 14), podemos, paradoxalmente, amar o mundo. Isso não nos desliga do mundo nem nos separa das pessoas e dos seus anseios, necessidades, alegrias ou cuidados, mas do «espírito deste mundo», da superficialidade que distrai e constrange. Só então podemos amar o mundo «em Cristo e por Cristo». Não com um amor arrebatador e possessivo, mas com um amor "quenótico", autossacrificado e serviçal, seguindo o exemplo de Cristo. Ninguém tem maior amor do que esse, e o desejo final de Jesus, um novo e eterno mandamento, uma nova aliança (que nós continuamos a renovar em tantas palavras sempre que celebramos a Eucaristia, «a Ceia do Senhor»), é, precisamente, essa forma extrema de amor: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (João 15, 12).

Para o discípulo de Cristo, amar o mundo não significa amá-lo com o amor "acrítico" (idolátrico) e, muitas vezes manipulador dos «filhos deste mundo». Somos advertidos contra isso; trata-se da "concupiscentia" ("desejo") descrita por Agostinho - «concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e estilo de vida orgulhoso». O amor com que nós devemos amar o mundo é solidariedade e serviço. (...) O amor compassivo, serviçal e "quenótico" tem a ver com o mundo das pessoas, "o mundo do Tu". No entanto, até os componentes do mundo não humano, como os animais, as paisagens ou as obras de arte, se temos uma relação não manipuladora com elas, mas uma relação de verdadeiro cuidado, ternura e responsabilidade, podem pertencer não ao reino das "coisas", mas também podem assumir par nós o carácter de "Tu". Também eles se podem tornar um meio através do qual se vislumbra o Tu absoluto. (...)

Já dissemos que só podemos amar o mundo «em Deus». Isso significa: com o "desapego" ou distanciamento crítico que a fé nos confere, mas também com a responsabilidade e o afeto que também são o dom de uma fé e de um amor vivos. Se estamos ligados a Deus mediante a fé e o amor, Deus faz-nos participar parcialmente, tanto na sua transcendência como na sua imanência, na nossa relação com o mundo, permitindo-nos «estar no mundo mas não ser do mundo», para nos mostrarmos solidários, mas não nos conformarmos com ele. Estar no mundo, mas não ser do mundo, é outro dos "koans" que Jesus deu aos seus discípulos na Última Ceia, segundo João. É essa a fonte da dinâmica mais intrínseca da existência cristã no mundo, na sociedade e na história.

Sim, a transcendência e a imanência de Deus são hoje possivelmente mais evidentes para nós do que jamais o foram. Nós reconhecemos que Deus é "mais diferente" e , ao mesmo tempo, está "mais próximo" do que nós pensávamos no passado. (...) Um ato de fé é, hoje em dia, mais um ato de liberdade humana do que jamais o foi no passado (quando, até certo ponto, era impulsionado por uma imagem religiosa tradicional do mundo, transmitida pela cultura e sustentada pela sociedade); isso não impede, porém, que seja, ao mesmo tempo, um dom de Deus «mediante a graça». A fé requer a coragem de escolher e de confiar.

Daí as dificuldades da fé no nosso tempo, mas também a sua beleza e grandeza. A fé é difícil porque, se não quisermos que permaneça nos baixios dos sentimentos desprovidos de implicações, deve assumir a cruz da grande responsabilidade moral (precisamente a responsabilidade de que as pessoas muitas vezes se libertam transferindo-a para Deus). Porém, «o meu fardo é leve», garante-nos Jesus. «O amor tudo suporta», ensina o apóstolo.

O problema espiritual crucial do nosso tempo não é demonstrar fé "aos abalados" (no sentido de convencê-los da existência de Deus), mas, mais uma vez, associar a fé ao amor, porque só uma fé assim é viva e convincente. (...) O restabelecimento da confiança em falta (em particular nos casos em que a cultura da sociedade civil foi suprimida por muito tempo ou deliberadamente destruída por regimes autoritários) é um processo a longo prazo. Quando perguntaram, há muitos anos, a Alexandre Solzhenitsyn qual seria o futuro da Rússia depois da queda do comunismo, ele respondeu: uma longa, longa, longa recuperação.

Naturalmente, a nossa confiança no mundo humano não pode ser tão ingénua e acrítica que subestimemos o mal e o perigo que os poderes do mal representam. O restabelecimento da confiança pressupõe sempre uma certa coragem para correr riscos e também uma disponibilidade para o sacrifício. O mesmo se pode dizer da nossa confiança no mundo, bem como do nosso amor por nós mesmos; se esta falha, não somos capazes de um amor genuíno para com os outros ou para com Deus; se for excessivo e acrítico, a nossa capacidade de amar os outros e a Deus será igualmente afetada. Não admira; afinal, "nós" ainda somos "o mundo". Contudo, a frase «o mundo... ou seja, nós», tem outro significado possível: o mundo é sempre um «mundo com» (...).

Todas as crises e experiências trágicas da "modernidade tardia", com as quais o humanismo secular teve de se confrontar desde a Primeira Guerra Mundial, o mais tardar (e, há que acrescentar, para as quais contribuiu sem dúvida devido à sua unilateralidade), também o ajudaram a amadurecer. Além do secularismo militante e do agressivo "novo ateísmo" (relativamente ao qual não há verdadeiramente nada de novo além da sua surpreendente intolerância), podemos encontrar autores entre os herdeiros do racionalismo iluminista que são muito percetivos acerca das dimensões morais, espirituais e muitas vezes abertamente sagradas da realidade, e que constituem potencialmente valiosos parceiros em termos de diálogo para os teólogos.

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

Tomáš Halík
In "Quero que tu sejas - Podemos acreditar no Deus do amor?", ed. Paulinas
Publicado em 20.07.2016 | Atualizado em 25.04.2023

 

 
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Um ato de fé é, hoje em dia, mais um ato de liberdade humana do que jamais o foi no passado (quando, até certo ponto, era impulsionado por uma imagem religiosa tradicional do mundo, transmitida pela cultura e sustentada pela sociedade); isso não impede, porém, que seja, ao mesmo tempo, um dom de Deus «mediante a graça». A fé requer a coragem de escolher e de confiar
A fé é difícil porque, se não quisermos que permaneça nos baixios dos sentimentos desprovidos de implicações, deve assumir a cruz da grande responsabilidade moral (precisamente a responsabilidade de que as pessoas muitas vezes se libertam transferindo-a para Deus)
O problema espiritual crucial do nosso tempo não é demonstrar fé "aos abalados" (no sentido de convencê-los da existência de Deus), mas, mais uma vez, associar a fé ao amor, porque só uma fé assim é viva e convincente
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