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Entre paraíso e inferno, a via da sabedoria que passa por África

Imagem D.R.

Entre paraíso e inferno, a via da sabedoria que passa por África

Esta não é exatamente uma consideração respeitante à topografia teológica, ainda que esta possa constituir, como é bem sabido, um fascinante motivo cultural. Hoje interessa-me outro aspeto: a embaraçante constatação, experimentada por todos nós, de como, na prática, as polaridades representadas pelo céu e pelo inferno não são, no fundo, coisas contrapostas, como se poderia esperar. E causa-nos algum desconcerto descobrir, ao longo da vida, que são, pelo contrário, terrivelmente semelhantes.

O aspeto sob o qual surge a possibilidade de bem ou do mal não difere assim tanto. O que os separa, como já explicava o ilustre rabino Soloviel, é não raro o impercetível som de uma gota de chuva que cai no mar. Só isto. Ao ponto de aqueles que se arrastam pelos infernos não poderem argumentar que não conheceram o céu, e aqueles que se aventuram pelos céus não podem pensar que nunca se confrontaram com a possibilidade inversa. Em síntese, a ética da existência talvez não comporte que façamos coisas diferentes, mas que realizemos as mesmíssimas coisas de modos diferentes.

Dois exemplos, culturalmente distantes mas suficientemente incisivos para nos porem a refletir. O primeiro é uma história zen. Um belo dia, um discípulo interrogou o seu mestre: «Mestre, qual é a diferença entre o céu e o inferno?». E o mestre explicou: «A diferença é muito pequena, e todavia está cheia de enormes consequências. Imagina uma grande quantidade de arroz já cozinhado. Imagina também que em volta dele estão, paradoxalmente, muitas pessoas prestes a morrer de fome. O problema é que têm garfos com longos cabos, de dois ou três metros. Podem recolher o arroz mas não conseguem levá-lo à boca porque os garfos são demasiado compridos para serem manejados. Assim, os esfomeados solitários debatem-se com o irresolúvel drama da fome diante de tanta, inexaurível abundância. O inferno é isto».

«E o céu, o que seria?», retorquiu o discípulo. «Imagina agora - respondeu o mestre - uma outra grande quantidade de arroz em cima da mesa. À sua volta estão pessoas esfomeadas mas, neste caso, cheias de vitalidade. Nenhuma delas consegue aproximar a comida da própria boca. Os garfos, compridos de dois ou três metros, recolhem o arroz mas são demasiado longos para serem manejados. No entanto, em vez de insistirem em levar o arroz à boca, aqui uns dão de comer aos outros, numa espécie de grande círculo fraterno».

Nelson Mandela referia-se com frequência à sabedoria "ubuntiana". Ubuntu significa, na sua cultura africana, «eu sou porque nós somos». É uma prática ética focalizada nas relações recíprocas entre as pessoas. Indica "benevolência para com o próximo" e representa uma regra de vida baseada na compaixão.

Existem também história para descrever o ubuntu. Como esta: um antropólogo propõe um jogo às crianças de uma tribo africana. Coloca um cesto de fruta apetitosa debaixo de uma árvore e diz-lhes que quem chegasse primeiro a teria toda para si. Quando dá o sinal de partida, agarraram-se todos pelas mãos e dessa forma se puseram a correr. Chegados ao local, agarraram no cesto, sentaram-se à sua volta e saborearam juntos o sabor do prémio.

Mandela descrevia o ubuntu com este testemunho: «Uma pessoa que viaja através do nosso país e para numa povoação não precisa de pedir comida ou água: logo as pessoas lhe oferecem de comer, estão com ela. Ubuntu não significa não pensar em si próprio; significa, antes, colocar-se a pergunta: quero ajudar a comunidade que me rodeia a melhorar? O céu e o inferno também passam por aqui.

 

José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 26.05.2016

 

 
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Imagina uma grande quantidade de arroz já cozinhado. Imagina também que em volta dele estão, paradoxalmente, muitas pessoas prestes a morrer de fome. O problema é que têm garfos com longos cabos, de dois ou três metros. Podem recolher o arroz mas não conseguem levá-lo à boca porque os garfos são demasiado compridos para serem manejados
Um antropólogo propõe um jogo às crianças de uma tribo africana. Coloca um cesto de fruta apetitosa debaixo de uma árvore e diz-lhes que quem chegasse primeiro a teria toda para si. Quando dá o sinal de partida, agarraram-se todos pelas mãos e dessa forma se puseram a correr
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