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Elogio da solidão

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Elogio da solidão

Depois de ter vivido a experiência de duas semanas passadas num lugar retirado sem a possibilidade de ligar-se à internet, a escritora Ruth Thomas publicou as suas reflexões sobre a perda da capacidade de estar em solidão a que nos conduz a vida contemporânea, marcada pelas conexões em rede, mas também sobre o prazer de redescobrir a riqueza e a potencialidade inerente à solitude. Viver alguns dias sem telefone e sem internet é hoje uma experiência excecional, com dimensões antropológicas e espirituais relevantes. Ruth Thomas afirma que lhe parecia estar a viver num tempo passado, noutra época, duzentos anos antes. A sensação de mal-estar que nos colhe quando nos encontramos em situações em que não há rede para o telemóvel e não há possibilidade de ligação à internet diz como depressa nos desabituámos à solidão e ao estar sem fazer nada.

No nosso mundo ocidental a solitude surge como situação a que estamos cada vez menos habituados, e perante a qual estaremos balbuciantes e desarmados quando ela se impuser na nossa vida, quer por uma doença, quer por um abandono, quer pela velhice ou por outras causas.

Nós tememos a solidão e evitamo-la. E procuramos evitar o sentimento do aborrecimento aos filhos ou a quem é educado. Porque é que os pais e educadores procuram tão encarniçadamente evitar o aborrecimento às crianças? Porque é que se procura sempre encher o seu tempo com atividades e o seu quarto com objetos e brinquedos? Talvez por sentido de culpa quando nos parece que não estamos suficientemente presentes com eles? Por medo de que vivam mal a solidão? Que se aborreçam se não tiverem nada que fazer? De facto, nós enchemos os nossos filhos de presentes e de comida, acreditando que os estamos a ajudar, mas assim impedimos que sintam a ausência e o vazio ligados ao aborrecimento. Ausência e vazio que constituem o espaço do possível surgir da criatividade. E todavia as crianças acabarão, em todo o caso, por conhecer a dor da ausência. Seria melhor deixar-lhes a possibilidade de estar sós e em silêncio, ensiná-las a apreciar e a gerir a solidão, de modo que, no dia em que a ausência e a incompletude se fizerem sentir e elas sofrerem a dor da perda, descobrirão ter já em si uma força interior para lhes fazer frente.

Associamos a solidão ao aborrecimento. Na verdade não sabemos cultivar e alimentar os nossos vazios, mas tendemos imediatamente a preenchê-los com imagens interiores, com pensamentos, com diálogos imaginários. Mas dessa forma privamo-nos de poder escutar a nossa angústia. De onde nasce o aborrecimento que nos assalta? De que coisa é motivada a nossa melancolia? De que coisa é sinal? Privamo-nos da possibilidade de escutar as nossas emoções. O vazio que está em nós é também alvéolo de uma expetativa nascente, de um desejo que está a fazer caminho. Tem qualquer coisa a dizer-nos. É preciso escutá-lo. A solidão coloca-nos defronte de uma dimensão interior talvez problemática, mas sem a remover, sem a anestesiar, sem dela fugir. O aborrecimento é um senso de desgosto, de tédio de viver, devido à real ou presumida ausência de estímulos interessantes, à repetição monótona dos mesmos acontecimentos, à ausência de motivações interiores, ao não gosto nas relações. É uma forma de repreensão, o aborrecimento, dirigida aos objetos, por serem insípidos, desinteressantes, banais, superficiais. Todavia, estas conotações negativas do aborrecimento não são as únicas.

Poderemos dizer que o aborrecimento é o momento negativo das grandes perguntas: porquê viver? Porquê agir? Quem sou? Que sentido tem o meu ser? A acídia, essa atonia da alma sobre a qual muito refletiram os padres monásticos, é também uma forma de lucidez sobre a vacuidade do viver, ou pelo menos de muito do que constitui o quotidiano da existência. O aborrecimento pode ser um grande momento de verdade, permite momentos de pausa, de reflexão, de lucidez; de pensamentos próprios e não assumidos a partir do exterior. Sabemos que Einstein desenvolveu a teoria da relatividade quando estava num estado de ânimo particularmente aborrecido e sonhava de olhos abertos. A psicanalista Françoise Dolto, no seu livro "Solidão feliz", sustentou com vigor o quanto é importante, na educação das crianças, deixá-las em momentos de solidão, em que não se faz nada, em que se está só e à margem.

O binómio "solidão - 'ocium'" é amplamente atestado na Antiguidade clássica. Um passo do "De officiis", de Cícero, diz: «Marco, meu filho: de Públio Cipião, que em primeiro lugar teve o sobrenome de Africano, Catão, que era mais ou menos seu coetâneo, conta que era habitual dizer que ele nunca era menos ocioso do que quando era ocioso, nem menos só do que quando estava só». Expressão verdadeiramente esplêndida e digna de um homem grande e sábio: ela diz que também no tempo livre ("in otio") pensava nos negócios públicos ("de negotiis") e em solitude ("in solitudine") falava consigo próprio, e por isso nunca era ocioso e não sentia a necessidade de alguém com quem conversar. Desta forma, ociosidade e solitude ("otium et solitudo"), estas duas coisas que paralisam os outros, a ele, pelo contrário, estimulavam-no. Obviamente, o significado de "otium" e "otiosus" não tem aqui nada de negativo, antes indica o tempo do retiro, o tempo dedicado ao estudo, ao pensar, ao refletir, à atividade espiritual. Ambrósio de Milão realizará uma refundação bíblico-cristã desta dupla terminológica. O bispo de Milão aplicou a si mesmo a expressão ciceroniana: «Com efeito, nunca sou menos só do que quando parece que esteja só, nem menos ocioso do que quando parece que seja ocioso». Silêncio, solidão, tranquilidade eram considerados por Ambrósio elementos de fecundidade e de eficácia também no exercício do seu ministério episcopal.

A noção de "otium" combina, portanto, em si das dimensões da solidão e da inatividade. Mas sobretudo mostra que a solitude é relacional e que a inatividade é operante. Por outras palavras, introduz à vida interior e, em particular, àquela dimensão de paradoxo, de oxímoro, que é a condição da fecundidade do agir e do ser do homem no mundo. Diante da dificuldade de viver a solidão e de estar sem fazer nada, é preciso, portanto, creio, redescobrir a antiga e sempre nova virtude do "otium".

A minha proposta é ousar o desatualizado, tornar atual o desatualizado, ousando-o. Temos necessidade de "otium". Uma das formas com que hoje a solidão é combatida e removida é a hipertrofia da comunicação, a idolatria da comunicação. Diz um passo de Thomas Stearns Eliot: «Onde está a vida que perdemos vivendo? Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?». Vida, sabedoria, conhecimento, informação. Se partimos do fundo, da informação, as palavras de Eliot desenham um clímax. E falam-nos de uma perda de que nós hoje fazemos a experiência. Uma perda vital, de vida sensata. Pode perder-se a vida vivendo. E hoje encontramo-nos muitas vezes desorientados, dececionados, perdidos. No atual contexto de idolatria da comunicação, somos subjugados por demasiada informação, que não sabemos elaborar. Seria preciso um movimento de "tomada de distância de si". É um movimento de resistência individual, um ato de subversão solitária.

Este movimento opõe-se ao da homologação que é típico das sociedades de massa em que o indivíduo é eliminado na sua singularidade. A morte da solitude é dada da criação de pessoas idênticas umas às outras, que têm importância não por si próprias, mas pela função que realizam e que a técnica lhes pede. São homens matriculados e conformes a todos os outros.

O conhecimento é de nível superior à informação. Supõe que haja reflexão e meditação, uma reelaboração racional das informações; supõe que os dados sejam ligados uns aos outros, lidos de pontos de vista variados, entrelaçados até darem sentido, construírem um significado, descobrirem motivações profundas. Este trabalho de conhecimento requer capacidade de solitude, de habitar consigo próprio. Requer a coragem de fazer do pensar um trabalho, abstendo-se de outras atividades.

A ideia da recuperação e da valorização da noção de "otium" é precisamente dirigida à recuperação de uma sabedoria que hoje está perdida. Como já escrevia Agostinho, «o meu "otium" (tempo livre) não é destinado a cultivar a preguiça, mas a alcançar a sabedoria». E Agostinho dizia isto a partir da lição bíblica: «O letrado adquire a sabedoria, no tempo em que está livre de negócios; por isso, aquele que tem poucas ocupações pode chegar a ser sábio» (Ben Sira 38, 24). Ter tempo, dar-se tempo, para poder habitar consigo próprio. De outro modo o risco da nossa incapacidade de solitude é que os nossos corpos se tornem não-lugares, lugares não habitados, lugares sem alma, lugares só de passagem de emoções e flash, de sons e rumores, sem princípio nem fim.

Na Antiguidade clássica o termo "otium" é ambivalente, por vezes negativo (preguiça, inércia, acídia), por vezes positivo (tempo livre para ocupações intelectuais e espirituais, vida contemplativa). Mais tarde a aceção negativa foi absorvida pelo vocábulo "otiositas". A dimensão negativa do ócio esteve sempre presente na tradição cultural e cristã ocidental. O ócio gera a negligência, a incúria, a não perseverança, a incapacidade de suportar a fadiga, a sonolência, uma certa tendência para a vagabundagem e para a instabilidade, a lentidão, o hábito de adiar o que se deve fazer.

Porém, como referimos, na Antiguidade clássica "otium" tinha um outro significado. O conceito de "otium" referia-se a uma prática estabelecida de que Cícero fala nos termos de "cum dignitate otium". O "otium" era o tempo que se passava longe da vida pública, da ação política. O "otium" tem familiaridade com a noção de retiro. O "otium" era o tempo dedicado à leitura, ao estudo, à vida intelectual, à vida contemplativa. A ideia de "ócio literário" encontra aqui a sua origem. A medievalidade faz sua esta conceção do "otium" e transforma-a, desenvolvendo-a em sentido escatológico e religioso: já não se trata apenas de paz interior, de pacificação dos sentidos, da procura e da contemplação do verdadeiro, mas também da procura de uma intimidade com Deus. A ideia de "otium", a expressão "vacare Deo" (ter tempo livre para Deus), tornam-se elementos típicos da experiência monástica, experiência que desenvolve particularmente a dimensão solitária, e que todavia não cria uma vida de privilegiados, mas funde "otium" com a atividade laboral intensa e quotidiana.

Em síntese, o "otium", se é virtuoso, deve afastar de si toda a forma de "otiositas". Sem o cansaço do trabalho manual e intelectual, com efeito, o monge não poderia alcançar aquele distanciamento do mundo, dos próprios pensamentos e desejos que lhe permite alcançar a paz interior e, portanto, a contemplação de Deus. Em suma, o "otium" é um bem na medida em que vê trabalho, fadiga, esforço e aplicação. Um "otium negotiosum" (um ócio laborioso, uma inatividade operativa) como gostam de repetir os monges, e também "negotiosissimum" (laborosíssimo), como especifica S. Bernardo. O "otium" é a possibilidade da solidão positiva, da solidão da alma. E talvez o retomar da atitude espiritual do "otium" possa fazer bem também a nós, hoje, que vivemos uma relação conflitual com o tempo e frenética com o fazer. Mas aqui coloca-se a pergunta: sabemos estar sem fazer nada? Sabemos habitar a atitude positiva, não indolente, mas eficaz, do não fazer?

A fadiga do "otium" está no dedicar-se ao trabalho mais difícil e mais necessário do homem: conhecer-se a si mesmo. Uma existência que esqueça que se começa a viver na interioridade é uma vida não tanto extrovertida, mas inconsciente, cindida. O "otium" permitir-nos-ia aprofundar a noção de vida interior e sobretudo de desenvolver a prática. Prática que conhece muitos movimentos que precisam de ser aprofundados e analisados (tomar atenção, vigiar, interrogar-se, pensar, discernir, decidir, etc.), mas aqui limito-me a elencar as três atitudes de fundo que se apresentam ao homem que decide entrar na vida interior ou, se quisermos, de dar espaço ao "otium" na sua existência. São os movimentos contidos num apotegma de Arsénio, um padre do deserto: «Foge, faz silêncio, sê tranquilo: destas raízes nasce a possibilidade de não pecar». Ou seja, procura conscientemente a solidão, vive o silêncio como ação interior, persegue a paz interior. Trata-se de uma ação fatigante, que exige um esforço, que convoca as energias interiores e espirituais da pessoa para um fim preciso, e que consente ao homem sair da atitude "viciosa", isto é, dos maus hábitos, da tirania dos hábitos que nos agitam e nos tiram liberdade e responsabilidade. O hábito, escreve Séneca, «imobiliza as coisas» e paralisa também a pessoa. O resultado desta ascese, isto é, desta escolha consciente do essencial, é o sentido acrescido de integridade pessoal.

 

Luciano Manicardi
Comunidade monástica de Bose, Itália
In: "L'Osservatore Romano", 25.8.2016
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 25.08.2016 | Atualizado em 25.04.2023

 

 
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O vazio que está em nós é também alvéolo de uma expetativa nascente, de um desejo que está a fazer caminho. Tem qualquer coisa a dizer-nos. É preciso escutá-lo. A solidão coloca-nos defronte de uma dimensão interior talvez problemática, mas sem a remover, sem a anestesiar, sem dela fugir
O aborrecimento pode ser um grande momento de verdade, permite momentos de pausa, de reflexão, de lucidez; de pensamentos próprios e não assumidos a partir do exterior
Uma das formas com que hoje a solidão é combatida e removida é a hipertrofia da comunicação, a idolatria da comunicação. Diz um passo de Thomas Stearns Eliot: «Onde está a vida que perdemos vivendo? Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?»
Este trabalho de conhecimento requer capacidade de solitude, de habitar consigo próprio. Requer a coragem de fazer do pensar um trabalho, abstendo-se de outras atividades
Ter tempo, dar-se tempo, para poder habitar consigo próprio. De outro modo o risco da nossa incapacidade de solitude é que os nossos corpos se tornem não-lugares, lugares não habitados, lugares sem alma, lugares só de passagem de emoções e flash, de sons e rumores, sem princípio nem fim
O "otium" era o tempo que se passava longe da vida pública, da ação política. O "otium" tem familiaridade com a noção de retiro. O "otium" era o tempo dedicado à leitura, ao estudo, à vida intelectual, à vida contemplativa
A fadiga do "otium" está no dedicar-se ao trabalho mais difícil e mais necessário do homem: conhecer-se a si mesmo. Uma existência que esqueça que se começa a viver na interioridade é uma vida não tanto extrovertida, mas inconsciente, cindida. O "otium" permitir-nos-ia aprofundar a noção de vida interior e sobretudo de desenvolver a prática
Limito-me a elencar as três atitudes de fundo que se apresentam ao homem que decide entrar na vida interior ou, se quisermos, de dar espaço ao "otium" na sua existência. São os movimentos contidos num apotegma de Arsénio, um padre do deserto: «Foge, faz silêncio, sê tranquilo: destas raízes nasce a possibilidade de não pecar»
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