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Turismo, cultura, espiritualidade

Dormir em mosteiros (I): Tibães, uma hospedaria renovada e uma oração que atravessou séculos

«Todos os hóspedes que se apresentam [no mosteiro] sejam recebidos como se fosse o próprio Cristo, pois Ele dirá [um dia]: “Fui hóspede e recebestes-me.”»

Tudo começou assim, com Bento de Núrsia, monge que viveu entre cerca de 490 e 547, na região da Umbria italiana (onde, sete séculos depois, nasceria Francisco de Assis). Eram tempos em que o cristianismo, proclamado por Constantino como religião de Estado, esmorecia nas suas práticas e relaxava a exigência de vida. Muitos crentes começaram, então, a retirar-se para lugares de silêncio e solidão, em busca de uma vida mais ascética e purificada.

Bento de Núrsia foi um deles. Decidiu viver numa gruta de montanha em Subiaco, a leste de Roma. Pelo ano de 530, mudou para Monte Cassino. Tomou um texto de uma regra já existente, a Regra do Mestre. Abreviando-a, sublinhou a perspetiva comunitária do monaquismo, aliando ao mesmo tempo a oração, a reflexão intelectual e o trabalho manual - surge o lema ora et labora (reza e trabalha). A regra estabelece também formas de rezar, normas de obediência, regras sobre a propriedade ou o modo de acolher qualquer hóspede que chegue.

Com o texto, Bento tornou-se o iniciador do monaquismo cristão como o conhecemos. Surgiu uma autêntica rede de mosteiros beneditinos, decisiva na construção da identidade europeia medieval - a ponto de, em 1964, o Papa Paulo VI proclamar São Bento padroeiro da Europa - a sua festa litúrgica è assinalada a 11 de julho.

FotoDaniel Rocha/Público

A ideia do acolhimento de quem passava era essencial na vida dos monges. «A cada [hóspede] sejam prestadas as honras convenientes, de modo particular aos “domésticos da fé” [clérigos e monges] e aos peregrinos», acrescentava a regra, que dispunha depois os pormenores práticos.

No inicio do monaquismo, a fuga mundi, fuga do mundo, estava muito presente, traduzindo o desprezo por aquilo que o mundo significava de pecado ou desumanização. Não se tratava de abandonar a vida, mas de ir nas sendas de Deus, traduzindo a tensão permanente da mensagem de Jesus: ele viera não para julgar «mas para salvar o mundo» (Evangelho segundo S. João, 12,47) e dizia, sobre os seus seguidores: «Não te peço que os retires do mundo, mas que os livres do mal» (João 17, 15).

Esta fuga mundi era um exílio purificador, notava a escritora italiana Cristina Campo, a propósito dos primeiros eremitas e anacoretas do deserto: «É o exílio, a travessia o que conta, para eles e que eles vieram ensinar, com os seus monossílabos siderais e as suas monumentais reticências: o ser irreversivelmente estranhos nesta terra, o viver exatamente “como um homem que não existe”.» (Ditos e Feitos dos Padres do Deserto, ed. Assírio & Alvim).

FotoDaniel Rocha/Público

 

Busca interior

Pode ser essa ideia de travessia, de ir de um lugar a outro de cada vida, que hoje leva tantas pessoas a procurar lugares de tranquilidade, natureza e pacificação. Afinal, talvez os monges medievais não estivessem muito longe dessa busca contemporânea. E do anseio de fugir ao quotidiano.

Lugares assim, mágicos, quase sempre, de tranquilidade e silêncio, de reencontro com o mais fundo de si mesmo, onde a água como fonte de vida e sobrevivência estava quase sempre presente, eram também os lugares procurados pelos monges para essa fuga.

Hoje, mosteiros e conventos continuam a ser possibilidades de, na fuga, reencontrar o mundo. E continuam a ser lugares de hospitalidade, mesmo se o acolhimento surge já como um desafio mútuo, para quem chega ou quem está: «Com aqueles que acolhemos (...) queremos procurar a maneira de recuperar um impulso e descobrir como viver Cristo para os demais. (...) Gostaríamos que os jovens encontrassem a paz do coração», escrevia o irmão Roger, de Taizé, a comunidade da Borgonha francesa que acolhe milhares de jovens todos os anos, especialmente durante o verão.

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Em Portugal, há também sítios destes. Que podem ser lugar para umas férias diferentes ou para tempos de descanso. Mosteiros e conventos que convidam à busca interior, à procura do melhor de si mesmo, da natureza ou (para quem crê) de Deus. Onde o acolhimento continua a ser uma dimensão importante.

A revista “Fugas”, do jornal “Público”, foi à procura desses lugares. Que nos permitem, enfim, alargar olhares. No livro Um Deus que Dança (ed. AO), escreve José Tolentino Mendonça: «“Reparai nos pássaros.” “Reparai nos lírios.” Jesus convida-te a expandir o olhar, libertando-o dos rotineiros circuitos. Há quanto tempo não reparas? É tão fácil os olhos colarem-se ao chão e as visões ficarem reduzidas ao minúsculo círculo do eu. O desafio de Jesus é mudar a escala do nosso olhar. Repara além de ti. Fernando Pessoa escreveu: “Nós somos da altura do que vemos.” O que é que tens visto? E como?»

 

Tibães: reencontro com a história

Os agricultores já não virão à Sala do Recibo no próximo dia 29 de setembro, festa de São Miguel, para pagar as rendas. Os hóspedes não serão recebidos pelo irmão hospedeiro nem terão colchas de damasco nas camas. Tão-pouco se podem ler os livros da que era uma das três ou quatro maiores bibliotecas do país. Nem haverá monges de hábito negro a deslizar pelos claustros ou a cantar no coro. Já não há nada disto no Mosteiro de Tibães. Mas por aqui ainda se respira a historia e a monumentalidade desta que foi a casa-mãe dos beneditinos portugueses. E ainda se pode descansar num ambiente tranquilo, embebido pela espiritualidade de outros tempos. Ou rezar com freiras que trabalham no restaurante.

FotoFoto: NAAULF

Bom... Há uma pequena desvantagem para um hóspede contemporâneo de Tibães: em séculos passados, quem pedisse alojamento poderia ficar sem pagar, até três dias - depois disso, era-lhe solicitado um pagamento das despesas. A hospedaria foi recuperada há dois anos, com um projeto do arquiteto José Carlos dos Santos. O Estado entregou ã arquidiocese de Braga a concessão da hospedaria e do restaurante, para cujo serviço, acolhedor, f oram convidadas as freiras da Família Missionaria Donum Dei (dom de Deus).

Esta congregação missionária, inspirada na tradição das carmelitas contemplativas, nasceu em França, na década de 1960, coma vocação de evangelizar também através do serviço de restaurantes, tendo criado a rede Eau Vive (água viva). «O próprio Jesus fez muitas coisas à volta da mesa», justificam. De vestidos coloridos e guitarra na mão, cantam no restaurante, à hora de jantar, o Avé Maria, de Lourdes.

Graças aos clientes dos restaurantes, as mais de 600 freirasdo instituto em todo o mundo podem ajudar os mais pobres. NoBrasil,apoiam crianças de rua, em África têm orfanatos, em Itália ajudam presos e prostitutas, noutros sítios dedicam-se à catequese. Não usam hábito para «poder ir a todos os lugares».

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Na recuperação da hospedaria, o refeitório adapta a antiga casa de comer dos hóspedes. Com mesas para 47 ou 54 pessoas, é um espaço despojado, confortável e atraente. Tal como a sala de estar e os quartos, de linhas sóbrias e muito acolhedoras, onde a solidez do antigo e a comodidade do moderno se juntam

O Mosteiro de São Martinho de Tibães (Braga) oferece-nos um reencontro com a história. Situado numa zona rural e inserido na antiga cerca monacal, a primeira referência conhecida ao edifício data de 1077 Com o tempo, acabaria por se tornar um dos mais importantes mosteiros portugueses.

Dentro da cerca, de 40 hectares (a maior cerca monacal preservada no país), havia o necessário para subsistir: agricultura, floresta para caça e lenha, um moinho, criação de gado, zonas de passeio, meditação e lazer... Tudo organizado, como dizia São Bento, «para que os monges não tivessem saudades de casa». O perfume dos pomares de fruta e a música da água (o Cávado está a uns 400 metr os, há uma fonte e um tanque) permitem, ainda hoje, uma rara exaltação dos sentidos.

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A extinção das ordens religiosas, em 1834, levaria à venda do edifício e à sua posterior degradação, processo só interrompido pela sua compra, pelo Estado, em 1936. Em 1569, o mosteiro tornara-se casa-mãe dos beneditinos portugueses, tendo sido sujeito a campanhas de reconstrução, ampliação e decoração, que fizeram dele um dos mais importantes conjuntos monásticos portugueses.

É essa monumentalidade e diversidade de estilos, a que se junta a convergência entre o antigo e o contemporâneo, que o hóspede hoje pode encontrar. Desde logo na Sala do Recibo, um dos poucos lugares de contacto entre os monges e o exterior. Aqui, os agricultores pagavam as pensões das terras arrendadas ao mosteiro. Duas tulhas, livros, móveis e o chão de tijolo recordam essa utilização, como explica o historiador Paulo Oliveira, responsável pelo serviço educativo do Mosteiro de Tibães. Hoje, ao lado da receção, a sala acolhe exposições temporárias.

O mosteiro organiza-se à volta da igreja, dos dois claustros (o do cemitério, junto ao templo, e o do refeitório), dois jardins (o do pátio dos noviços e o do Reverendíssimo, que se pode ver de alguns dos quartos) e dois pátios, para serem vistos de cima: o de São João e o das adegas. Neste último, estavam os palheiros e galinheiros, enquanto ã volta do São João ficava a hospedaria dos ilustres. Um passadiço de 1734 permite esconder o pátio das adegas e dava ao de S. João um cenário barroco teatral. Um pequeno espaço museológico e de livraria colocado na antiga estrebaria mostra peças do quotidiano dos monges, a maqueta do atual mosteiro e um capitel do período visigótico.

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Ao lado da igreja está o claustro do cemitério, onde (além da igreja e das capelas) eram também enterrados os monges. Lugar de silêncio, túmulos numerados, os painéis de azulejo que contam a vida de São Bento são um dos elementos notáveis do claustro.

Podemos subir a partir daqui. Em cima está a Caza do Capítulo. É, ainda hoje, um espaço sumptuoso, onde podemos ver a Mesa do Definitório e a cadeira de braços do Reverendíssimo e sentir os perfumes do pomar e dos campos. Aqui eram eleitos os responsáveis da ordem para cada triénio.

Em 1834, a botica do mosteiro, que distribuía remédios aos pobres, foi um dos argumentos usados para defender o não encerramento do mosteiro. Não foi suficiente e a botica foi comprada pelo boticário José Moutinho de Carvalho, de Barcelos, por 26$100 réis.

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A biblioteca era outro lugar privilegiado. Em 1834, deveria ter uns 26 mil a 28 mil volumes. Em I772, Tibães pedira autorização para ter obras proibidas pelo Índex. Voltaire, Rousseau e outros autores do Iluminismo, interditos pela Igreja na época, estavam entre os autores disponíveis. Só o conhecimento das fontes podia levar à sua refutação, argumentavam os monges. A autorização foi concedida, desde que os livros estivessem em armários fechados à chave, para obstar à sua consulta por algum monge sem autorização especial.

Não foi por acaso, explica Paulo Oliveira, que daqui saíram vários monges adeptos do Iluminismo e do Liberalismo. E que o primeiro presidente das Cortes liberais foi o beneditino frei Vicente da Soledade, eleito deputado pelo Minho, em 1820.

A fachada da igreja é dominada por imagens de São Bento e Santa Escolástica, patronos dos beneditinos, e uma outra que mostra São Martinho de Tours e o mendigo com quem ele terá, conta a lenda, repartido a capa. Austera por fora, muito rica em talha por dentro, a igreja é um distinto exemplar da arte barroca. Inclui ainda um órgão rocaiíle, dominado pela representação das três virtudes teologais e de uns sátiros atlantes, que podem ser uma representação do demónio – a língua saía quando se tocava.

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Era no coro alto ou na igreja que os monges rezavam os oito ofícios divinos: matinas, laudes, vésperas, completas e as horas intermédias. As misericórdias, a peca da cadeira que servia para o monge se recostar sem se sentar, representam rostos humanos, sátiros e animais, mas com formas fantasiosas.

Hoje, as irmãs Donum Dei já não sobem ao coro alto da igreja para as suas orações - que seguem também o ritmo monástico e nas quais os hóspedes podem participar. A pequena capela está indicada, no corredor da hospedaria, por um crucifixo do Senhor dos Milagres e Maria Madalena aos seus pés.

De manhã, na oração de Laudes, a música dos cânticos confunde-se com o canto dos pássaros do lado de fora. A luz é coada suavemente pela janela, com o sol a carregar ainda mais o amarelo das paredes. «Exaltai o Senhor, nosso Deus, tu és o meu Deus, procuro-te desde a aurora», rezam as cinco freiras. Rosalie Valefakáaga, que toca guitarra, Theodora Tofeila e Lucie Valugofuluvan da Polinésia Francesa, Francisca Moreano vem do Peru, Adelaide Hien e Christine Ouedraogo do Burkina Faso.

FotoFoto: Mosteiro de Tibães

Ao fim do dia, na oração de vésperas, rezam ainda: «Bem eu sei a fonte que mana e corre/ Embora seja noite.» Já não há as vozes graves dos monges beneditinos a cantar, mas a mesma oração atravessou os séculos.

 

O espaço

As 16 celas para hóspedes da antiga hospedaria de Tibães foram agora reconvertidas em seis quartos duplos e três singles. Os quartos são aquecidos ou arrefecidos por um sistema de água que passa pelo teto e não se ouve - um pequeno luxo que os hóspedes de outros tempos não tinham.

Cada quarto esta equipado com cama, mesas de cabeceira embutidas na parede, tal como a secretária, uma cadeira e um ecrã de televisão. Um vidro grosso, que pode ser tapado com uma cortina, isola a área de dormir da casa de banho. No corredor abre-se um espaço que comunica para uma grande varanda. Numa lógica de continuidade entre os quartos e o largo corredor, o soalho é todo em madeira - tal como as portadas das janelas, que mantêm a traça antiga.

FotoDaniel Rocha/Público

O pequeno almoço inclui sumo, leite e café, iogurte, pão, croissant, compotas variadas, queiio, fiambre e bolo No restaurante Eau Vive o serviço é à carta É recomendável telefonar antes. Durante o mês de julho, assinalando o mês de São Bento, o restaurante propõe aos fins de semana uma ementa beneditina A internet só funciona bem na sala de estar, nos quartos o acesso é muito difícil

 

Como chegar

O Mosteiro de Tibães fica a seis quilómetros de Braga, em Mire de Tibães Na internet há indicações dos vários percursos possíveis; pode também enviar-se um mail sem assunto nem texto para visitartibaes@culturanorte pt, recebendo uma resposta com as indicações As coordenadas GPS são 41º 32'21.65"N 08º 28'43.53"W.

 

Preços

Quarto, com pequeno-almoço incluído. Época alta – duplo: 86 euros; single: 77 euros. Época baixa – duplo: 77 euros; single: 66 euros.

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O que fazer

Além da visita obrigatória aos diferentes espaços do mosteiro, Tibães propõe todos os meses um conjunto de atividades culturais complementares.

Uma horta pedagógica e uma desfolhada anual são outras atividades propostas. Além de dois percursos pela cerca (quinta) do mosteiro: um de 45 minutos, que atravessa as hortas, a escadória e o lago, outro que atira para hora e meia, que passa pela mata (de carvalhal, azevinho, hera, gilbarbeira) e termina no jardim e capela de São Bento.

 

António Marujo
In Público (Fugas), 7.7.2012
09.09.12

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Foto
Azulejos no Mosteiro de Tibães
Foto: Igespar

 

 

 

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