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É da «cultura da indiferença» que advertiu o papa Francisco na missa celebrada esta terça-feira, na casa de Santa Marta, ao convidar a seundar «o primeiro passo que Deus faz sempre para connosco» e a olhar para as necessidades das pessoas, sobretudo os mais pobres, «sem nunca voltar as costas».
«A primeira carte do apóstolo S. João é centrada no amor: é uma exortação ao amor», afirmou o papa, referindo-se ao passo proposto pela primeira leitura bíblica proclamada nas missas de hoje (1 João 4, 7-10): «Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus». Mas «esta palavra “amor” – precisou – é usada tantas vezes, tantas vezes, superficialmente: mesmo uma telenovela venezuelana fala do amor e diz: “ah, que belo é o amor! Tudo é amor”».
Por seu lado, prosseguiu o papa, «João vai um pouco adiante para explicar o que é o amor: “Nisto se manifestou o amor, o amor de Deus em nós: Deus enviou ao mundo o seu Filho unigénito, para que nós tenhamos a vida por meio dele”».
É por isso, prossegue Francisco, «não fomos nós a amar Deus, mas é Ele que nos amou». «Este é o mistério do amor: Deus amou-nos primeiro, amou-nos primeiro, deu o primeiro passo e daí vem o amor».
Deu «este primeiro passo em direção a cada um de nós, em direção da humanidade que não sabe amar, precisa das carícias de Deus para amar, do ensinamento de Deus para amar, do testemunho de Deus».
E «este primeiro passo que Deus deu é o seu Filho: enviou-o para nos salvar e dar um sentido à vida, para nos renovar, para nos recriar? O primeiro passo «é sempre Deus que dá».
«Para entender bem isto – sugeriu Francisco, referindo-se à passagem evangélica de Mateus (6, 34-44) – podemos ir ao texto do Evangelho que lemos, e aí encontramos uma palavra que o explica». Deus vai ao encontro de cada pessoa por «compaixão».
Com efeito, lê-se no Evangelho: «Naquele tempo, descido da barca, Jesus viu uma grande multidão, teve compaixão dela», porque, acrescentou o papa, «estavam sós», e como escreve Mateus, «eram como ovelhas que não têm pastor».
É então, assinalou o papa, que «o coração de Deus, o coração de Jesus se comove e vê, vê aquela gente, não pode ficar indiferente: o amor é inquieto, o amor não tolera a indiferença, o amor tem compaixão».
A compaixão, aprofundou Francisco, «significa pôr o coração em jogo, significa misericórdia», e assim «jogar o próprio coração para os outros: é isto o amor».
«Havia os discípulos – prosseguiu o papa – que tinham começado a escutar Jesus e depois, seguramente, aborreceram-se porque Ele dizia sempre as mesmas coisas: “Sim, já sabemos”. E talvez, penso eu, começaram a falar entre eles, não sei, sobre futebol, sobre aqueloutro, sobre coisas do momento». Assim, enquanto «Jesus ensinava com amor, com compaixão», eis que «os discípulos olhavam para o relógio e diziam “já é tarde…”».
De facto, explicou Francisco, o Evangelho continua com estas palavras: «Fazendo-se tarde, aproximaram-se dele os seus discípulos, dizendo: “Este lugar é deserto e já é tarde; despede-os, de modo que, andando pelos campos e povoações próximas, possam comprar o que comer”». Como que a dizer: «Eles que se arranjem e que comprem o pão; mas nós estamos seguros», porque «sabiam que tinham pão para eles e queriam guardá-lo: é a indiferença».
«Aos discípulos não interessavam as pessoas: interessava Jesus, porque lhe queriam bem, e não eram maus: eram indiferentes, não sabiam o que era amar, não sabiam o que era compaixão, não sabiam o que era indiferença», apontou o papa. Os companheiros de Jesus «tiveram de pecar, trair o Mestre, abandonar o Mestre, para compreender o núcleo da compaixão e da misericórdia».
Mas «a resposta de Jesus é cortante: “Vós próprios, dai-lhes de comer”». Que quer dizer: «encarregai-vos deles». Esta é, precisamente, «a luta entre a compaixão de Jesus e a indiferença, a indiferença que se repete na história sempre, sempre: há muita gente que é boa mas não compreende as necessidades dos outros, não é capaz de compaixão». «Há gente boa» mas «talvez não tenha entrado o amor de Deus no seu coração ou não tenham deixado entrar».
«Vem à minha mente uma fotografia que está na Esmolaria: um disparo espontâneo feito por um bravo rapaz romano e oferecido à Esmolaria. Noite – noite de inverno, via-se pela maneira de vestir das pessoas, as peliças –, saía de um restaurante gente toda bem coberta com as peliças. Satisfeitos – tinham comido, estavam entre os amigos, é bom isso –, e ali estava um sem-abrigo, no chão, e o fotógrafo foi capaz de capturar o momento no qual as pessoas olham para outro lado, para que os olhares não cruzem ali», observou o papa.
Nesta imagem, insistiu, está «a cultura da indiferença», e «é isso que fizeram os apóstolos», sugerindo-lhe: «Despede-os, que vão pelos campos, ao escuro, com fome, que se arranjem: é problema deles».
«O amor de Deus vem sempre primeiro», repetiu. Porque «é amor de compaixão, de misericórdia: dá o primeiro passo, sempre». E «é verdade que o oposto do amor é o ódio, mas um ódio consciente não existe em muita gente». Em vez disso, «o oposto mais quotidiano ao amor de Deus, à compaixão de Deus, é a indiferença», essa que conduz a dizer: «Estou satisfeito, não me falta nada. Tenho tudo, assegurei esta vida, e também a eterna, porque vou à missa todos os domingos, sou um bom cristão. Mas saindo do restaurante, olho para outro lado».
«Rezemos ao Senhor para que cure a humanidade, começando por nós: que o meu coração se cure desta doença que é a cultura da indiferença», concluiu Francisco.