Martin Buber observava que existem dois tipos de relação: “eu tu” e “eu-isso”. Na primeira, a outra pessoa é um “tu”. Na segunda, a outra pessoa é um objeto. No femicídio, o masculino considera a mulher o seu “isso”, não quer que alguém lhe arranque aquilo que considera sua posse. É a “coisificação” da pessoa, reduzida a objeto. Isto é favorecido por uma perversão da categoria sexo. Na natureza humana estão ínsitos três níveis de relação: o primeiro é o sexual, fundamental e instintivo; depois há um segundo o do “eros”, que começa a ser uma realidade que já não é só instintiva e animal – a descoberta da beleza, da ternura, da fantasia. O terceiro, que chamamos amor, é especificamente humano, e está no nível mais alto.
A cultura contemporânea simplificou estes níveis. Os jovens têm relações sexuais aos 14-15 anos. Pode haver um vislumbre de afeto, mas inserido numa série de experiências de posse. Têm a ideia de posse no cérebro. É preciso ensinar aos jovens a ternura, que faz parte do “eros”, e os sentimentos, para que não vivam só a posse. Até há alguns anos, na relação interpessoal tradicional havia contacto de olhares, de cores, de odores. Hoje, a relação acontece nos “chats”. É o problema do transhumanismo. Mais do que uma educação sexual, porque os jovens já sabem tudo, é preciso uma educação cultural, não só psicológica. Um dos antecedentes do femicídio é nunca se ser capaz de considerar que o outro tem a sua autonomia, e que não é uma posse.
O fenómeno do femicídio está repleto de números, análises e dados sociológicos. Falta o ponto de vista antropológico. Faz medo a pergunta sobre o porquê, sobre as causas profundas. Aqui entra o discurso do pecado e da liberdade da pessoa. Como lemos no romance “A sonata de Kreutzer”, de Tolstói, quando não se protege o sentimento, pode passar-se do amor ao ódio. E há casos em que o mistério do mal é evidentíssimo: por exemplo, matar a filha da ex-companheira para lhe provocar uma dor indizível.
Tendo mudado a atmosfera que respiramos, é difícil para as instâncias educativas, como a escola ou a Igreja, criar um ambiente diferente; como é que se consegue ensinar aos jovens a ter uma verdadeira relação? A cultura contemporânea não ajuda, e a internet vai numa direção oposta, veiculando violência. Mas isso não significa resignar-se: cultura e comunicação não devem limitar-se a registar os factos noticiosos, mas refletir em profundidade. A cultura pode fazer algo mais.
No passado, a Igreja não fez muito pela valorização da mulher. Hoje, deveria haver um espaço alto, relevante, para reconhecer todas as mulheres que são vítimas, que viveram uma experiência negativa.
A menudo las mujeres son ofendidas, golpeadas, violadas, inducidas a prostituirse… Si queremos un mundo mejor, que sea casa de paz y no patio de guerra, debemos hacer todos mucho más por la dignidad de cada mujer.
— Papa Francisco (@Pontifex_es) November 25, 2020