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A cruz e a flor de lótus: O diálogo entre cristianismo e budismo

Durante a sua recente visita a Myanmar, o papa Francisco prodigalizou-se em gestos de respeito e atenção para com o budismo e as suas tradições. Dirigiu-se aos monges budistas, extraiu citações da escritura antiga do "Dhammapada" e relacionou os ensinamentos budistas com os cristãos, em particular com os de S. Francisco de Assis. Ele desejava que não houvesse qualquer dúvida sobre o facto de a Igreja católica estar pronta para o diálogo com o budismo.

Este entusiasmo tão explícito poderia surpreender alguns observadores ocidentais bem conhecedores das relações muitas vezes difíceis entre o cristianismo e as outras fés do mundo. Não foi há muito tempo que alguns missionários qualificaram Buda como um demónio maligno. Todavia, na sua aproximação ao budismo, o papa Francisco, na verdade, nada mais faz do que voltar a uma antiquíssima tradição cristã - ao tempo em que as duas fés avançavam lado a lado.

Tempos houve em que a flor de lótus e a cruz estavam entrelaçadas. O diálogo inter-religioso é sempre uma questão delicada, porque toda a religião que reclame um acesso exclusivo à verdade encontra dificuldade em colocar as outras fés religiosas dentro do seu próprio esquema cósmico. Grande parte das Igrejas cristãs defende que só Jesus é o Caminho, a Verdade, a Vida, e muitos sentem como obrigação levar essa mensagem aos não crentes em todo o mundo. Mas isso cria um conflito fundamental com os seguidores de famosas figuras espirituais, como Maomé ou Buda, que pregaram mensagens totalmente diferentes. Atendo-se a uma interpretação rígida da Bíblia, alguns cristãos consideraram estas fés como rivais enquanto não simplesmente falsas, mas também como armadilhas deliberadamente preparadas pelas forças do mal.



A europeia não é a única versão da fé cristã, nem é necessariamente a mais antiga descendente da Igreja antiga. Durante mais de mil anos, outros ramos da Igreja fundaram comunidades prósperas na Ásia



Nos últimos 40 anos, a Igreja católica romana empreendeu repetidas batalhas sobre a questão da unicidade de Cristo e expressou a sua intolerância para com aqueles pensadores que fizeram esforços audaciosos para se abrirem a outras religiões. Embora o diálogo entre o cristianismo e o islamismo tenha estado sempre em primeiro plano, é o encontro com o hinduísmo e, acima de tudo, com o budismo que suscitou a controvérsia mais dura no interior da Igreja.

Ao longo dos anos, os teólogos Aloysius Pieris e Tissa Balasuriya, originários do Sri Lanka, tiveram muitas discussões com os críticos do Vaticano, e o próprio Vaticano ordenou uma investigação sobre o teólogo norte-americano Peter Phan, que aparentemente considerou o budismo do Vietname, a sua terra de origem, como um caminho paralelo para a salvação. A Igreja católica teme há muito a perspetiva do sincretismo, a diluição da verdade cristã numa mistura com outras fés. Uma visão que surge na forte tradição do cristianismo desenvolvida na Europa desde os tempos de Roma.

No entanto, há outra tradição antiga que sugere uma direção muito diferente. A europeia não é a única versão da fé cristã, nem é necessariamente a mais antiga descendente da Igreja antiga. Durante mais de mil anos, outros ramos da Igreja fundaram comunidades prósperas na Ásia e, em termos absolutos, o número dessas Igrejas não era comparável ao pouco com que a Europa podia contar nesse tempo.

Estas comunidades encontraram a sua ascendência não em Roma, mas diretamente no movimento originário de Jesus da Palestina antiga. Elas espalharam-se pela Índia, Ásia Central e China, sem hesitar em compartilhar as suas convições com outras grandes religiões orientais e a aprender delas.



Se esses nazarenos puderam encontrar sentido na cruz-lótus, por que não deveriam os católicos de hoje ou os outros herdeiros da fé inspirada por Jesus? Muitos cristãos, ao reconhecerem que hoje em dia a sua fé está a tornar-se uma religião global, procuram maneiras de repensar muitas das suas aquisições fundamentais



O quanto esses cristãos estavam prontos para ir longe é demonstrado por um símbolo surpreendente que apareceu no início da Idade Média em lápides e incisões de pedra, tanto no sul da Índia quanto ao longo da costa da China. Nele é muito fácil, em primeiro lugar, reconhecer uma cruz, mas depois de um olhar mais atento percebe-se que a base do desenho - a raiz da qual a cruz germina - é a flor de lótus, símbolo budista da iluminação. Muitas Igrejas tradicionais dos tempos modernos condenariam essa mistura como uma traição à fé cristã, um exemplo de multiculturalismo sem controle. No entanto, as preocupações do sincretismo não incomodavam os primeiros cristãos da Ásia, que se chamavam a si próprios "nasraye", nazarenos, como os primeiros seguidores de Jesus.

Eles socializavam tranquilamente com as outras grandes religiões monásticas e místicas da época e, além disso, acreditavam que tanto o lótus quanto a cruz eram portadores da mesma mensagem de busca de luz e salvação. Se esses nazarenos puderam encontrar sentido na cruz-lótus, por que não deveriam os católicos de hoje ou os outros herdeiros da fé inspirada por Jesus? Muitos cristãos, ao reconhecerem que hoje em dia a sua fé está a tornar-se uma religião global, procuram maneiras de repensar muitas das suas aquisições fundamentais. Mesmo os líderes da Igreja moderna que reconhecem a rapidez com que a Igreja se está a expandir no sul do planeta tendem a considerar os valores e tradições europeus como a norma irrenunciável em matéria de liturgia e teologia, assim como de música e arquitetura.

No entanto, o cristianismo, desde os primeiros tempos, foi uma fé intercontinental, firmemente enraizada na Ásia e na África, assim como na própria Europa. Ampliando a nossa visão para examinar a fé que se espalhou da Irlanda à Coreia desde o século XIX, podemos ver as muitas maneiras diferentes pelas quais os cristãos interagiram com outros crentes através de um encontro que reformulou ambos os lados.

No melhor dos casos, esses contactos permitiram às tradições não apenas uma troca de ideias, mas também um entrelaçamento produtivo e enriquecedor, num formidável capítulo da história cristã que as Igrejas ocidentais não esqueceram. Para compreender esse facto é necessário reconfigurar os nossos mapas mentais.


 

Philip Jenkins
In L'Osservatore Romano
Trad.: SNPC
Publicado em 26.04.2018 | Atualizado em 10.10.2023

 

 
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