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Crise ambiental e condição humana: A propósito da "Laudato si'"

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Crise ambiental e condição humana: A propósito da "Laudato si'"

De Naomi Klein a Leonardo Boff, a Encíclica “Laudato si'” do papa Francisco mereceu um coro de aprovação por parte dos mais diversos setores do mundo académico, mas também da opinião pública e publicada. No capítulo IV, o Papa Francisco desenvolve a sua conceção de «Ecologia integral». Como tantas vezes acontece na história do pensamento, a inovação não resulta da invenção gratuita de categorias e propostas teóricas, mas sim de uma sábia sedimentação e recomposição de materiais anteriores. Sempre mantendo-se num registo de cordialidade argumentativa, até mesmo nos momentos e linhas de demarcação, o Papa Francisco recusa a fragmentação epistémica que em grande medida tem tornado a crise ambiental numa enorme realidade paradoxalmente invisível, até mesmo para muitas camadas da população mundial de elevada literacia. Com efeito, a crise ecológica tem sido vítima da clássica cisão entre as «duas culturas» (para usar a expressão de Charles Snow, numa célebre conferência de 1959).(1) Para compreender a centralidade do desafio ontológico e civilizacional da crise ambiental, não a podemos deixar refém de nenhuma área específica do conhecimento. O ambiente não é propriedade da física ou da biologia, nem sequer das mais recentemente designadas ciências da Terra. O ambiente só poderá ser compreendido em todas as suas implicações se mobilizar os esforços de todos os domínios do conhecimento, da cultura e da organização social, incluindo as ciências sociais e humanas. A crise ambiental envolve mudanças profundas operadas na face do planeta e no seu funcionamento interno, até a hipótese de uma nova era geológica, como é o caso da proposta do “Antropocénico”, avançada pelo Prémio Nobel da Química, Paul Crutzen, em 2000.(2) Contudo, os desafios sociais exigem um compromisso por parte da economia, do direito, da psicologia, da sociologia, das ciências políticas, das artes, e de todos os olhares sobre o mundo humano.

 

Crise ambiental e responsabilidade humana

Cometeríamos um erro se olhássemos para esta Encíclica, guiados apenas pela urgência dos desafios climáticos. Essa urgência é inegável, e está patente na meditação papal. Mas não produz nela nenhum efeito de distorção. Para o Sumo Pontífice, para além da perigosa encruzilhada climática, a crise ecológica envolve, entre outras facetas, a poluição dos oceanos, o desaparecimento da diversidade biológica, as incertezas com os OGM (organismos geneticamente modificados), a desertificação e a desflorestação, a injustiça no acesso aos recursos naturais e à propriedade da terra, a penosidade da existência de milhões de seres humanos que diariamente labutam pela obtenção do parco alimento e da escassa água de que se nutrem. A devastação da Terra nunca pode ser divorciada do sofrimento dos seres humanos, mais vulneráveis, que dela habitam e dependem.

A crise ecológica está mergulhada no mistério da história. Como nos diz o Papa, no capítulo III, evocando um clássico texto de Lynn White Jr, tem uma «raiz humana».(3) Uma perigosa combinação entre tecnologia e globalização, aliada a uma visão desumana da economia, como processo de acumulação e reprodução de capital, e não como meio para vencer a pobreza e promover a emancipação dos indivíduos e dos povos. Nessa poderosa aliança reside a fonte de muitos dos males e ameaças à nossa civilização. Não se trata tanto de colocar em causa cada um desses elementos de modo autónomo e isolado (tecnologia, globalização, economia de mercado), que correspondem a capacidades e necessidades humanas, mas sim de compreender os laços patológicos que atualmente os unem numa errada hierarquia de valores. O segredo do futuro, passará por uma nova recomposição dos laços entre esses poderosos campos da experiência e da ação, numa nova aliança destinada a reconciliar a História e a Natureza. Sem essa recomposição, tanto a Terra como os mais pobres e deserdados continuarão a ser devorados no altar de uma conceção de crescimento, sem valores que a limitem e lhe confiram propósito.

 

Habitar a Casa Comum

Um dos momentos mais altos desta encíclica reside nas proposta do Papa Francisco para alterar a diplomacia ambiental. Indo ao essencial, o Papa propõe uma radical mudança das regras do jogo que desde a paz de Vestfália (1648) têm sido consideradas como o cimento da sociedade internacional. Com efeitos, o modelo soberanista, vertical e competitivo de exercício do poder territorial dos Estados é completamente inadequado para o sábio uso e a justa gestão de bens que são, por sua essência própria, comuns a toda a humanidade. Os oceanos não param nas fronteiras políticas, e as emissões de gases de estufa produzidas em qualquer região industrial da Europa ou da Ásia irão afetar as condições de existência dos distantes habitantes da Polinésia que são vítimas da subida do NMM (Nível Médio do Mar), impulsionada, precisamente, pela alteração da estrutura química da atmosfera global. A crise ecológica é uma ameaça comum global. Não existem santuários. Mais tarde ou mais cedo, essa crise atingirá, se não for feito o que é necessário, todas as latitudes e longitudes. Precisamos, por isso, de um modelo de sistema internacional baseado na cooperação determinada e vinculativa contra o perigo comum, defendendo os equilíbrios ecológicos e ambientais que são igualmente, do interesse comum de toda a humanidade. Nesta linha, o Papa Francisco não só se aproxima das modernas correntes da diplomacia ambiental e do internacionalismo institucional, que tantas vezes tem procurado reformar as Nações Unidas, mas beneficia inteiramente da herança da esquecida Escola Ibérica da Paz, uma corrente de teólogos e frades dominicanos, franciscanos e jesuítas, espanhóis e portugueses, que nos séculos XVI e XVII se opuseram aos piores abusos dos impérios peninsulares na América. E fizeram-no, precisamente, em nome de uma conceção universalista e humanista das relações internacionais.(4) Também o Papa Francisco denuncia a injustiça entre gerações e as formas violentas de domínio sobre as camadas sociais, os povos e as nações mais expostas ao império do presente e dos interesses mais egoístas que também encontram nas relações internacionais, nomeadamente nos acordos de comércio e investimento, um poderoso e opaco veículo de propagação.

Só sabendo habitar a Terra como verdadeira casa comum, como dimensão de «mundanidade», do «estar-no-mundo», na aceção de Hannah Arendt, seremos capazes de respeitar a oferta ontológica da existência. Governar o mundo, que nos foi graciosamente dado, com sabedoria, significa também que temos a consciência plena de que a condição humana está longe de ter atingido a sua maturidade. Pois aquilo que nós somos, a nossa essência mais profunda, está ainda por revelar. Defender a Criação, ou o Ecossistema planetário, significa dar uma oportunidade ao melhor de nós próprios. A uma compreensão da aventura humana como um projeto misteriosamente iniciado no tempo e projetado na história que pertence às gerações futuras levar a cabo. Salvar a casa comum, proteger a Natureza, respeitar o ambiente, são sinónimos das tarefas que se colocam na agenda de uma dignidade humana que não se esgote numa mera enunciação retórica.

 

(1) Charles Percy Snow, The Two Cultures, with Introduction by Stefan Collini, Cambridge, Cambridge University Press, [1959], 2003.
(2) Paul J. Crutzen Crutzen e E. F. Stoermer (2000). "The 'Anthropocene'". Global Change Newsletter 41: 17–18.
(3) Lynn White Jr., "The Historical Roots of our Ecological Crisis", Science, nº 155, 1967, pp. 1203-1207.
(4) Pedro Calafate e Ramón E. Gutiérrez, Escuela Ibérica de la Paz/Escola Ibérica da Paz, Editora Universidad Cantabria, 2014.

 

Viriato Soromenho-Marques
Universidade de Lisboa
In "Observatório da Cultura", n.º 22 (novembro 2015)
Publicado em 11.11.2015 | Atualizado em 26.04.2023

 

 

 
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A devastação da Terra nunca pode ser divorciada do sofrimento dos seres humanos, mais vulneráveis, que dela habitam e dependem
Sem uma nova aliança destinada a reconciliar a História e a Natureza, tanto a Terra como os mais pobres e deserdados continuarão a ser devorados no altar de uma conceção de crescimento, sem valores que a limitem e lhe confiram propósito
O Papa Francisco não só se aproxima das modernas correntes da diplomacia ambiental e do internacionalismo institucional, mas beneficia inteiramente da herança da esquecida Escola Ibérica da Paz, uma corrente de teólogos e frades dominicanos, franciscanos e jesuítas, espanhóis e portugueses, que nos séculos XVI e XVII se opuseram aos piores abusos dos impérios peninsulares na América
Salvar a casa comum, proteger a Natureza, respeitar o ambiente, são sinónimos das tarefas que se colocam na agenda de uma dignidade humana que não se esgote numa mera enunciação retórica
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