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Breve História da Alma

A editora D. Quixote lançou este mês a obra “Breve História da Alma”, assinada pelo presidente do Conselho Pontifício da Cultura, o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, de que oferecemos a introdução.

«Depois de ter sido um sucesso literário, também foi um evento cinematográfico: acompanhado pela cativante melodia da canção Neverending Story, em 1984 aparecia nos ecrãs o filme “História Interminável” dirigido por Wolfgang Petersen, filme que selava o triunfo editorial do romance homónimo, obra do escritor alemão Michael Ende, falecido em 1995. Naquele livro, literariamente não excelso, havia uma frase sugestiva que gostaríamos de transcrever:

«Caminhámos em frente tão rapidamente em todos estes anos, que agora devemos deter-nos um instante para permitir que as nossas almas se reúnam.»

Sim, a vida contemporânea tornou-se cada vez mais frenética; a técnica, cada vez mais sofisticada; a corrida ao prazer, cada vez mais acelerada. A alma, que precisa de quietude, de serenidade e de afastamento, que se alimenta de reflexão e de silêncio, ficou para atrás, perdida nas brumas das campanhas abandonadas, suspensa nos cumes dos montes, ondulando nas extensões marinhas, onde talvez se encontre por instantes durante as férias estivais. Porém, imediatamente depois, perde-se e deixa-se pelo caminho, enquanto corre a mergulhar no barulho da cidade, na teia dos compromissos, no fluxo das coisas e dos eventos.

Por isso, à primeira vista, este livro parece excêntrico ou, até, ultrapassado, com uma tonalidade antiquada, destinado a um escasso sucesso. De facto, estamos num mundo que perdeu a alma e que não se queixa disso nem, muito menos, se preocupa em conquistá-la. Aliás, é o corpo que dita a lei, como afirmava Pier Paolo Pasolini na Supplica a mia madre [Súplica a minha mãe], um poema representado no próprio ano do seu trágico desaparecimento (1975), embora seja anterior:

«Tenho fome infinita
de amor, de amor de corpos sem alma.»

É um retrato extraordinário do nosso tempo tão «corporalmente» pesado, tão agarrado ao bem-estar físico e ao aspeto exterior aparente, em que não há nada debaixo da pele e da carne. No entanto, precisamente o verso seguinte daquele poema continuava: “Porque a alma está em ti, és tu...» Encontrava-se nas raízes maternas aquela respiração secreta e interior que ká parecia extinta. Na realidade, o homem e a mulher de hoje continuam a ser criaturas «animadas»: no seu íntimo ainda batem os frémitos da consciência, neles ainda se consumam experiências espirituais, deles partem muitos caminhos do espírito. No entanto, acontece aquilo que o escritor austríaco Robert Musil indicava na sua obra-prima incompleta, “O Homem sem Qualidades”: «Todos os caminhos do espírito partem da alma, mas nenhum regressa a ela.»

De facto, não há nenhum desejo de regressar ao íntimo de si mesmo, para reconduzir à sua fonte as experiências espirituais que também se vivem. Não há nostalgia de rever o rosto da alma, de delinear o perfil, de descobrir os seus segredos. O objetivo destas páginas é o de precisamente fazer regressar à alma perdida; elas aspiram a conduzir o leitor a contemplá-la de perto. Por isso, será uma leitura contra a corrente, esforçada, em determinados aspetos até didascálica, porque será necessário aprender (ou reaprender) muitas noções, entrar em caminhos nem sempre planos do pensamento e penetrar nos meandros das argumentações e dos símbolos.

***

Na sua redação material original, este livro foi escrito à mão, precisamente como se fazia há séculos, com pena (ou cálamo, ou estilete) e tinta. Porém, justamente enquanto nas folhas
brancas se multiplicavam as linhas, crescia em mim um desencorajamento subtil. Na verdade, o horizonte alargava-se cada vez mais, revelando-se a perder de vista e frequentemente escuro e indecifrável. Eu era obrigado a deixar ininterruptamente de lado ideias, temas, símbolos, textos, para não construir outra «historia interminável». Como em breve explicarei, tinha optado por uma imagem-guia, a da navegação ao longo de um rio imenso; pois bem, muitas vezes a embarcação parecia transformar-se no «barco bêbado» do poeta francês Rimbaud, um navio incontrolável e irrequieto, ora encalhado em seco, ora balouça­do por correntes e ventos impetuosos.

Para continuar, serviu-me de ajuda uma das personagens que entrarão em cena nestas páginas, o grande Goethe, que, nas suas “Máximas e Reflexões”, observava:

«Todos os pensamentos já foram pensados:
só basta tentar repensá-los.»

O livro é precisamente um simples e simplificado «repensar» daquilo que, a um nível muito mais alto e articulado, já foi pensado em séculos e séculos de estudo e meditação. Contudo, não é uma summa sistemática e completa, não é sequer um ensaio académico destinado aos especialistas, nem é um texto de aprofundamento teórico, desejoso de penetrar em caminhos inexplorados, abarrotado de notas e intermináveis bibliografias. O método adotado é o sugerido por ítalo Calvino numa das suas esplêndidas e incompletas Lezioni americane. É a técnica do escultor que não junta mas tira, cinzelando sem parar o enorme bloco de mármore para fazer emergir um rosto ou um torso.

Então, notar-se-ão omissões, lacunas, seleções, aproximações, reduções. No entanto, o resultado ainda poderá impressionar o leitor até ao atordoamento; de facto, é enorme a abundância de teorias, a gama de ideias, a galeria de personagens, as bibliotecas de textos que, apesar daquele propósito de simplificação, se vislumbram no texto. Pelo contrario, logo no primeiro capítulo, quisemos, um pouco provocatoriamente, introduzir o leitor num panorama multitudinário, apinhado, criando-lhe talvez um desenraizamento, atraído e confuso como estará no meio de tantas vozes diferentes e até dissonantes, capturado e desorientado entre imagens tão mutáveis, como que perdido numa vegetação luxuriante mas intricada.

Embora hoje a alma pareça esquecida e marginalizada, uma espécie de presença ausente, na realidade durante séculos dominou todas as culturas, estimulou inteligências altíssimas e envolveu intimamente as religiões. A alma, precisamente como sugere a origem do nosso vocábulo (mas assim aconteceu noutras línguas), revela-se semelhante ao vento, o ánemos grego: envolve, acaricia, atormenta, penetra, mas vai mais longe, fugindo e quase dispersando-se. Assim, ao longo dos séculos, alguns acorrentaram-na ao corpo, outros dissolveram-na num ectoplasma; houve quem a tivesse intuído como um espírito puríssimo e quem a tenha figurado com realismo. Desde sempre a humanidade seguiu os seus traços secretos: por vezes, descobriu-as no cérebro ou no coração; frequentemente a procura prosseguiu para além da materialidade em direção à transcendência guardada na intimidade e na consciência de cada um.

Laicamente reduzida a psique ou a um sistema neuronal que deve ser analisado segundo cânones científicos, ou então religiosamente intuída como um abismo de luz em que Deus se desvenda, investigada pela filosofia, imaginada pela literatura e pela arte, professada pelas várias fés de modos diferentes, negada pelos agnósticos de todos os tempos, a alma continuou a aparecer e a ocultar-se como o vento. Pois bem, gostaríamos de voltar a agarrar algum sinal e repropor a sua presença justamente através do contributo da imensa fila dos «buscadores da alma» que povoaram a história da humanidade.

***

Antonia Pozzi, poetisa milanesa que se suicidou aos 26 anos em 1938, deixou estes versos:

A alma encontra a sua paz,
como um louco salto de águas
que se acalma, encontrando
a suprema quietude do mar.

Embora, como se disse, o símbolo dominante para representar a alma seja a respiração do ar, não é raro vê-la comparada à agua no seu fluir incessante, nas suas extensões infindas, no facto de ser sobretudo uma fonte de vida. São famosos os versos do “Canto dos Espíritos sobre as Águas” de Goethe, os quais mere­cem ser citados também no original alemão:

Seele dês Menschen,
wie gleichst du dem Wasser!
Schicksal dês Menschen,
Wie gleichst du dem Wind!7

[Alma do homem,
como és semelhante à água!
Destino do homem,
como és semelhante ao vento!]

Pois bem, na esteira desta metáfora, pensámos adotar como esquema simbólico para a nossa busca no horizonte da alma o da navegação. São quatro as etapas da viagem e correspondem às partes deste volume. Antes de embarcar, é necessário um itinerário de aproximação; é a primeira meta a atingir. Ele é sem fronteiras porque o percurso que se inicia pretende chegar aos Territórios distantes das culturas primitivas e penetrar nas antigas e gloriosas civilizações do Egito, da Mesopotâmia, da índia e da Arábia, mas também não teme visitar lugares recôn­ditos, quase semelhantes a grutas escuras, como no caso da metempsicose, do espiritismo e da metapsicologia.

O grande rio da alma que devemos navegar, circundado por estas terras, revela duas nascentes específicas que o alimentam de modo copioso. Serão elas que constituirão a segunda meta da nossa navegação ideal. De um lado está a Nascente sagrada das Escrituras bíblicas com a sua mensagem original e variada, que tem alguns ápices no livro do Génesis e nas palavras de Cristo e de Paulo. Do outro, eis a Outra nascente, a da cultura grega, onde aparecem os mitos fascinantes de Psique e Orfeu, mas também sobressaem pensadores excelsos como Platão,
Aristóteles e Plotino.

Depois, a partir das nascentes, a navegação penetra no curso atormentado do rio. É a terceira etapa, a mais extensa, porque tem de percorrer séculos e séculos de história. Entram em cena três perfis da alma. Antes de mais, o que foi desenhado pela teologia cristã no seu incessante processo de interrogação, nas respostas do Magistério eclesial oficial, na elaboração intensa dos seus pensadores e também no seu esforço ousado de abeirar-se do além-vida da alma, para lá da fronteira da morte (a “Alma teológica).

Depois, há a complexa e até tortuosa reflexão da filosofia ocidental, a partir de Descartes, de cujo dualismo derivaram não só os grandes «espiritualistas», como Espinosa e Hegel, mas também a dura reação dos «materialistas», negadores convictos da alma. É o capítulo da “Alma filosófica”, que também se abre a teorias inovadoras – como a do evolucionismo – e a práticas incisivas – como a da psicologia/psicanálise.

O último perfil é o da “Alma poética”: trata-se de um olhar lançado sobre o mistério do espírito pela intuição literária. Então, vai-se de cenas emocionantes criadas pelo génio de Dante ao terrível pacto entre Fausto e Mefistófeles narrado por Goethe, dos diálogos entre alma-corpo-natureza imaginados por Leopardi, Rosenzweig ou Péguy, até a uma surpreendente elaboração racional de Pirandello e a muitos outros autores.

Deste modo, chega-se à quarta e última etapa, a da “Foz”, porque então a história da alma entra e faz parte dos nossos dias. Penetra-se no inquietante e também fascinante laboratório das neurociências para encontrar o “homem neuronal” que alguns gostariam de ver espoliado de alma e reduzido a cérebro. Contudo, trata-se apenas de uma “Acostagem” parcial e não da atração definitiva: de facto, as águas continuam a correr, e a alma não cessará de alcançar-nos para conduzir-nos mais longe.

***

Dizíamos atrás que o homem contemporâneo avançou tanto na sua corrida frenética, que perdeu a alma pelo caminho. Quando, todavia, se tiver concluído a navegação ao longo do rio da história da alma que acabámos de sintetizar, ter-se-á possivelmente uma impressão oposta: a alma é muito mais veloz e viva do que a civilização moderna. Assim o afirmou no século V um escritor espiritual, João Cassiano, nas suas Conlationes, isto é, «conferências» dirigidas aos monges:

«Estamos seguramente a andar para trás quando nos apercebemos de que não andamos para a frente: a alma não pode ficar parada.»

Cassiano tivera uma vida bastante movimentada; estivera em Belém, no Egito, em Constantinopla, em Roma, onde tinha sido ordenado sacerdote; e nas Gálias, em Marselha, onde fundara dois mosteiros e onde morrerá em 432. Contudo, estava convencido de que seria necessário seguir os ritmos muito mais rápidos da alma.

Talvez também a agitação febril do homem de hoje não seja um avanço, mas um insensível retrocesso ou um estranho rodopiar no mesmo espaço. A alma, com a sua fome de eterno e de infinito, obrigá-lo-á certamente a caminhar sempre em frente, em direção ao Além ilimitado. Precisamente como o ánemos, o vento.»

 

D. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Breve História da Alma, ed. D. Quixote
30.03.11

Capa

Breve história da Alma

Autor
Gianfranco Ravasi

Editora
D. Quixote

Ano
2011

Páginas
352

Preço
15,75 €

ISBN
978-972-204-0297











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