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Bob Dylan aos 80: As mil moradas de um errante que nunca esteve em casa, escreve jornal do Vaticano

Bob Dylan tem oitenta anos, e está a voltar a casa. Os seus pensamentos mais não fazem que errar pelo mundo (“got a mind to ramble”), a sua obsessão continua a ser o vagabundear (“got a mind to roam”), mas tomou o caminho de casa, lentamente, levando pouca bagagem consigo (“I’m travelin’light and I’m slow coming home”). É assim que se conclui “Mother of muses”, uma das canções do seu último (por agora) disco, “Rough and rowdy ways”. Mas a sua casa não é aquela que deixou no Minnesota. Talvez um dia regresse, mais cedo ou mais tarde, ou talvez não, porque como diz em “Mississippi”, uma canção de 2001, pode-se sempre voltar, mas não de onde se partiu (“you can always come back, but you can’t come back all the way”). Não é aquela a sua “verdadeira” casa. Disse-o muito claramente na entrevista em “No direction home”, o documentário de Martin Scorsese de 2006: «Tenho a ambição de partir para me encontrar num qualquer lugar, numa odisseia de regresso. Pus-me a procurar esta casa que deixei há muito tempo. E não consigo recordar exatamente onde era, mas estou a caminho para lá chegar. E encontrar aquilo que encontrei ao longo do caminho foi precisamente como imaginei… Nasci muito distante de onde devia estar, por isso estou em viagem rumo a casa».

Em 1965, Dylan perguntava a Miss Lonely de “Like a rolling stone”: o que é se sente, o que se experimenta, que efeito provoca deixar de se saber como voltar a casa? “No direction home”, precisamente. Estar sem casa, e no entanto ter de voltar; é a antiga situação de Ulisses. Após o assédio e a guerra vem o regresso, igualmente perigoso; um qualquer deus ciumento pode sempre pôr-se no meio do caminho e impedir o desembarque.

A estrada ensina que tudo muda continuamente, os encontros, as respostas da vida, e sobretudo o estilo, que deve-se ser capaz de vestir e despir como uma roupa quando o tempo muda. Quem ainda é muito jovem pode pensar que viver na estrada tem como destino a própria estrada, e poucas são as palavras em Dylan que têm mais ressonância que “road” (as outras são “wind”, “rain”, “train” e “ship”; “home” não está entre as mais significativas), mas quem já não é jovem sabe que não é assim. Estar na estrada é excitante, intoxicante, heroico. Se fores suficientemente obstinado, mas também, afortunado, far-te-á dar mais de três mil concertos em todo o mundo, mas não ter uma casa não é belo.



Dylan já tinha escrito, em “Chronicles”, que a autoestrada que levou o blues do Sul para o Norte, de Memphis a Chicago e de Chicago a Duluth, onde Dylan nasceu, era a sua estrada



E ter uma casa onde voltar, mas não uma casa onde chegar, é inquietante, terrível, e ao mesmo tempo necessário, porque um artista, nas palavras de Dylan em “No direction home”, «deve estar atento a nunca chegar a um lugar onde acredita ter chegado», porque a falsa segurança que alcança far-lhe-ia esquecer o dever de «estar constantemente num estado de transformação».

Jamie Lorentezen, estudioso de Kierkegaard que ensina no Saint Olaf College de Nothfield, no Minnesota, acredita que compreendeu qual é a casa onde Dylan quer chegar, ou pelo menos em que região do mundo se encontra. E não é que lhe seja desconhecida, proibida, ou que Dylan precisa de um qualquer mapa secreto para lá chegar.

É o Sul dos EUA, o lugar do qual nasceu todo o bem e todo o mal do grande país, entre o Mississippi e o Lousiana, onde a Highway 61 que parte da pequena cidade de Wyoming, no Minnesota, vai morrer às portas de Nova Orleães, a única cidade da América que, como escreveu e cantou Leonard Cohen após o furacão Katrina que a pôs de joelhos, «era o melhor da América» (“Samson in New Orleans”). De resto, Dylan já tinha escrito, em “Chronicles”, que a autoestrada que levou o blues do Sul para o Norte, de Memphis a Chicago e de Chicago a Duluth, onde Dylan nasceu, era a sua estrada: «Era a mesma estrada, repleta das mesmas contradições, que as mesmas terreolas de quatro casas, os mesmos antepassados espirituais. E o Mississippi, o fluxo sanguíneo do blues, começa precisamente dos meus bosques. Nunca ma afastei demasiadamente dali. Era o meu lugar no universo, sempre senti que estava no me sangue».



Mas a casa de Bob Dylan só existe se se a procura, só se ele continuar a procurá-la, e suspeita-se que quando ele tiver de parar, ninguém poderá retomar a viagem do lugar onde ele a interromper. Entretanto, seria urgente desenhar um mapa dos lugares fantásticos a que Dylan quis dar um nome



Tudo isto Lorentzen escreveu num capítulo de “Tearing the world apart: Bob Dylan and the twenty-first century” (2017). Em grande parte tem razão, mas depois não responde à pergunta mais imediata: se Dylan sabe onde é a sua casa, porque é que não voltou já a ela? Porque é que declara ao mundo que está sempre em viagem se a última morada, que é também a primeira, só pode ser o Sul? É simples: porque Dylan sabe, e toda a sua obra o demonstra, que aquela casa já está habitada, e que ele pode amá-la até quando quiser, e pode declará-la, se assim o acredita, o fim da sua viagem, mas nunca foi sua nem nunca o será.

É a casa do blues, mas o blues não foi ele que o criou, nem o criaram os judeus nem os anglo-saxónicos nem os irlandeses, nem os italianos, ainda que todos possam dizer, cada um à sua maneira, que o aprenderam e partilharam. Criaram-no os afroamericanos mais pobres e mais desprezados, e ninguém o pode expulsar, nem se aprende nota a nota todos os solos dos seus guitarristas.

Em 2001, Dylan gravou Mississipi, que recria, para trás, o mundo que deixou atrás de si, nas brumas dos anos sessenta. No outono de 1963, quando já era um nome, mas nada mais que um nome, tinha ido a Greenwood, no Mississippi, para um “voter registration rally”, uma manifestação a favor do direito dos negros a inscrever-se nas listas eleitorais (coisa que te podia dar direito a uma bala nas costas, e que ainda agora não é coisa pacífica).

Foi a única intervenção autenticamente militante da sua vida, mas deixou a marca. Aquele dia passado no Mississipi teve de o pagar durante todos os anos que se seguiram, porque nunca aprendeu o que é a política, mas dos rostos dos trezentos caseiros negros aos quais cantou “With God on our side” e “Only a pawn in their game” aprendeu o que é a dignidade. E fez-nos meditar durante vinte e seis anos, até que em 1989 escreveu “Dignity”: um homem-sombra que num campo de algodão procura a dignidade.



E ainda o beco da desolação – o único lugar onde acontece algo que vale a pena ser narrado –, as terras da senhora dos olhos tristes sob o nível do mar, a torre de guarda em cima da qual os príncipes ficam a saber que Babilónia caiu, o Egito mexicano ou o México egípcio onde vagueia a deusa Ísis, o horto do Getsémani onde ninguém, exceto Um, compreende o que lhe está a acontecer



Na sua longa odisseia, Dylan encontrou muitas casas. Nunca as habitou longamente, mas o suficiente para lhes conhecer todos os cantos: o Oklahoma de Woody Guthrie, o rock and rol de Elvis como o gospel dos Staples Singers, a balada folk inglesa e escocesa, o canto sanguíneo dos rebeldes irlandeses, o country e o bluegrass cujo território se estende do Texas aos montes Apalaches, assim como o standard em todas as suas ramificações, de Billie Holiday a Frank Sinatra.

Mas a casa de Bob Dylan só existe se se a procura, só se ele continuar a procurá-la, e suspeita-se que quando ele tiver de parar, ninguém poderá retomar a viagem do lugar onde ele a interromper. Entretanto, seria urgente desenhar um mapa dos lugares fantásticos a que Dylan quis dar um nome.

São as cidades, as ruas e os nós de uma geografia imaginária que, porém, uma vez traçadas as linhas que os unem, criam uma América tão real quanto aquela que se percorre a pé: Nova Iorque vista com os olhos de quem andou vinte anos para encontrar Woody Guthrie, a Baltimore onde Hattie Caroroll encontra uma morte tão racista quanto negligente, o navio da liberdade (e do apocalipse) que finalmente entra no porto, os sinos da liberdade que tocam durante numa tempestade, os portões do Éden que não têm consistência em si, são apenas aquilo de que estamos do lado de fora, e ainda o beco da desolação – o único lugar onde acontece algo que vale a pena ser narrado –, as terras da senhora dos olhos tristes sob o nível do mar, a torre de guarda em cima da qual os príncipes ficam a saber que Babilónia caiu, o Egito mexicano ou o México egípcio onde vagueia a deusa Ísis, o horto do Getsémani onde ninguém, exceto Um, compreende o que lhe está a acontecer, o Texas infinito da jovem de Brownsville dos dentes de pérola, e depois ainda as Highlands da Escócia, a Scarlet Town que é “Desolation row” quatro séculos antes, e por fim a Key West de “Rough and rowdy ways”, um lugar que tem a consistência de um postal da Flórida e ao mesmo tempo é o centro imaginário de todas as transmissões radiofónicas clandestinas, que espalharam o rock and rol no mundo, como as rádio de ondas curtas que transmitiam do México e do Louisiana e chegavam, mas só à noite, ao quarto do Robert Zimmerman adolescente que escutava Leadbelly e Muddy Waters, perguntando-se de que universo abrasador poderiam vir aquelas vozes.

São estas as casas de Bob Dylan. Algumas visitou-as uma só vez; noutras ficou mais tempo, depois voltou a partir. E não será por acaso que a casa onde verdadeiramente habita, a de Point Dume em Malibu, nunca entrou em qualquer uma das suas canções. Como se pode regressar aonde nunca se esteve? «Se não tivesse de voltar,/ sabei que nunca/ parti./ O meu viajar/ foi sempre um permanecer/, aqui, onde nunca estive.» Seria belo que Dylan pudesse ler estes versos de Giorgio Caproni. Talvez nele reconhecesse muito de sim mesmo.


 

Alessandro Carrera
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 25.05.2021 | Atualizado em 28.04.2023

 

 
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