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Atravessar a própria solidão

Todos somos seres solitários. Ainda que vivamos num contexto de grande qualidade afetiva, ainda que tenha sido assim desde a nossa mais terna infância, ainda que nos sintamos muito amados. Há irremediavelmente em cada um de nós uma dimensão de solidão. Nesta reflexão não me centrarei nas diferentes situações de solidão em que se encontram tantos dos nossos contemporâneos, por razões afetivas, sociais, económicas, políticas; centrar-me-ei, sim, na inalienável situação solitária que nos acompanha desde o nosso nascimento até à nossa morte. Situação solitária portadora de grande fecundidade para o sentido da nossa existência, aberta, em gérmen, a uma comunhão universal. Mais do que estar só, interessa-me aqui o ser só. Embora, como bem sabemos, não há um verdadeiro dualismo entre estes termos. Somos seres únicos e, como tal, ninguém pode penetrar no núcleo - no mistério - mais fundo da nossa existência. Mesmo para cada um de nós, enquanto sujeitos, este mistério permanece sempre mistério. Podemo-nos aproximar, sentiremos mesmo esse desejo, mas, em última análise, não poderemos desvendá-lo. O acesso à nossa identidade mais profunda requererá sempre uma peregrinação. E, para o peregrino, ainda que parta movido pelo desejo da chegada, o próprio caminho ensinar-lhe-á que a densidade da peregrinação lhe será dada pelos passos dados, pela luta que supõe cada dia, quando as forças parecem esgotar-se... Reconhecerá que o importante na vida, mais do que chegar, é mesmo o caminho. Estar na vida como peregrinos ensina-nos a ser humildes, a assumirmo-nos como inacabados. O mistério da nossa própria existência requer de nós, como do peregrino, fazermo-nos ao caminho, adentrarmo-nos no desconhecido, sempre com grande humildade. Face ao insondável que nos habita, não há outra forma. Somos beleza, beleza irrepetível, da qual não temos o direito de nos privarmos nem de privarmos os outros. Adentrarmo-nos na nossa solidão, como humildes peregrinos, ainda que alguns passos sejam especialmente duros, é o nosso mais original contributo para a grande sinfonia da vida, para a qual toda a criação está convocada.

Sim, somos solidão, e também só a solidão como experiência vital nos poderá conduzir à profundidade do nosso mistério. S. Paulo diz que somos morada do Espírito (ICor 3,16) e nós verificamos que somos, muitas vezes, estrangeiros na nossa própria casa. A solidão, ainda que tenha algo de vertiginoso, abre-nos as portas da nossa própria casa; convida-nos a entrar e a viajar até ao mais profundo do nosso coração. Creio que só nos lançaremos a esta viagem, quando a sede se torna insuportável. Resistimos até onde podemos! E fugimos, todos temos a experiência da fuga diante da solidão. Gastamos muitas das nossas energias a apagar qualquer sinal de dor ou de angústia. Há em nós um medo do desconhecido (a morte é a expressão maior deste medo), mas chega um momento, e esperemos que nos chegue a todos com muita força, em que já não podemos mais. Já não nos bastam os pequenos consolos. Começamos a estar conscientes de que a vida se nos está a escapar, a passar ao lado. É então que nos aventuramos na nossa própria solidão. Há, neste movimento, uma combinação de desejo e de resistência. Quando nos decidimos a ir por dentro de nós é um sinal de que Deus nos precedeu com a sua graça e que, desde sempre, nos espera na nossa própria casa. Deus nunca se cansa de nos chamar à vida, a uma vida cheia, plena e, por isso, espera-nos incansavelmente. Tantas vezes tem de esperar por uma fratura para que a sua presença seja reconhecida! Ao decidirmos empreender esta viagem, dar-nos-emos conta de que grande parte da nossa vida a vivemos na superfície, a superfície da imagem, das crenças que fomos assimilando ao longo da vida, a superfície do nosso sistema defensivo, da nossa máscara... Dar-nos-emos conta de que há algo de irrealidade no nosso viver. Inclusivamente, aquele a quem chamamos Deus é, tantas vezes, um elemento mais deste nosso mundo artificial em que nos movemos, um deus pequenino, que cabe na nossa cabeça e que é controlável por nós. Quando nos damos conta da estreiteza do nosso horizonte, algo já se desmoronou, sabemos que já não queremos viver mais assim, no entanto, também não sabemos como sair do que em nós está tão solidificado. Diria que, aqui, nos encontramos num ponto cume da nossa solidão. É como se, de repente, tivéssemos perdido o mapa. As nossas mais profundas crenças sobre nós próprios, sobre Deus, sobre o mundo, manifestam-se frágeis, inconsistentes, com sabor a falso. E não sabemos como sair deste círculo vicioso. Pode ser uma experiência muito difícil, mas também cheia de oportunidades. Um verdadeiro Kairós (tempo denso de salvação)!

Conscientes de que a experiência da solidão não é fácil, creio que seria uma perda imensa, do ponto de vista do sentido da nossa existência, não nos confrontarmos, cara a cara, com esta dimensão constitutiva da vida humana. Podemos sempre fazer de conta de que não é assim, e aliás, muitas vezes, o fazemos, envolvendo-nos em mil atividades ao mesmo tempo, distraindo-nos com tudo e com nada; tudo fazemos para não nos confrontarmos com a dor de estar só, ou melhor, de ser só. E, quando estamos sós, logo nos rodeamos de imensos ruídos ou afazeres. Porque é tão difícil estar só, consigo, sem nada nem ninguém pelo meio? Por outro lado, existem pessoas que, deliberadamente, por vocação ou por desejo, buscam uma vida solitária ou, pelo menos, buscam tempos nas suas vidas para precisamente estarem sós. Com Jesus também foi assim. Que buscava Ele, na solidão? O que busca quem busca a solidão?

Creio que não é possível nenhum caminho espiritual, autêntico, personalizado, sem ser através da experiência da solidão e do silêncio. Digo solidão e silêncio porque estar só, nesta perspetiva que estou a abordar, supõe silêncio. Não só o silêncio exterior, que é importante, mas fundamentalmente o silêncio interior, silêncio como vazio, como abertura. O silêncio que nos coloca em disposição de escuta para saber que ruídos nos habitam, para saber o que está no nosso interior, para descobrirmos que a nossa verdadeira identidade se desvenda na presença do Mistério de Deus que nos habita. Esta atitude ajuda-nos a dar uma volta fundamental na orientação do nosso olhar que, quando se dirige para o exterior, fá-lo sempre desde uma experiência interior, o que, por um lado, nos predispõe a não ser tão dependentes do exterior e, por outro lado, motiva uma forte paixão pelo interior. Não há aqui nenhuma proposta de individualismo ou de intimismo, pelo contrário, é uma proposta de busca do outro e de maior autenticidade na relação com o outro. Atravessar a própria solidão gera abertura e não fechamento. A solidão, tantas vezes experimentada como dor, quando atravessada, pode transfigurar-se em festa - a festa da comunhão. «Se o grão de trigo não cai à terra e não morre, fica só, mas se morre, dá muito fruto» (Jo 12,24). Sim, a morte é condição para nascer de novo. Perder a vida para encontrá-la, e encontrá-la transfigurada.

Em toda a realidade há uma abertura pascal. Tudo e todos estamos sob o signo da Páscoa. Tudo e todos estamos salvos. O desafio do caminho espiritual é abrir espaço para vivermos desde esta nossa identidade salva. Aliás, não temos outra! Somos chamados a entrar num outro nível de consciência, que nos permita ver que toda a realidade está atravessada pelo desígnio salvífico de Deus. E isto é um dom; pura graça!

A minha proposta é que, com Jesus, nos adentremos na nossa solidão, como caminho pascal.

 

Carlos Maria Antunes
In Atravessar a própria solidão, ed. Paulinas
31.07.11

Capa

Atravessar a própria solidão

Autor
Carlos Maria Antunes

Editora
Paulinas

Ano
2011

Páginas
224

Preço
6,00 €

ISBN
978-989-673-176-2















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