Desenvolveu nos seus quadros uma “epopeia dos campos”, retratando gente de origens modestas no ato de se ocupar de um trabalho tanto humilde quanto digno, mas também rentável para a coletividade. Não foi apenas uma opção de carácter artístico aquela do pintor francês Jean-François Millet, considerado um dos maiores expoente do realismo na pintura: tratava-se, ante de tudo, de uma missão a realizar em benefício dos pobres, demasiadas vezes tornados objetos, da parte das autoridades institucionais, de exploração e opressão. Ao artista, portanto, cabe a tarefa, no contexto restrito mas também sempre rico de importantes potencialidades, de inverter esta perniciosa tendência, elevando os pobres a protagonistas de uma tela e, por isso, de um acontecimento cultural que visava abater preconceitos e descriminações.
Vítor Hugo esteve entre os primeiros a intuir o alcance inovador dessa conceção aplicada ao mundo da arte, de tal maneira que forjou a expressão, depois tornada célebre, do «gesto augusto do semeador». Nesse gesto exprime-se quer o valor de um trabalho útil para a sociedade, quer o símbolo de um sacrifício que requer abnegação, força e paciência.
Para corroborar a sua teoria do ato pictórico que se alimenta da dimensão heroica que subjaz à figura dos seus camponeses, Millet, em 1851, escreve: «Como podereis compreender do título dos meus quadros, não há mulheres nuas ou sujeitos mitológicos. Quero cimentar-me com temas diferentes destes. Ao preço de passar ainda mais por socialista, é o lado humano, genuinamente humano, aquilo que na arte me toca mais. E nunca é o lado feliz aquilo que me surge, não sei onde está e nunca o vi. Aquilo que de mais alegre conheço é esta calma, este silêncio de que se usufrui tão intimamente no interior do bosque ou nos campos. Dir-me-eis que este discurso é muito de sonhador, de um sonho triste, ainda que dulcíssimo, mas é aí, a meu ver, que se encontra a verdadeira humanidade, a grande poesia».
Com Constant Troyon, Narcisse Diaz, Charles Jacque e Théodore Rousseau, o artista formou o primeiro núcleo da ecola de Barbizon, movimento que propunha um realismo no qual, suprimindo vácuas idealizações, se espelhava antes de mais o amor pela natureza e pelas maravilhas da criação. E é no interior deste movimento que Millet conseguiu desenvolver, na sua plenitude, a tendência a concentrar a atenção nas pessoas de humilde extração para as elevar a sujeito principal dos seus quadros.
Entre estes avulta o intitulado “As respigadoras” (1857), um hino em honra do mundo rural. A pintura foi apresentada no Salão de Paris, onde deu escândalo e suscitou a ira da burguesia, a quem desagradou a representação, de carácter manifestamente elogiosa, da pobreza. A burguesia sentia essa representação como um ato de acusação em relação a si.
O quadro começou por se arriscar ao esquecimento, mas depois cabe-lhe sorte bem diversa. Não só foi assumido como importante referência por artistas como Pissarro, Renoir e van Gogh, como em 1914 se tornou símbolo do patriotismo francês: foi reproduzido em prospetos no âmbito do processo de recrutamento para a primeira guerra mundial. A pintura transparecia empenho no trabalho, espírito de resistência perante o cansaço, dignidade vivida com gracioso decoro. Tudo valores que a pátria, prestes a entrar no conflito, só podia sentir-se orgulhosa.
O quadro retrata três camponesas, curvadas para a terra, que recolhem espigas de trigo dispersas pelos campos após a ~ceifa. Particular e sugestivo é a perspetiva escolhida por Millet. Ainda que ocultando os rostos, o artista coloca-lhes em relevo os traços algo grosseiros, as mãos avermelhadas e inchadas pela dureza do trabalho. As roupas estão carcomidas e a pele está queimada pelo sol ardente. As respigadoras são de baixa extração social, e no entanto a obra enche-se de uma respiração épica precisamente graças às suas figuras, sabiamente retratadas numa plástica e solene monumentalidade.
As três mulheres indicam o símbolo do proletariado rural, cuja subsistência estava ligada a este género de sustento comunitário, que era a autorização para respigar pelos campos. Faz de oposição a este microcosmo, repleto de implicações, um homem a cavalo, que se entrevê ao fundo. Ele supervisiona o trabalho das respigadoras, vigiando sobre a regulamentar concretização das suas funções. Este homem a cavalo é concebido por Millet como o emblema das disparidades sociais que intercorrem entre os diferentes grupos de trabalhadores, como também a emanação do latifundiário, proprietário das terras sobre as quais as três respigadoras, para sobreviver, prodigalizam energias e derramam suor.
"As respigadoras" | Jean-François Millet | 1857