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A arte como "propensão para o sentido"

O trabalho de Pedro Cabrita Reis não deixa indiferente quem visita o fabuloso museu de arte moderna e contemporânea de Londres, o Tate Modern, que adquiriu as suas obras: "Limbo" (1990), "The Unnamed Word #1" (2005), "The Moscow Piece" (2006) e "Unframed #3" (2008). Três destas fazem parte da exposição permanente do Tate Modern. Uma presença sem dúvida notável da portugalidade no âmbito da cultura contemporânea internacional.

Pedro Cabrita define o processo criador como “uma economia do pensamento e da alma”, de dor e dilaceração, que exige a disponibilidade da pessoa toda nesse processo. E por isso o ato criador dispõe para o encontro com a beleza: “os artistas e os criadores, em geral, vivem diariamente, a cada momento, a dor de cada obra que fazem - cada poema, cada verso musical, cada pensamento... - não ter outro objetivo que não seja sarar essa ferida, reencontrar uma harmonia, um lugar no mundo que seja de beleza” (entrevista ao “Público”/“Ipsilon”).

Mas o que é que suscita o encontro com a beleza? “A ferramenta verdadeiramente importante de qualquer autor ou artista é a curiosidade. Não é apenas o interesse. É a capacidade de se maravilhar, aquilo a que chamaríamos espanto, em termos filosóficos” (Ibidem). A capacidade de olhar o mundo, de compreendê-lo nas suas fissuras imaginárias, orienta a inteligência humana para uma inteligibilidade do real que só a poesis criativa é capaz de nos dar. A tribulação do tempo atual, a técnica produtiva, quase escravizante, não permite tomar distância sobre a realidade, porque esgota o futuro na (in)-satisfação eterna do presente.

FotoUnframed #3

Surpreendente é a descrição da obra "The Unnamed Word #1" como uma metáfora da nomeação de Deus. Uma intensa luz fluorescente que germina do cruzamento de fios e de metais, de ligações e relações imprescindíveis entre forma e matéria. “Não podes entrar no atelier e imaginar que sabes o que vais fazer nesse dia se não viste nada que te diga o que vais fazer” (Ibidem). Terá Deus entrado no grande atelier do universo e visto que tudo aí era bom para receber o humano? A justificação do preexistente, mesmo em termos teológicos, é problemática. O ato criador, e “Deus viu que tudo era bom”, pressupõe uma gramática do ver, da nomeação significativa, coexistente com a realidade, porque Deus nada cria fora da temporalidade espacial. No entanto, “Deus fez-se carne”, história, e evento eterno, sem espaço e sem tempo limitadores. O apelo ao Mistério é inevitável, ao “Desconhecido”, que Bento XVI propôs como plataforma de diálogo no “Átrio dos gentios”.

FotoThe unnamed word

“Quando estás sentado à noite e olhas para o céu e avanças pelo escuro, por entre as estrelas, tentando imaginar o que está por trás delas, e o que está por trás disso, acabas por te dar conta de uma coisa que a tua humanidade não abarca, que é a noção de infinito” (Ibidem). E esta noção está bem presente no processo criativo que procura a Verdade das coisas, a perfeição que modela o objeto presente na mente humana, materializado na correspondência mútua e tensiva entre interioridade e exterioridade. “Mas, se fizermos uso de todas as nossas capacidades e nos apercebermos da propensão para o sentido que tudo parece ter, temos de pensar que essa espécie de desordem inata que cola tudo e parece fazer tudo andar para certo sítio pode ser nomeada. Então, aí, fazes a coisa mais violenta e mais bela que alguma vez criámos, que foi a palavra: nomeias as coisas. E a palavra Deus é tão boa como outra qualquer para responder às nossas questões” (Ibidem). Fé e arte tocam-se nesta “propensão para o sentido”, na procura do eterno no quotidiano, ora banal ora excecional.

Foto

É por isso que a arte, quando se aventura a encontrar o profundo do real, nos seus múltiplos desdobramentos, toca no Transcendente. A incapacidade de nomear Deus suspende a criatividade humana de valorizar o sentido metafísico da história. A inteligibilidade da história é a suprema capacidade humana de atingir o ato criativo das origens e a visão serena do futuro. O ato criador de Deus é contínuo. Da nomeação surge o nomeado que dá significatividade às coisas. E assim a criação faz-se Ato, Logos, Sabedoria, Corpo. Criar é o humilde “ato de impor ao caos original da natureza a ordem do pensamento humano que é a construção da casa” (Ibidem) e de edificar a habitação humana na Criação.

FotoI dreamt your house was a line

A não correspondência ao ato criador original – a incapacidade de nomear Deus – conduz progressivamente o artista para uma “marginalização luxuosa”, à construção de “cidadela de conformismo” (M. Kundera, Identidade), num ato de esclerose degenerativa que renuncia a Alteridade. O escritor israelita David Grossman, autor do livro Até ao fim da terra, identifica a necessidade de se “criar uma atmosfera em que floresça a confiança mútua” (Ipsilon) entre as pessoas, entre Deus e os homens.

FotoLes dormeurs

O processo criativo não se pode demitir de apelar a esta confiança, que é fé, ao crédito uns nos outros. Nem deixar de provocar criativamente as consciências que vivem “numa miséria maquilhada” […] porque “nós somos os maquilhadores da miséria”! - Mas, nesse caso, onde está a grandeza da vida? […] E se só somos capazes disso, que orgulho podemos tirar do facto de sermos, como nos dizem, seres livres?” (Kundera, Identidade). A passagem da produção satisfatória das necessidades ao desejo de abraçar o infinito é algo que inquieta o verdadeiro artista. Sem a inquietação, sem o espanto com a ordem das coisas, estamos condenados à cíclica satisfação dos excessos que a mente humana permite imaginar e concretizar.

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É no ato sublime do espanto que o artista reconhece a presença de um infinito que o habita. A resposta amadurecida dá-se na oração que é sempre um ato de libertação da cidadela do conformismo: “Humildemente sei que em Vós confio, /e mesmo isto o sei pouco ou quase esqueço,/pois que de Vós, meu Deus, me fio em tudo” (Jorge de Sena, Como de Vós, À memória do Papa Pio XII que quis ouvir, moribundo, o “Allegretto” da Sétima Sinfonia de Beethoven).

 

João Paulo Costa
© SNPC | 13.08.12

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Tate Modern

 

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