O mal objetiva-se no absoluto do defeito entre o melhor bem possível para cada ação – também como possível – e o bem realizado. O mal é, neste sentido, objetivo, embora sem realidade ontológica própria. É um parasita que só existe como absoluto do bem não realizado. É um estranho absoluto por ausência, todavia, não deixando de ser absoluto nisso e por isso. O mal, sem ato ou ser próprio, impõe-se pela falta do bem.
O mal é sempre da ordem do parasitário. O que nele se confunde com ato, com ser, é apenas o absoluto da ausência de um bem. O cristão e o judeu sabem bem que, no ato em que Deus cria o mundo, não há mal algum, assim como não há mal algum no exato movimento mundano imediatamente posterior à criação.
É o ato do ser humano que incumpre o melhor bem possível, objetivamente, que introduz o mal no mundo.
Dramaticamente e tragicamente para os incumpridores, o bem não é necessário senão para Deus. Não é necessário para qualquer outro ente racional e os não-racionais são incapazes do mal. Podem antropicamente incomodar, ser nefastos, mas tal não é mal: é incómodo, é prejudicial, quiçá mortal, mas não é mal. O mal só faz sentido como tal na relação com uma possibilidade de bem, nunca com uma necessidade de bem ou com uma impossibilidade de eleição.
Não há vulcões maus, ou cães maus ou estrelas más ou calhaus maus, mesmo que me matem. Nenhum deles possui a capacidade que apenas conheço em mim próprio de querer incumprir um bem possível. Tal é evidente nos seres inanimados, mas quanto ao cão limito-me a projetar sobre ele a minha interioridade analogicamente, chamando a tal ciência. Há seres humanos maus em ato: todos os que, podendo fazer um bem, escolhem não o fazer, nesse mesmo ato são maus.
Note-se que não se está a psicologizar a questão invocando imaginações ou intuições – hoje em dia limitadas a perceções – subjetivas, como quando se diz que o que é bem para um não é bem para o outro, fundamento do onírico mundo dos valores.
O bem nunca é subjetivo nem quando se trata da intuição – sempre acontecida em subjetiva instância humana – do bem próprio como possível. O bem é a ontologia própria possível de qualquer ente, na relação com todos os entes, e não depende de perceções. É o que é como possibilidade, assim como o bem realizado é, no absoluto do ato de cada ente existente, o que é, perceba-se tal ou não.
O absoluto real dos entes, de cada ente, não é redutível a uma perceção e não é confundível com o mundo como sentido intuído ou percebido. Antes de ser percebido o ato do real, não havia propriamente mundo como ato de sentido, mas havia algo, que, quando percebido, passa a ser tal mundo. Esta leitura laica recebe o seu batismo religioso quando, em Génesis 1, Deus, imediatamente após criar, proclama o sentido do que criou, assim manifestando o sentido do mundo ou, melhor, o mundo como sentido. O sentido que manifesta é o sentido do bem. Então, nada mais havia, apenas Deus e as suas criaturas, tudo bom, tudo belo. Sem mal.
Tome-se a figura do Adão. Se este tropeçasse e batesse com o pé, seria humano se lhe não doesse este mesmo pé? Não, não seria humano, seria uma anedota religiosa. Todavia, doendo-lhe o pé, tal é um mal? Exatamente como e em quê?
No entanto, quando Caim assassina Abel tal não é um mal? Chamar mal à dor do pé de Adão e ao ato mencionado de Caim que sentido faz?
Da resposta a esta questão, depende toda a possibilidade de bem do ser humano.
Não são logicamente comparáveis, pois uma das alternativas não depende da vontade do ser humano. Todavia, se a dor de Adão fosse provocada por uma rasteira de Eva, então, sim, como tal rasteira depende da vontade de Eva (ou não é uma rasteira, mas outra coisa qualquer), os atos desta última e do seu genético rebento Caim já são comparáveis.
No limite do prejudicial ou possível prejudicial (a dor nem sempre o é e pode nunca o ser, dependendo da sua qualidade, de que a sua quantidade faz parte), podemos encontrar a própria morte como mundanamente o mais prejudicial à vida humana, até pela evidente razão de que anula esta última. Sem entrar em possíveis bondades metafísicas da morte – que sempre nos ultrapassarão, mundanos que somos –, é evidente que esta é sumamente prejudicial à vida, mas, ainda assim, é, em si mesma, um mal? Ou é apenas um mal quando corresponde ao paradigma do ato de violência de Caim sobre Abel?
Pense-se no que seria a vida de Adão e Eva sem mal terminando, segundo o modo da absoluta limitação do criado – necessariamente não eterno ou seria confundível com o criador, esse, sim, eterno – em paz e bem, com as respetivas humaníssimas mortes? Em que residiria o mal?
Note-se que a hipótese que se põe não é a da aniquilação, que é a anulação do ato, a sua redução a nada, mas a da morte que, no contexto em que se labora, tem de ser metamórfica e, sendo relativa a vidas em perfeito bem, necessariamente em metamorfose para uma outra forma de bem. Onde está o mal, nisto?
Mal haveria se, neste mesmo contexto, houvesse aniquilação, que significa, para lá da já aludida anulação do ato que se é, por causa dessa anulação, a anulação de qualquer possibilidade ou, então, melhor ainda, a anulação do acto por anulação do seu poder-ser.
Ora, ainda que em formal erro metafísico – o absoluto do acto para que caixote do lixo ontológico transita? –, tal aniquilação teria de ser prerrogativa divina, passando o criador a ser também o descriador. Em tal mito, pois apenas em mito tal se pode pensar, Deus seria o “mais mau de todos os maus”, por ser esse que imporia o único mal metafísico, a transição para o absoluto do nada. Mau mito; há melhor.
O bem é o princípio, único. Não há outro. É, assim, e por ser tal, «o divino», «deus», o Deus que supostamente os cristãos e outros deveriam seguir. Não é um ídolo psicológico, não é um ídolo ético e político na forma de valor. É o absoluto de ato que “impede” o nada.
Velhinha intuição (perceção direta do espírito, para os percecionistas hodiernos) esta a do absoluto do ato que impede o nada e que é necessariamente infinito em ato em si mesmo e infinito metafísico de possibilidades para os que criou, mesmo os vulcões, mesmo os seres humanos que, se fossem inteligentes em ato como podem ser, não viveriam perto deles.
«Onde está Deus?»
Na semente criatural que pôs em cada criatura; no aco providencial que nessa semente sempre está, haja ou não disso perceção: a estupidez não é um dom, mas a inteligência é. Que intui a inteligência que sou do bem que sou e do bem que tudo o mais é?
Intuo eu, como Francisco de Assis, a presença do criador e do seu bem nas criaturas, sem exceção, o que faz de elas todas minhas irmãs, não porque eu queira, mas porque somos todos água da mesma fonte, em diferenciadas gotas, mas todas de água e todas, repete-se, da mesma fonte?
Ou intuo eu, como Hitler, a presença do bem apenas nos que elejo como bons, assim, fazendo eu próprio de Deus?
Francisco intuía segundo princípios; Hitler segundo valores. O olhar onto-lógico de Francisco revelava-lhe a objetividade do bem que Deus pôs nos entes, bem ínfimo, mas infinitesimamente consubstancial a Deus no facto – e ato – de um e o outro não serem nada, isto é, de, em absoluto, serem, cada um a seu modo. O infinitésimo participa do infinito em ato, diriam Platão e Tomás.
Para Hitler, apenas os que a sua inteligência – tudo menos divina – conseguia intuir como participantes do bem, bem à medida da grandeza de quem assim intuía, eram dignos de ser. Só estes tinham valor.
Todos os demais era avaliados como sem valor. Que se faz ao que não tem valor? Despreza-se, usa-se e deita-se fora o mais eficazmente. Assim pensou fazer, assim fez, enquanto lhe foi permitido. De notar que Hitler apenas fez o que fez porque quem podia ter impedido que o fizesse – e avisos não faltaram, basta ler as sistemáticas denúncias de Churchill encetadas na fase mais incoativa do nazismo próximo do poder e já no poder executivo – lhe permitiu fazer, por pensamentos, palavras, atos e omissões, numa objectiva liturgia ao mal, de que nunca houve penitência.
Ora, se a cobardia e o interesseirismo por um lado e, do lado da Grã-Bretanha de Churchill, a incapacidade militar por impreparação voluntária, triunfavam ao lado das divisões com que Hitler foi invadindo a França nos meados do mês de Junho de 1940, já em Bordéus, na altura local da sede do Governo de França, a coragem triunfou nas figuras de Charles de Gaulle e de Aristides de Sousa Mendes, que, no mesmo momento e com sobreposição de dias – 17 e 18 de Junho, especialmente –, lutaram contra o eminente e avassalador triunfo da besta violenta e assassina.
De Gaulle, com a ajuda dos britânicos escapou de Bordéus para Londres, a fim de chefiar a França Livre; no mesmo dia, Aristides de Sousa Mendes toma a decisão de procurar salvar das garras da besta todos os que pudesse.
É com figuras grandes pela positiva, com as duas mencionadas no parágrafo anterior, que Aristides deve ser comparado, não com entidades medíocres, cobardes, sempre prontas a alinhar medrosamente com os tiranos, talvez na psicológica esperança de um dia comerem com eles à mesma mesa ou mesmo de os substituírem. A tal atrevem-se a chamar prudência; ora, não há prudência se não houver coragem, tal faz parte da doutrina da imbricação das quatro virtudes cardeais.
É em nome do princípio cristão – e também judaico – da semelhança ontológica, na diferença substancial – Aristides não é Deus – entre o criador e a criatura que o Cônsul se baseia; é em nome dela que age, porque é dos poucos que intuem que em cada ser humano está a presença de Deus.
Ora, nestas alturas ou profundidades metafísicas em que vive, Aristides sabe que não interessa se se é judeu ou cristão, homem ou mulher, bonito ou feio, rico ou pobre, Habsburgo ou Espinosa, pois todos estes são, cada um deles, tão humano quanto os outros; são todos tão humanos uns quanto os outros.
Reduzir a experiência em que esteve durante cerca de três dias a algo de psicológico, de nosológico, de crise de consciência, é não perceber que a voz de Deus que dizia ouvir era também e talvez sobretudo a que a providencial presença de Deus em cada ser humano lhe gritava.
À eventual estulta pergunta «onde está Deus», ativamente respondeu: está em cada pessoa, em cada pessoa que me procura, e está também neste que lhes pode valer.
Está respondida a questão: Deus está como suplicante em cada homem, mulher e criança que o procura em busca de mundana salvação; Deus está presente, neles como nele, como possibilidade de bem; Deus está presente nele, sumamente, de cada vez que ajuda a salvar alguém.
Através de Aristides e de todos os que o ajudaram, Deus esteve presente em Bordéus.
Todavia, não esteve presente apenas em Bordéus e naquele momento. Diferidamente, o Deus dos atos de Aristides esteve também em Auschwitz, para responder à clássica e néscia questão. De todos os que Aristides ajudou a salvar, quantos teriam acabado e sido assassinados em Auschwitz-Birkenau? Então, evitando que para lá fossem, o Deus dos atos de Aristides afinal sempre esteve em Auschwitz.
Todavia, este Deus e o constante Deus do bem feito por quem fez o bem em Auschwitz – e foi tanta gente – sempre lá esteve. Mas não foi visto, senão pelos que fizeram o bem e nesse mesmo bem realizado viram Deus, sentiram Deus, viveram Deus.
Quem não viu esse Deus, como quem não viu a grandeza de Aristides, não pertencerá à mesma categoria dos que não viram a tempo o mal que havia em e com Hitler? Dos que negociaram com Hitler, de Estaline aos inimigos de Estaline?
A grandeza de Aristides supera em muito a de esses que lha não reconheceram como a dos que lha reconhecem, pois nenhum deles fez alguma vez algo de tão espantosamente bom e belo quanto este ser humano, imperfeito como todos nós, mas quanto mais grandioso, por exemplo, do que eu.
Ao homenagear-se Aristides, quem o homenageia homenageia-se a si próprio com a “ordem de Aristides”. Aqueles são os que foram suficientemente inteligentes para perceber agora o que deveria ter sido percebido há muito. Todavia, a grandeza do Cônsul, essa mede-se pela mesma bitola com que mediu o absoluto da grandeza humana de quem procurou salvar, mede-se por Deus e apenas por Deus.
À luz do mesmo Deus, ajoelho-me reverentemente perante a memória deste Homem que soube como poucos fazer irradiar de si em atos de bem o bem criador de Deus.