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Leitura: “A via da misericórdia - Na sabedoria dos Padres do Deserto”

Imagem D.R.

Leitura: “A via da misericórdia - Na sabedoria dos Padres do Deserto”

«Recomeçar todos os dias o caminho que nos leva ao interior da vida e ao coração dos outros, nisto consiste a via da misericórdia. Assim se poderia resumir a sabedoria dos Padres do Deserto e que se apresenta neste livro como uma proposta aberta a todos os peregrinos de uma vida melhor.»

É esta a proposta da publicação “A via da misericórdia - Na sabedoria dos Padres do Deserto”, com seleção, tradução e apresentação de Isidro Lamelas, e ilustrações de José Filipe Pereira Lamelas, que a Universidade Católica Editora lançou recentemente.

«As palavras de ouro aqui recolhidas são eco e apelo a percorrer o mesmo caminho do silêncio fecundo que nos faz falta. Muito podemos aprender com estes homens e mulheres “ébrios de Deus” que “fogem dos homens” para proporem um modo novo de ser e homem e de viver entre os homens. Mais do que conselhos ou ensinamentos a ser lidos, nestas páginas somos convidados a contemplar quadros vivos dessa sabedoria do coração que faz da misericórdia um programa de vida e uma via sempre nova a percorrer», lê-se na sinopse.

A antologia pretende mostrar «que a vida e espiritualidade cristãs ou trilham o caminho da misericórdia ou pouco têm a ver com o Deus de Jesus Cristo», ajudando «a entender que tal caminho passa pela recuperação da interioridade e reencontro consigo, com Deus e com o próximo», explica o autor no texto de apresentação.

A obra tem também como propósito «ilustrar, com testemunhos que «falam por si», que a via da misericórdia é realmente, enquanto espiritualidade concreta, um caminho libertador e terapêutico que a todos fará muito bem», escreve Isidro Lamelas, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica.

Após o cristianismo ter passado, no contexto do Império Romano, de religião ilícita e perseguida para a condição de religião tolerada, em 313, e depois para Igreja protegida e beneficiada, alguns cristãos «que guardavam ainda bem viva a memória da perseguição e alto preço que muitos de seus antepassados pagaram pelo testemunho da fé, optaram por encontrar uma nova forma de manter o combate da fé, sem cedências à onda secularizante que invadira a Igreja imperial».

Os Padres do Deserto são assim designados porque começaram por se retirar no ermo desértico, começando, entre os séculos IV e V, pelo Egito, ocupando depois outros espaços, como a Palestina e Síria. Depressa este movimento ascético se espalhou em «múltiplas vagas que, sob diversas modalidades (anacoretismo, semianacoretismo, cenobitismo), encontrará continuadores ao longo dos séculos, a oriente e ocidente, até aos nossos dias».

 

Apresentação
Isidro Lamelas
In “A via da misericórdia - Na sabedoria dos Padres do Deserto”

«Eis que eu mesmo vou seduzi-la, conduzi-la ao deserto e falar-lhe ao coração» (Os 2,16). No interior de todo o ser humano, peregrino neste mundo e no tempo que passam, ecoa, ainda que em surdina, esse apelo ao deserto e ao silêncio, como condição de escuta e de encontro.

Há muito que se fala da nostalgia do silêncio como nota característica da cultura contemporânea a qual, ao mesmo tempo, parece conviver melhor com o rumor da cidade do que com a silenciosa solidão. Não será por acaso que a sabedoria dos «Pais» do deserto tem vindo a merecer um crescente interesse, conquistando discípulos e seguidores, inclusive nas áreas menos prováveis, como na gestão e liderança de grupos e empresas ou na terapia das enfermidades da alma e do corpo; mas sobretudo enquanto mestres de uma sabedoria perene.

É verdade que se trata muitas vezes de um tipo de «seguidores» pouco fiéis, que, querendo tornar atual a sabedoria tão nova e tão antiga dos Padres do Deserto, incorrem frequentemente na tentação de «modernizar» esses «anciãos», transformando os seus apotegmas em «pensamentos bonitos».

Ora o deserto não produz «pensadores» nem «pensamentos», e muito menos «pensamentos bonitos». É bem mais provável que nele encontremos profetas incómodos e terapeutas da alma que não hesitam em pôr o dedo nas feridas mais profundas nem receiam enfrentar os «demónios» mais ocultos que nos tentam. Tudo isto com o intuito primeiro de libertar e curar pela via da misericórdia. Esta, longe de ser uma espécie de carícia sobre as feridas da alma, é um remédio de graça que também exige trabalho e dor, como no-lo dão a entender tanto os Padres como as Madres do deserto: «Devemos acender o fogo divino em nós mesmos, com lágrimas e esforço», dizia a madre Sinclética.

Toda a ascese ou exercitação espiritual, bem como o retiro e êxodo eremítico do monge, visam a paz que só se poderá alcançar no oásis do Amor de Deus. É aqui que o homem espiritual encontra a fonte para o tão almejado repouso do coração: um coração silente que não julga, não condena, não calcula nem se impacienta, mas simplesmente ama em Deus. Ama Deus e o próximo, como ele é e não como deveria ser; ama o outro perseverantemente, tal como Deus ama, incondicionalmente. Nisto consiste a misericórdia.

No retiro silencioso e no seu modo de vida desconcertante, estes buscadores de Deus escavaram poços de sabedoria que, inevitavelmente, nos conduzem ao Evangelho não domesticado, mas também nos aproximam das fontes da sabedoria perene, mostrando-nos que as sementes do Verbo estão realmente presentes em todas as tradições e experiências religiosas honestas.

Escrever sobre os Padres do Deserto só faz, pois, sentido se for para aprendermos com o seu silêncio. Por isso, as «palavras de ouro» que selecionámos para esta antologia não são senão centelhas de fogo que se soltam das vidas ocultas desses homens abrasados e «ébrios de Deus», como lhes chamou S. Macário, um deles, no século IV. (…)

Diz-me uma palavra! Assim nasceram e ganharam forma os «ditos» dos Padres do Deserto. Contudo e rigorosamente falando, os Padres do Deserto não nos deixaram «palavras» nem escritos. Muito mais do que «palavras» ou ensinamentos são, segundo a feliz expressão de S. Agostinho, sentenças que possuem «o sonoro e falante silêncio da verdade».

Estamos, de facto, perante palavras forjadas no silêncio de uma vida despojada e provada no crisol da humildade radical; são «palavras ilustradas com a vida», palavras-testemunho que, por isso, também podem ser «retratadas» em «quadros vivos». Os desenhos que acompanham esta antologia não visam, por isso, apenas «ilustrar» ou embelezar as páginas da mesma, mas sugerir episódios vivos de uma espiritualidade concreta que vale a pena contemplar sem pressa de fugir, nem medo de não chegar.

Sabemos que estas palavras essenciais dos «anciãos» foram lembradas e repetidas ao longo dos séculos como «regras» de vida, antes e depois do surgimento das primeiras Regras monásticas escritas. Efetivamente, a «escola» do deserto é de uma sabedoria sem livros nem mestres, mas com «pais» que, através das suas vidas e «palavras práticas», apontam caminhos de perfeição que passam sempre pela via da misericórdia. Mais do que teóricos da espiritualidade, estes «pais espirituais» são, por isso, uma reserva inesgotável da humanidade e de humanismo, precisamente porque deixaram incendiar a sua vida pelo fogo regenerador do amor «misericordioso eterno» e terno de Deus. (…)

 

A misericórdia nos Padres do Deserto

Dizer que Deus é amor não é apenas uma revolucionária afirmação teológica, mas um recomeço renovador de toda a humanidade na sua existência e coexistência. Se Deus é amor, a misericórdia é a dimensão prática da Caridade que Deus é. Se «Deus mora onde há caridade» (“ubi caritas Deus ibi est”), a misericórdia é o estilo próprio de viver e habitar dos discípulos de Cristo. O que nos é proposto nas palavras cheias de misericórdia destes homens e mulheres do deserto é esta nova forma de presença de Deus entre nós e de comunhão dos homens entre si.

Cientes de que a verdadeira caridade consiste em ser misericordioso como o Pai do Céu (Lc 6,36) que derrama a sua bondade e misericórdia infinitas sobre todas as criaturas (cf. Mt 5,45), os Padres do Deserto costumam alargar esse dom também aos animais e, alguns, vão mesmo mais longe, como é o caso de Santo Isaac de Nínive, um dos monges citados na presente antologia que viveu no século VII ao norte da atual Mosul, e que define o «coração misericordioso», nestes termos:

«Coração misericordioso é um coração incendiado (de amor) por toda a criação: pelos homens, pelas aves do céu, pelos animais da terra, pelo demónio, por toda a criatura».

Segundo este mesmo pai espiritual, o monge «foi colocado neste mundo para invocar a misericórdia e velar pela salvação de todos e de tudo, e para se unir aos sofrimentos de todos os homens, justos ou pecadores».

Porque a misericórdia, para além de não conhecer limites, é algo de essencialmente prático, enquanto dom de Deus restituído na pessoa do próximo, porque nele está Deus, Evágrio e os demais «Padres doutos» deram ao exercício da misericórdia o nome de «práxis». A práxis é essa «ciência prática» do amor ao próximo pela misericórdia.

Os Padres do Deserto propõem-nos essa prática de misericórdia, que é via de reconciliação da criatura com o Criador e do homem com o seu semelhante e com todos os seres. A paz reconquistada é fruto desta nova sementeira de misericórdia reinventada por Cristo e continuada pelos seus discípulos, em cada tempo e em cada deserto ou cidade habitados por muitos buscadores de Deus e um punhado de justos.

Como os próprios «monges do deserto» nos ensinam, não é o deserto que faz o monge, e de nada valem o silêncio, o jejum ou múltiplas formas de ascese e anacorese, sem a caridade que nutre a misericórdia. Eles aconselham-nos a buscar a simplicidade e pureza do coração, cultivando, antes de mais, um «coração justo» e pacífico; liberto, não das tentações, mas das más opções do homem dividido ou da alma inchada pela soberba.

Todo o edifício da virtude assenta, por isso, no alicerce da humildade que leva a acusar-se a si próprio, em vez de julgar os outros; a carregar os fardos do próximo, em vez de lhe agravar a carga; a encobrir as quedas dos fracos, em vez de apontar o dedo e atirar pedras; ao perdão das ofensas, em vez do ressentimento e a justiça pelas próprias mãos.

Se algo de novo encontramos nestes insaciáveis buscadores de Deus é o radicalismo com que querem imitar a misericórdia do Pai e, a compaixão de Jesus, como caminho novo. Um caminho que o Papa Francisco nos repropõe, neste ano jubilar da Misericórdia (…)

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 05.08.2016

 

Título: A via da misericórdia - Na sabedoria dos Padres do Deserto
Organização / Ilustrador: Isidro Lamelas / José Filipe Pereira Lamelas
Editora: Universidade Católica Editora
Páginas: 128
Preço: 9,90 €
ISBN: 978-972-540-504-8

 

 
Imagem D.R.
O deserto não produz «pensadores» nem «pensamentos», e muito menos «pensamentos bonitos». É bem mais provável que nele encontremos profetas incómodos e terapeutas da alma que não hesitam em pôr o dedo nas feridas mais profundas nem receiam enfrentar os «demónios» mais ocultos que nos tentam. Tudo isto com o intuito primeiro de libertar e curar pela via da misericórdia
Escrever sobre os Padres do Deserto só faz, pois, sentido se for para aprendermos com o seu silêncio. Por isso, as «palavras de ouro» que selecionámos para esta antologia não são senão centelhas de fogo que se soltam das vidas ocultas desses homens abrasados e «ébrios de Deus»
Diz-me uma palavra! Assim nasceram e ganharam forma os «ditos» dos Padres do Deserto. Contudo e rigorosamente falando, os Padres do Deserto não nos deixaram «palavras» nem escritos. Muito mais do que «palavras» ou ensinamentos são, segundo a feliz expressão de S. Agostinho, sentenças que possuem «o sonoro e falante silêncio da verdade»
Os desenhos que acompanham esta antologia não visam apenas «ilustrar» ou embelezar as páginas da mesma, mas sugerir episódios vivos de uma espiritualidade concreta que vale a pena contemplar sem pressa de fugir, nem medo de não chegar
Mais do que teóricos da espiritualidade, estes «pais espirituais» são, por isso, uma reserva inesgotável da humanidade e de humanismo, precisamente porque deixaram incendiar a sua vida pelo fogo regenerador do amor «misericordioso eterno» e terno de Deus
Os Padres do Deserto propõem-nos essa prática de misericórdia, que é via de reconciliação da criatura com o Criador e do homem com o seu semelhante e com todos os seres
Todo o edifício da virtude assenta no alicerce da humildade que leva a acusar-se a si próprio, em vez de julgar os outros; a carregar os fardos do próximo, em vez de lhe agravar a carga; a encobrir as quedas dos fracos, em vez de apontar o dedo e atirar pedras; ao perdão das ofensas, em vez do ressentimento e a justiça pelas próprias mãos
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