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A verdadeira vida faz-se a caminho da Terra da Alegria

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Imagem YakobchukOlena/Bigstock.com

1. Toda a força de existir atrai o corpo para a completude, o contágio, a alegria. Sem a "jubilatio" de existir a vida seria invariavelmente invernal e frustre. O ser humano não quer apenas viver, quer viver feliz, e quando o não consegue, quer viver de outra maneira, ou deixar de viver. Toda a vida é feita de estados afetivos polarizados (a alegria, a tristeza, a dor, o prazer) que são já trocas afetivas - positivas ou negativas. «Descobrimos cedo ou tarde que na vida a felicidade perfeita não existe, mas poucos são aqueles que se detêm na consideração inversa, que também não há desgraça absoluta. As razões que impedem a realização dos dois estados limites - a alegria e a tristeza - devem-se à própria natureza do homem que se opõe a qualquer ideia de infinito» (Levi, 1947, 17). Mas no seu fundo, a vida humana é uma "appetitio beatae vita"e (Agostinho). E que nos faz felizes: a "voluptas", a "virtus", ou o "donnum dei"?

2. «Vivei sempre alegres», diz Paulo. Como, em tempos sombrios? Para Pascal o homem só procura os jogos e a conversação com as mulheres, a guerra e os grandes empregos para se divertir, isto é, para se desviar da sua condição miserável. Ora, o divertimento não afasta de Deus: quanto maior é a alegria por que somos afetados, maior é a perfeição a que passamos; e, por conseguinte, mais participamos na natureza divina. Porque então concluir que só nos podemos aproximar de Deus passando pela vertigem diante do infinito e a angústia em face da morte? Será que a grandeza de Deus só se manifesta através da nossa fraqueza? Não. A meditação melancólica, o questionamento sem resposta, a angústia existencial não são a melhor estrada que leva a Deus. Se somos uma parte da natureza divina, é reforçando-nos através do prazer e elevando-nos através da alegria que nos aproximamos de Deus. É a tristeza que nos diverte, falhando aquilo que de facto somos. Ora a tristeza nada nos pode ensinar sobre nós mesmos, nem nada de essencial sobre o mundo. Nietzsche tinha razão: o otimismo é sinal de fraqueza, o pessimismo é sinal de força: o homem trágico sente a potência crescer ao contemplar o que lhe é contrário: o sofrimento, o mal, o trágico. Há a «energia do desespero», que pode não ser a expressão da renúncia e ainda menos a manifestação de um niilismo fechado; pode ser o real manifesto do "agora" intrépido, do «é preciso» do pensamento e da vida.



A dor, que é uma tristeza parcial, pode ser boa, como antídoto e instrumento de disciplina que permite contrariar os excessos do prazer. Pior é a tristeza, que afeta a totalidade do nosso ser, pior é sermos mordidos pela melancolia



3. Não estamos sempre suspensos por um fio, ou dependurados de um precipício? Não está o instante carregado de perigos? A boa regra de vida consiste em aumentar a quantidade de alegria e em reduzir em porção conveniente os episódios de tristeza. Mas a alegria não se decreta, como não se decreta o bom tempo. Só compreendendo as causas dos nossos medos e frustrações, tomando consciência dos nossos traumatismos e complexos é que nos podemos libertar deles. Sem ilusões: ficará sempre um cantão de tristeza irredutível, a que podemos chamar a dimensão trágica da existência. É preciso libertar-se das cadeias de uma moral ascética que está sempre a culpabilizar o prazer da vida. O Evangelho não é o antídoto para a época ansiogénica que é a nossa, um Prozac a engolir em todas as circunstâncias e que nos sopra ao ouvido: sejamos felizes custe o que isso custe! A alegria obrigatória pode irritar. Pensemos nos pozinhos de desenvolvimento individual, no «pensamento positivo» tão caro a certos círculos, que nos solicitam para nunca perdermos o sorriso, por falso que seja, e que olham qualquer descontentamento como uma ofensa e uma impiedade.

4. Podemos ser «glad to be unhappy», feliz por estar triste, como cantava Frank Sinatra. A filosofia da alegria, pela sua preocupação maníaca de aplanar as nossas emoções e as alisar, de lavar mais branco que branco as nódoas da nossa alma, torna-se numa espécie de puritanismo - a alegria artificial dos curas (no ano sacerdotal) e dos escuteiros e dos carismáticos. Como se uma vida a que faltasse a dimensão do trágico fosse desencarnada, sem profundidade e sem sal. Ser alegre não é necessariamente ver a vida cor-de-rosa. «A alegria é a passagem do homem de uma menor perfeição a uma perfeição maior» (Spinoza). Passageira e evanescente. Já Epicuro ensinava que há um prazer-movimento que supõe um aumento progressivo de perfeição e há um prazer-repouso, a ataraxia, estável, do contentamento de si. As ideias negras ou as situações de perigo podem alegrar-nos desde que aumentem a nossa potência de agir e de pensar. É verdade que a maior parte das nossas alegrias são parciais e excessivas: os prazeres monomaníacos levam ao delírio, como o provam o avaro, o ambicioso e o lúbrico, cujo perímetro jubiloso se focaliza num ponto só. Há alegrias falsas, estados de euforia ou otimismo beato que de facto embrutecem o nosso pensamento e paralisam o nosso corpo. A hipnose produzida pela música "techno" só será jubilosa se o êxtase corporal for ao mesmo tempo iluminação espiritual. A "hilaritas" invade o corpo todo, como um rio tumultuoso e largo, ao contrário da "titilatio", que se centra apenas em algumas partes do corpo, podendo, por isso, ser excessiva.



Quem não vê o interesse em nos manter na tristeza para melhor nos dominar? A alegria incondicional é uma arma, uma bandeira contra toda a forma de alienação porque a alegria é o outro nome da liberdade, enquanto afirmação plena da nossa individualidade



5. Que lugar ocupa a dor como condição da definição do sujeito no mundo atual? A resposta estaria hoje na relação entre tecnologia médica e a imagem pública do sujeito. Atualmente é difícil sentir fisicamente a dor: há sempre à mão analgésicos ou anestesia. Inibir a dor é inibir a memória da coletividade humana, algo como pretender evitar o envelhecimento mediante uma languidez programada da existência. As imagens cruéis da guerra ocasionam uma solidariedade tão intensa como fugaz, apaziguando assim a boa consciência de contribuintes de diversas ONGs. A dor, que é uma tristeza parcial, pode ser boa, como antídoto e instrumento de disciplina que permite contrariar os excessos do prazer. Pior é a tristeza, que afeta a totalidade do nosso ser, pior é sermos mordidos pela melancolia, a grande besta negra de Spinoza. A melancolia é a depressão, no sentido próprio do termo, e que reduz e comprime a nossa potência intelectual e física: não nos torna apenas fracos mas estúpidos.

6. O «como se» Paulino priva-nos da capacidade de nos sentirmos plenamente satisfeitos: devemos sentir-nos satisfeitos como se não estivéssemos. Para Chesterton, a lição fundamental dos contos de fadas está contida naquilo a que chama doutrina de Alegria Condicional: «poderás viver feliz com a filha do rei, se não lhe mostrares uma cebola». O sonho está sempre sujeito a uma proibição. A proposta pagã é profundamente melancólica: mesmo que apregoe uma vida agradável, é no registo do «aproveitem enquanto é tempo, porque tudo acaba na morte e na decadência».

7. Os sistemas de opressão manipulam a nossa tristeza para nos submeter. Não é o que vemos hoje: medo da insegurança e do estranho para manter o Estado policial; frustração sexual e ferida narcísica para incentivar o consumo; ressentimento contra o êxito dos outros, motor do igualitarismo comunista e da concorrência liberal; medo dos riscos de saúde e das catástrofes que nos rodeiam? Quem não vê o interesse em nos manter na tristeza para melhor nos dominar? A alegria incondicional é uma arma, uma bandeira contra toda a forma de alienação porque a alegria é o outro nome da liberdade, enquanto afirmação plena da nossa individualidade.

8. «A minha única salvação é a alegria... Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas - porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste. Sejamos alegres. Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. Como resposta. E a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser» (Clarice Lispector, "Água viva", pp. 94-95). Que o grito de alegria seja um grito de guerra contra todas as superstições que nos querem agrilhoados à tristeza. A verdadeira vida faz-se a caminho da Terra da Alegria. Que a melancolia seja apenas um inocente interlúdio, um suave e passageiro estado de espírito nesta passagem; e que o louvor seja o permanente pulsar da alma, a "jubilatio". Que o Deus, sítio da alegria, nos empreste mãos, pão e vinho e asas para espaçar a mesa daqueles que connosco esperam o seu advento.



 

José Augusto Mourão
In "Quem vigia o vento não semeia", ed. Pedra Angular
Publicado em 04.05.2017

 

 
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