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A música de Van Morrison: Ponte fugaz para o infinito

Quarenta discos são uma enormidade para um músico que começou a pisar o palco na metade dos anos 60. Sobretudo porque a publicação de tantos álbuns, como antes se dizia, demonstra que o tempo, verdadeiro tirano para muitas super-estrelas caídas inexoravelmente no esquecimento, não arranhou a criatividade de George Ivan Morrison, mais conhecido como Van Morrison, ou Van The Man, como gostam de o chamar os seus fãs mais inveterados. O seu último trabalho, “The prophet speaks”, publicado há algumas semanas, segue-se a três discos saídos no espaço de poucos meses. Orientados entre a soul, o jazz e o blues, são todos pequenas pérolas que declinam o universo musical de Van Morrison, um irlandês terrível que, no arco de toda a sua carreira, pouco concedeu ao “show business”.

Certamente que também ele teve os seus momentos de grande sucesso. Algumas canções como “Moondance” ou “Have I told you lately that I love you” tornaram-se verdadeiros clássicos retomados e repropostos um pouco em todos os géneros. Mas sem nunca se aproximarem dos originais, porque a música de Van Morrison e sobretudo o seu modo de a interpretar têm uma característica que hoje se tornou difícil de encontrar nesta época de exasperado “sampling”.  

Se se escuta “Astral weeks” – o disco de 1968, praticamente ignorado pelo público e pela crítica no momento da sua edição, mas depois tornado imprescindível para todo o cultor da chamada música ligeira –, compreende-se o que torna Van Morrison realmente único no panorama musical: uma linha harmónica simples, poucos acordes tocados preferencialmente com instrumentos acústicos, as pausas que dilatam os tempos e a voz que repete uma frase do texto, ou inclusive uma mesma sílaba, quase numa espécie de mantra.

E é nestes momentos que Van Morrison alcança o topo da sua expressividade. É nos momentos de silêncio, nas suspensões construídas com os seus vocalizos, que no ouvinte se insinua a dúvida de estar diante de uma meditação em música mais que perante uma canção. Porque, no fundo, o objetivo de Van Morrison, como de todo o verdadeiro artista, é explorar a possibilidade que o instrumento expressivo oferece de olhar para uma realidade mais vasta.



O estardalhaço, as guitarras distorcidas, as secções rítmicas bombásticas, o fumo sobre o palco, os efeitos cénicos, as piscadelas de olho não interessam a Van Morrison, que durante os seus concertos – sempre verdadeiramente memoráveis, também pela capacidade de rodear-se de músicos extraordinários – aparece composto, quase esquivo



As suas canções, mas sobretudo os seus silêncios, tornam-se por isso a chave-mestra para abrir portas que a pressa e o barulho escondem ao coração. Trata-se de átimos fugazes, de breves lampejos de luz que, como uma poesia de Hart Crane, lançam uma veloz ponte para o infinito. A referência literária não é casual porque de poesia se alimenta a produção de Van Morrison. Uma das suas canções mais conhecidas, “Rave on John Donne”, é dedicada ao enorme poeta citado no título, que no texto é convidado a «continuar a delirar” (“rave on”) como um «santo louco» (“holy fool”) através do tempo para iluminar as consciências.

Outra faixa, “In the days before rock’n roll”, um longo monólogo recitado pelo poeta e co-autor do texto, Paul Durcan, narra as distantes jornadas irlandesas nas quais o muito jovem George Ivan tentava sintonizar a Rádio Luxemburgo para escutar as canções dos seus ídolos do outro lado do oceano. Numa entrevista à revista “Rolling Stone”, Van Morrison confessou que as suas principais referências musicais foram Solomon Burke e Ray Charles. E, com efeito, o rock, como o conhecemos desde os anos 60 em diante, não parece ocupar um lugar de destaque no conjunto da produção do músico irlandês. Todavia, com o seu primeiro grupo, os Them, foi um dos protagonistas da “british invasion” capitaneada pelos Beatlhes e autor de um dos maiores sucessos daqueles anos, “Gloria”, depois transformado num sucesso planetário pelos Doors.

Mas o estardalhaço, as guitarras distorcidas, as secções rítmicas bombásticas, o fumo sobre o palco, os efeitos cénicos, as piscadelas de olho não interessam a Van Morrison, que durante os seus concertos – sempre verdadeiramente memoráveis, também pela capacidade de rodear-se de músicos extraordinários – aparece composto, quase esquivo, muito próximo daquele Bob Dylan com o qual partilha muitas das estradas percorridas. A começar pela da religião, que no caso do músico irlandês (e como poderia ser de outra maneira, dadas as raízes) não é decerto uma aquisição recente.

Como Dylan, Van Morrison prefere reatar os fios da memória usando a chave da poesia, dando espaço à força iluminante e criativa da palavra. Mas os seus veículos são prevalentemente a soul e o blues, sem renunciar a algumas incursões na tradição irlandesa. São todos géneros utilizados para dirigir-se a Deus em música, para lhe exprimir gratidão, para implorar a libertação da escravidão ou simplesmente para rezar. Este é o objetivo de Van Morrison: dar expressão musical à sua religiosidade. Uma religiosidade nunca quieta ou adormecida, mas dinâmica, às vezes problemática e em constante busca. Porque, como recita o texto de “Whenever God shines his light”, não faltam os momentos de profunda confusão e de grande desespero, mas com a certeza de que, quando Ele é procurado, Deus faz-se sempre encontrar. E não é preciso muito ruído para o descobrir. Basta escutar.








 

Giuseppe Fiorentino
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 21.01.2019 | Atualizado em 10.10.2023

 

 
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