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Leitura: "A construção de Jesus - A surpresa de um retrato"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: "A construção de Jesus - A surpresa de um retrato"

A Paulinas Editora vai lançar a 12 de outubro o livro "A construção de Jesus - A surpresa de um retrato", reedição da tese de doutoramento de José Tolentino Mendonça.

A investigação bíblica baseia-se no trecho do Evangelho segundo S. Lucas em que uma mulher pecadora lava e perfuma os pés de Jesus, sentado à mesa de refeição de um fariseu.

Este encontro da mulher com Jesus «suplanta as barreiras da legalidade social e religiosa e, por isso, divide o pensar comum, acende o lume da interrogação, torna-se arriscado», sublinha o autor.

«Um encontro que, na sua desprotegida sinceridade, desfaz os falsos cálculos que a religiosidade, por vezes, esconde: o silêncio e as lágrimas são a expressão do impronunciável mais fundo, dessa verdade que cada um traz mergulhada no sangue. E é assim que nesse encontro, mais do que noutros, alguém assinala, reconhece, toca, alaga de lágrimas e unge o mistério de Jesus», acrescenta.

A construção de Jesus faz-se segundo «contrastes, num fluxo que tantas vezes navega entre incompreensões e ambiguidades» e por isso «há uma tensão que deixa, até ao fim, a intriga em suspenso quanto à pessoa de Jesus», que maravilha e desconcerta, alegra e suscita ódios, é acolhido e expulso.

"Uma inesperada entrada em cena", "Uma história é uma sequência de quadros", "Há mais de uma maneira de vermos a mesma coisa", "Quem é este que perdoa pecados?", "O que tem de revelador o espaço", "Do tempo cronológico ao tempo da revelação", "Da parte para o todo: Como por um só capítulo se relê o Evangelho", "Jesus era ou não um profeta?", "O encontro de Jesus com os pecadores", "De que falamos, quando falamos de salvação" e "A arte de construir Jesus" são os títulos dos 11 capítulos do livro (208 pág.), de que apresentamos a "Abertura".

 

Como cheguei aqui
José Tolentino Mendonça
In "A construção de Jesus"

Vou contar como cheguei até aqui. Como, entre tantos episódios que os Evangelhos relatam, aquele da pecadora que se arrisca por um território hostil apenas para tocar em Jesus (Lc 7,36-50) acabou por tornar-se o meu objeto de trabalho bíblico durante anos, mas não só de trabalho: também de emoção, de imaginação, de afeto e de fé. O convívio com esse texto mudou completamente o meu olhar sobre Jesus e, com isso, posso dizê-lo, mudou também a minha vida. Passei a dar valor à necessidade de consolação que todos os humanos transportam; às linguagens com que o corpo e a alma se expressam e que, porventura, não sabemos atender devidamente ainda; à singularidade irredutível da narrativa biográfica; àquela porção de vida íntima que se comunica melhor com silêncio e lágrimas do que por palavras; ao perfume e ao dom; à hospitalidade de Deus que Jesus revela, e que é a expressão, por excelência, da sua incondicional misericórdia.

Devo ter ouvido antes este episódio dezenas de vezes, mas o que me fez caminhar para ele intrigado, perfeitamente movido pelo espanto, foi um comentário do romancista japonês Shusaku Endo, no seu livro "Uma vida de Jesus". A sensibilidade dos escritores torna-os uma espécie de detetives: por detalhes de palavra ou pela decifração do que, a outros, parecem insignificantes elementos de forma chegam a conclusões que revolvem completamente textos que julgamos já conhecer, como é o caso dos textos evangélicos. Endo foi isso para mim. No seu livro ele explica, de maneira simples, acessível a qualquer leitor, um recurso algo complexo, mas muito frequente na literatura: o chamado efeito de realidade. Aconteceu-nos certamente a todos, ao contactarmos com uma narrativa, sentirmos que ela se torna, na leitura, tão presente a nossos olhos que parece não um mero relato, mas uma impressiva visão cinematográfica. Isso, em grande medida, resulta do uso competente dessa técnica denominada "efeito de realidade". Ora, o que Shusaku Endo defende é que a peripécia da pecadora intrusa, que faz tudo para tocar naquele hóspede, é um momento central no Evangelho de Lucas, mais eficaz na transmissão de Jesus do que muitos outros, inclusive do que as histórias de milagres, porque dá de Jesus, precisamente pelo efeito de realidade, uma imagem viva, surpreendente e real. Confesso que tive um sobressalto e senti que tinha de compreender melhor o que o romancista sugeria. A verdade é que, se até àquele momento me tivessem perguntado, eu diria que o trecho de Lc 7,36-50 é interessante, sim, singular na sua temática, e, pensando nas lágrimas da mulher, emocionalmente intenso. Não diria, porém, tratar-se de uma peça privilegiada para abordar o sentido de Jesus como hoje creio. Que segredos estavam escondidos aos meus olhos?

No ano 2000 tive a possibilidade de iniciar a preparação do meu doutoramento em Teologia Bíblica. Acho que não tive de dar muitas voltas para chegar ao tema que pretendia tratar. Desde o princípio, mas talvez de forma mais intuitiva do que racional, eu sabia que não conseguiria adiar muito mais aquele encontro. No entanto, também temia. Os trabalhos doutorais que ouvia classificar como recomendáveis no campo bíblico desenvolviam temáticas teológicas precisas e esse era o caminho que, supostamente, se esperava que eu seguisse. A relação da Bíblia com a literatura e os métodos literários de análise, tópico sobre o qual lera já alguma coisa com entusiasmo, não pareciam suficientemente convincentes ao meio que me rodeava, nem estava eu preparado ainda para defendê-lo com convicção. Precisava de mergulhar em leituras, aprender com as experiências de outros, tentar eu próprio. Tinha um longo caminho a percorrer. A solução que encontrei foi propor-me em vez de um, três textos em sequência, que surgem no Evangelho de Lucas e que contam momentos da complexa relação de Jesus com os fariseus. Não falava diretamente da intrusa, nem do seu perfume, nem do seu monólogo sem palavras, nem da oficina desse escritor fantástico chamado Lucas que conseguiu criar cenas como esta, de uma mestria irresistível. Mas tudo isso estava dentro da minha escolha, pois um dos textos era o da intrusa, que ocorre em casa do fariseu para um surpreendente encontro com Jesus. E ainda bem que foi por esse episódio que comecei o trabalho, ao chegar a essa espécie de terra prometida que é a biblioteca do Instituto Bíblico em Roma. Quando dei por mim, já tinha lido e escrito tanto sobre esse episódio que os orientadores gentilmente me fizeram ver que a tese era afinal essa e mais nenhuma.

O que descobria sobre o episódio aumentava os limites do meu espanto. Percebia, claro, pelas minhas próprias dificuldades, aquilo que Von Sybel garantia ser um consenso entre especialistas: que este era um dos episódios de mais difícil interpretação dos Evangelhos. Mas, ao mesmo tempo, tornara-se impossível não admirar agora as personagens, recortadas num dramatismo forte e contrastado que mistura manifestações emotivas e resistências, silêncios e revelações. Não admirar a arquitetura narrativa, a vivacidade, a implícita atmosfera de escândalo, a reviravolta do modelo teológico esperado, um carácter intrigante que o texto tem, e, também por isso, mais atraente. E como o resultado final desenha uma iluminação inesperada da figura de Jesus: recuperando e relançando os fios da sua identidade; desvelando e, ao mesmo tempo, adensando o mistério.

Por outro lado, este improvável encontro em casa do fariseu constituía, compreendia eu agora, um momento privilegiado do grande percurso que o Evangelho representa. Ele ocorre, por sinal, num momento em que se intensifica a curiosidade a respeito de Jesus. Todos querem perceber de quem se trata e fazem perguntas acerca dele: sejam nazarenos ou habitantes de Cafarnaúm, os discípulos ou as multidões, os fariseus ou os escribas, o Batista ou Herodes (4,22.36; 5,21.26; 7,19; 8,25; 9,9). Predomina em todo o contexto um clima de irresolução, entre opiniões discordantes ou mesmo contraditórias, confissões parcelares ou ditos ambíguos, que sugere uma redobrada atenção aos elementos narrativos em jogo, pois, subtil e gradual, o processo de revelação de Jesus não deixa de acontecer. De facto, o evangelista não fixou a experiência de Jesus num esquematismo de fórmulas acabadas, mas na sugestão incessante de um caminho que o próprio texto repropõe. Mais do que prévias ou apressadas respostas, são as perguntas que colocamos e que o texto nos coloca, que nos abeiram do poder inesgotável que estas histórias têm de nos segredar Jesus.

Em 2004 defendi a minha tese e chamei-lhe "A construção de Jesus. Uma leitura narrativa de Lc 7,36-50". Ela foi publicada na coleção de teses da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e na Editora Assírio & Alvim. As teses de doutoramento são, como se sabe, de leitura exigente e compreensivelmente minoritária. Para mais, numa tese sobre um texto do Novo Testamento deve esperar-se um trabalho filológico sobre a fonte original em grego, uma discussão sobre variantes textuais e manuscritos, uma complexidade hermenêutica que pesa sobre o leitor não especializado. Ainda assim, o número e o entusiasmo dos leitores foi uma ótima surpresa, e para mais quando vi o livro premiado pelo Pen Clube Português que o desta cava, nesse ano, na categoria do ensaio. Contudo, não tenho ilusões. Para a maior parte dos meus leitores essa obra, na sua forma inicial, era e é inacessível.

Quando a Paulinas Editora me propôs republicar a tese, respondi imediatamente um «sim» e um «mas». Sim, porque gostaria que essa investigação continuasse acessível e pudesse ser útil a quantos procuram chaves para uma aproximação a Jesus. Disse, contudo, também um consciente «mas», e por várias razões. Primeiro, passou-se uma década sobre a pesquisa em que a tese se baseia. Ora, uma dissertação de doutoramento parte sempre de um confronto com o «estado da arte» das temáticas que se abordam. Nesse sentido, não são textos intemporais, nem se devem republicar simplesmente sem ter, pelo menos, um razoável apêndice que as compagine com aquilo que, entretanto, se escreveu e avançou. E muitas vezes isso não basta. Depois, a tese já teve uma oportunidade no circuito do livro, está disponível em biblioteca e há naturalmente a expectativa de que, mantendo essa forma integral de origem, ela possa também ser consultada nos repositórios digitais. Para os investigadores e especialistas o acesso à tese não era uma questão. Não podia ser isso, portanto, a mover-me. Pretendia, antes, aproveitar a oportunidade para apresentar uma versão modificada, mais essencial no conteúdo, menos fechada na forma e destiná-la ao público que segue as minhas publicações no campo da teologia e da espiritualidade.

Hesitei muito tempo em torno do título e optei por uma via de meio. Era impossível não colocar o título original "A construção de Jesus". Esse título explica o texto que então escrevi e que agora reproponho. Porquê "A construção de Jesus"? Porque se trata de perceber que, mais do que uma afirmação exclusivamente dogmática sobre Jesus, o evangelista optou por uma dinâmica narrativa: vamos compreendendo Jesus progressivamente, através de traços, por palavras e meias-palavras, encontros e desencontros, entusiasmos e resistências, esclarecimentos e enigmas sempre maiores. Mas ao mesmo tempo percebi que não podia repetir o título, sem mais. Quando se retiram elementos a um texto ele modifica-se necessariamente. E não quero passar a ideia de que, sem eles, a obra é a mesma, mantém a sua identidade. Decidi então alterar o subtítulo. Com essa decisão declarava, por outro lado, uma liberdade maior para buscar uma ordem nova para o conjunto, explorando outras possibilidades.

 

Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 29.09.2015

 

 
Imagem Capa | D.R.
O convívio com esse texto mudou completamente o meu olhar sobre Jesus e, com isso, posso dizê-lo, mudou também a minha vida. Passei a dar valor à necessidade de consolação que todos os humanos transportam; às linguagens com que o corpo e a alma se expressam e que, porventura, não sabemos atender devidamente ainda
A peripécia da pecadora intrusa, que faz tudo para tocar naquele hóspede, é um momento central no Evangelho de Lucas, mais eficaz na transmissão de Jesus do que muitos outros, inclusive do que as histórias de milagres, porque dá de Jesus, precisamente pelo efeito de realidade, uma imagem viva, surpreendente e real
O que descobria sobre o episódio aumentava os limites do meu espanto. Percebia, claro, pelas minhas próprias dificuldades, aquilo que Von Sybel garantia ser um consenso entre especialistas: que este era um dos episódios de mais difícil interpretação dos Evangelhos
Tornara-se impossível não admirar agora as personagens, recortadas num dramatismo forte e contrastado que mistura manifestações emotivas e resistências, silêncios e revelações. Não admirar a arquitetura narrativa, a vivacidade, a implícita atmosfera de escândalo, a reviravolta do modelo teológico esperado
Predomina em todo o contexto um clima de irresolução, entre opiniões discordantes ou mesmo contraditórias, confissões parcelares ou ditos ambíguos, que sugere uma redobrada atenção aos elementos narrativos em jogo, pois, subtil e gradual, o processo de revelação de Jesus não deixa de acontecer
O evangelista não fixou a experiência de Jesus num esquematismo de fórmulas acabadas, mas na sugestão incessante de um caminho que o próprio texto repropõe. Mais do que prévias ou apressadas respostas, são as perguntas que colocamos e que o texto nos coloca, que nos abeiram do poder inesgotável que estas histórias têm de nos segredar Jesus
Vamos compreendendo Jesus progressivamente, através de traços, por palavras e meias-palavras, encontros e desencontros, entusiasmos e resistências, esclarecimentos e enigmas sempre maiores
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