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"O Sentido da Fé": Diálogo e tensão entre fiéis, teologia e magistério

Nas nossas sociedades pluralistas, em que se desagregam e, às vezes, se confundem as memórias colectivas, importa acautelar a especificidade da fé cristã. É a Igreja que tem de o fazer, à medida que a transmite através da história. Deve examinar as múltiplas realizações da existência crente, para se assegurar de que a fé não é nelas pervertida. Esta vê-se obrigada a assumir rostos diversos, consoante as situações históricas em que se insere. Tem que responder aos desafios que estas lhe colocam, sem renunciar à sua identidade. A fé cristã debate-se, assim, com a possível ambiguidade de lugares e momentos em que aparece concretizada. A comunidade eclesial precisa de os submeter a um discernimento.

Ora, esta verificação da verdade da fé, nas múltiplas realizações da existência crente, não pode consistir apenas numa supervisão ou análise crítica. Deve fazer-se também por dentro dos confrontos da própria fé com as realidades da vida em que se inscreve. Daí que essa verificação não possa ser realizada só pelo magistério da Igreja e pelos teólogos. Tem de contar também com o sentido da fé exercido pela generalidade dos crentes. Trata-se da percepção espontânea, quase instintiva, que eles têm daquilo que está ou não de acordo com a revelação de Deus operada em Jesus Cristo. Referimo-nos a um olhar, iluminado pela fé, sobre tudo quanto é vivência e expressão desta.

 

A via do diálogo

Mesmo que o sentido da fé e o magistério [missão de guardar e propor o depósito da fé confiado por Jesus Cristo à Igreja, quando esse exercício é assegurado pelos bispos em união com o Papa]. experimentem tensões entre si, não podem deixar de cooperar no zelo da verdade daquilo que vivem os membros da Igreja. São funções simultaneamente afins e distintas. Ambas encontram na revelação de Deus operada em Jesus Cristo a base da verificação da tal verdade. Gozam até da prerrogativa da infalibilidade na descoberta e implementação desta última, na medida em que seguem a inspiração do Espírito.

Mas o sentido da fé não é simples reflexo do magistério, assim como este não se limita a anotar as indicações que aquele dá. Um e outro devem respeitar, pois, o que os distingue, sem deixar de promover a convergência entre si. Convém que trabalhem juntos, porque se podem complementar. Exige-se o diálogo de ambos para examinar a conformidade da experiência crente com o que Deus revelou em Jesus Cristo. O objecto sobre o qual se debruçam não é a fé abstracta, mas enquanto vivida por pessoas concretas. A verdade que procuram decifrar não existe no estado puro. Só se acede a esta pelas formas como aparece na prática. Não se pode escapar, assim, à tensão entre o dado objectivo da fé (fides quae) e o modo como se dá a sua apropriação (fides qua). De facto, a experiência crente não é simples lugar de aplicação desse dado objectivo. Traz algo de novo à verdade que este deixa transparecer. Por outro lado, essa experiência não fornece o critério último para configurar e legitimar o tal dado objectivo.

A fé cristã comporta a tensão entre dois pólos que preservam uma exterioridade mútua. O dado objectivo da fé não está em condições de circunscrever toda a morfologia da experiência crente que o Espírito suscita. Mas também não se deixa absorver pela carga subjectiva que esta apresenta. A única via para manter o elo, gerador de tensão, entre os dois pólos constitutivos da fé cristã é o discernimento. Só este consegue respeitar a natureza específica tanto da fides quae como da fides qua, considerando-as ligadas uma à outra. Sem a relação entre o dado objectivo da fé e o seu momento apropriativo, surgem perigos para ambos os pólos. Pelo lado da fides quae, pode chegar-se ao formalismo e ao moralismo. É o que aconteceria com uma intervenção do magistério desvinculada do sentido da fé protagonizado pela generalidade dos crentes. Pelo lado da fides qua, pode chegar-se a uma espécie de iluminismo ou de esoterismo. É o que esperaria provavelmente esse sentido, se não respeitasse a vigilância exercida pelo magistério.

A relação entre o dado objectivo da fé e a sua apropriação concreta permite que esta última seja colocada no seu lugar. Põe-na em confronto com aquilo que deve ser o seu quadro de referência. Em contrapartida, este não se considera rígido, dando espaço a que o Espírito mova os crentes com liberdade. Portanto, o sentido da fé submete-se à supervisão do magistério, para não se enredar na ambiguidade de que pode padecer. Por sua vez, este abre-se aos caminhos que aquele lhe propõe, evitando cair numa visão abstracta e seca da fé cristã.

O magistério precisa de repensar o seu exercício a partir do que aprende quando olha para além de si próprio. Convém que se adapte às necessidades da Igreja actual, assegurando sempre o papel que lhe compete. Espera-se que desenvolva uma série de atitudes, que o tornarão mais aceitável sem ficar desvirtuado. Uma consiste em não ir além do necessário no zelo da unidade eclesial. É óbvio que o magistério não deve pactuar com interpretações ruinosas do acontecimento de Jesus Cristo. As doutrinas falsas abrem brechas na comunhão eclesial. Têm de ser corrigidas ou banidas. Mas fora desses casos, o magistério deveria agir com mais circunspecção. Pode haver, às vezes, ideias defendidas pela teologia que suscitem dúvidas e gerem discussão. É possível que, ao mantê-las em aberto por algum tempo, não se ponha necessariamente em causa a comunhão da Igreja na mesma fé. Parece sensato esperar até se ver, com absoluta clareza, que elas se referem a matéria que pertence à obrigatória unanimidade da fé. Talvez fosse conveniente que o magistério, neste tipo de situações, tentasse perceber qual o “mínimo requerido para a comunhão plena” da Igreja.

Outra atitude a desenvolver pelo magistério diz respeito à fundamentação das suas posições na Sagrada Escritura e na Tradição enquanto fontes da fé cristã. Não se exige este alicerce apenas ao sensus fidelium [sentido de fé dos fiéis]e à teologia. O magistério deve a sua autoridade àquela que a Revelação tem por si mesma. Convém que ele mostre, pois, «as cartas de crédito escriturárias e tradicionais do que afirma», perante as outras funções reguladoras da linguagem da fé. Caso contrário, corre o risco de se colocar inconscientemente no lugar da própria Revelação, que o legitima e lhe é superior.

Outra atitude, que o magistério deve adoptar, consiste em dar tempo para que a verdade daquilo que se vive e proclama em Igreja se esclareça. Sabemos que a experiência crente é marcada pela ambiguidade. Esperar com paciência a clarificação do que nela há de autêntico corresponde ao ritmo do próprio Espírito que lavra no seu seio na direcção dos bons frutos. Esta atitude torna-se particularmente necessária no tratamento das questões morais, que tendem a suscitar grande polémica no contexto das nossas sociedades modernas. A vida conduzida à luz da fé cristã encarrega-se de apresentar problemas novos com que a Igreja pode não estar habituada a lidar. Convém permitir o debate e a reflexão, com a participação das vozes da consciência crente que surgem no espaço eclesial. As verdadeiras respostas às questões complexas elaboram-se, em princípio, num período alongado de tempo.

Uma última atitude a implementar pelo magistério deve ser evidentemente a maior cooperação entre o sensus fidelium, a teologia e ele próprio. O mundo de hoje parece trazer complexidade à prática da fé. Os assuntos que a esta dizem respeito precisam de ser tratados com cuidado. Averiguar a consonância ou o desacordo com a revelação de Deus operada em Jesus Cristo afigura-se mais trabalhoso. Noutros tempos, os dilemas no campo da fé podiam equacionar-se habitualmente de forma peremptória. Havia duas alternativas claras: ou a verdade total ou o erro total. Parecia linear a fronteira entre saber e ignorar, acertar e falhar. Ora, muitos problemas inerentes à existência crente nos dias de hoje apresentam diversas faces. Nem sempre se consegue decifrar imediatamente o que neles há ou não de verdade; exige-se investigação. Isso leva tempo e obriga a considerar diferentes ângulos de incidência sobre a matéria em questão. Sendo assim, a busca da verdade tanto da vivência como do discurso da fé requer a contribuição dos diversos sectores eclesiais. Deve estabelecer-se designadamente uma reciprocidade entre a hierarquia da Igreja e os crentes no seu conjunto. Supõe-se, aqui, um movimento que não parte apenas daquela para chegar a estes; tem de funcionar nos dois sentidos.

Uma maior abertura do magistério às indicações do sensus fidelium e da teologia não retira àquele a prerrogativa de última instância na regulação da linguagem da fé. Não se lhe pode pedir que abdique duma parte da sua competência, em nome duma gestão aparentemente mais democrática da vida eclesial. A descaracterização do papel do magistério poderia complicar até o contributo das outras funções para a dita regulação. Seria prejudicial para o conjunto da Igreja. Por isso, não se espera que aqueles que nesta têm a responsabilidade do ensino oficial se limitem a seguir as contribuições do sensus fidelium e da teologia. Mas pede-se-lhes que tenham estas em conta na sua actividade de supervisão da fé. A competência que eles exercem fica enriquecida com isso. Adquirem um maior conhecimento das questões sobre as quais se pronunciam. A voz do magistério ganha em autoridade face ao conjunto dos crentes. Dispõe dum acréscimo de elementos para emitir um juízo sobre o sentido da fé que aqueles revelam. Está em condições de o ratificar ou confrontar com mais pertinência. É certo que a atribuição dum espaço maior de palavra ao sentido da fé interfere no modo como o magistério se pronuncia a respeito dele. Mas essa palavra permanece sempre penúltima em relação ao juízo que este magistério emite.

 

Domingos Terra, s.j.
In O Sentido da Fé, ed. Universidade Católica Editora
19.10.09

Capa

O Sentido da Fé

Autor
Domingos Terra

Editora
Universidade Católica Editora

Ano
2009

Páginas
144

Preço
€ 16,50

ISBN
978-972-54-0237-5

















































































 

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