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Teatro

Breve Sumário da História de Deus: um exercício espiritual

Depois da temporada no Porto, a peça “Breve Sumário da História de Deus”, de Gil Vicente, sobe ao palco do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, de 8 a 31 de Janeiro.

 

1. O auto da História de Deus, em comparação com as restantes obras de Gil Vicente, de acento moral bem perceptível, possui uma vertente marcadamente teológica. É como que teologia simples em forma poética e narrativa, centrada em símbolos, esquemas, figuras e temas nucleares do imaginário cristão. De certo modo, poderia ver-se nele, talvez sem grande exagero, o apuramento do prisma interpretativo, com seus diversos matizes e cores, a cuja luz o autor aborda, com maior ou menor intensidade, na sua produção teatral, o desconcerto do mundo “todo ele falso”, lugar de canseiras e de “muitos cuidados”, “sem firmeza certa”, em que “o bem que é mudável não pode ser bem / mas mal, pois é causa de tanta tristura”.

Nesse sentido ilustra, à sua maneira, o nexo profundo (quase sempre existente, mesmo por omissão, denegação ou náusea) entre a grande literatura – lugar de intersecção, de cruzamento e de convolução de todas as questões – e a visão teológica. No seu caso, porém, tal vínculo é nítido e aproblemático, quase espontâneo, decerto por educação, também por convenção epocal, mas sobretudo por escolha e convicção pessoais.

FotoAnjo (Joana Carvalho)

 

2. Que vibrações e assonâncias teológicas há, então, neste auto vicentino de 1527?

O poeta não se apresenta aqui, claro está, como teólogo, mas no seu ofício de dramaturgo, com uma visão predominantemente moral e crítica do mundo humano que o rodeava, e não só. Embora coevo da Reforma protestante (Martinho Lutero havia já afixado as suas 95 teses na porta da igreja de Wittemberg em 1517), atento ao que se passava na Europa, à transformação da sociedade portuguesa e dos seus costumes, ao exercício do poder nos seus principais representantes, consciente ainda da sedução do dinheiro e do relaxamento do clero a todos os níveis, os ecos dessa revolução espiritual, que abalou e dividiu o Ocidente e rasgou o futuro incerto do Continente, não se sentem aqui e pouco se anunciam também de forma incisiva na obra restante. Apesar de ter assistido ao movimento de transformação cultural e de ter sido marcado por ele, o seu universo, o seu horizonte, as suas preocupações embutem-se ainda na atmosfera de Idade Média tardia, com o seu uso intenso da alegoria, do verso de medida arcaica e de uma linguagem antiquada. Pode, pois, Gil Vicente olhar-se como navegando entre duas águas, como aglutinando duas épocas, radicado ainda numa visão medieval e assaz desperto perante as inovações renascentistas.

FotoLúcifer (António Durães)

Não admira que a temática teológica desdobrada na História de Deus seja de inspiração e de recorte tradicionais. Segue aqui, em linhas abreviadas, o figurino dos Padres da Igreja (S. Ambrósio, S. Agostinho, etc.) e dos teólogos medievais (S. Tomás de Aquino, S. Boaventura e outros) da historia salutis, da “história da salvação”, da interpretação de todo o corpo da Bíblia à luz do desígnio divino de redimir a humanidade.Trata-se nela, essencialmente, do diálogo permanente entre Deus e os homens, em que o actor principal é o Criador, mas actuando sempre, de forma velada, por interpostas pessoas (Anjos, figuras bíblicas de Abraão, Moisés, David, Isaías e outros profetas, e por último João Baptista, Maria e Jesus) e confrontando obstinadamente a sua criatura, quase sempre remissa e avessa às exigências que lhe impõe ou às promessas que lhe oferece.

FotoBelial (Paulo Calatré)

O auto tem muito de “comédia” divina, com o seu evolver peculiar em que, pro temporum diversitate e na varietas signorum – ao ritmo da multiplicidade das épocas e na variedade dos seus sinais ou manifestações, diria S. Agostinho –, o plano da salvação se vai realizando no jogo inextricável, por vezes paradoxal, do convite de Deus e da resposta livre, mas sempre atamancada, dos seres humanos. Por outro lado, o drama humano é real e penetra bem fundo na carne, a situação de Adão e dos seus descendentes é desesperada e sem remédio, “vida… ferida”, “vida mesquinha” e de “prazeres… trabalhados”, domínio do Tempo e da Morte; mas a vitória, pese ao desatino dos homens e à influência nefasta ou às maquinações incessantes das potências invisíveis (Lúcifer e seus colaboradores), é certa, porque dom e graça da misericórdia divina, que não tolera a perda e a ruína total da sua obra e das suas criaturas.

FotoSatanás (Paulo Freixinho)

De ressonância medieval é também em Gil Vicente a piedade terna e entranhada que amiúde manifesta pela figura de Maria e pela realidade humana de Jesus que, em contraste com a figura do Pantocrátor, do Logos glorioso, dominante na espiritualidade do cristianismo grego e oriental, foi redescoberta e venerada sobremaneira pela religiosidade católica dos séculos XII-XVI em S. Bernardo, S. Francisco de Assis e no movimento franciscano, nos místicos renanos, na Imitação de Cristo de Tomás de Kempis e, já em plena época do dramaturgo, nos Exercícios Espirituais de Inácio de Loiola; expressa também de forma intensa na pintura (G. Cimabue, Duccio di Buoninsegna, Giotto, Simone Martini, Fra Angélico, entre outros) e nas esculturas dispersas pelas catedrais góticas; na poesia latina de Adão de S. Victor e de outros vates medievos, em numerosas sequências de canto gregoriano, e assim por diante.

Foto

 

Medieval é igualmente o jeito com que Gil Vicente semeia de intertextualidades, de citações e paráfrases bíblicas os seus versos e o seu discurso, que se desenrola e desembrulha em alusões, imagens e expressões hauridas nos textos sagrados, gerando assim uma música imaginal que intensifica o seu sabor poético e multiplica os seus harmónicos dramáticos, à medida que vai desfraldando as fímbrias do mistério sagrado. O olhar cristão da história possui um irrecusável cunho polifónico. Inscrito na consciência do tempo, nunca se detém ou fixa na superfície dos acontecimentos, embora de todosse aperceba na sua concreção material e a todos reconheça significado e importância, justamente porque no seio de todos eles se agita o fervilhar de decisões derradeiras. Esta polifonia marulha e ressoa similarmente no texto vicentino, onde emergem paralelismos, contrastes, correspondências; por exemplo, o tema da ressurreição de Cristo, que surge no abrir e no final da peça, constitui o arco significante em que, sucessivamente, se incrustam e cravejam os três momentos essenciais da história da salvação: a Lei da Natura, a Lei da Escritura e a Lei da Graça, não como momentos separados, mas entre si intimamente unidos, porque todos eles estão enovelados no dinamismo providencial do desígnio de Deus, apontando para o futuro escatológico da plena redenção. Depois, há as três tentações: a de Eva, a de Job, a de Jesus. A primeira assinala a queda original e o ulterior degredo da humanidade, a segunda ilustra a constância do fiel nas provações e nas trevas da existência, entregue apenas ao anseio do Redentor, e a última desenha a vitória enérgica de Jesus sobre o inimigo dos homens e nas áreas em que estes mais sucumbem: a busca do pão e dos bens materiais, a ânsia de poder e de domínio, o pendor para a exibição e a vaidade.

FotoTempo (João Castro)

E as diversas personagens (Abel, Abraão, Moisés, David, etc.), com suas particularidades, suas missões, suas provas, mas bebendo todas numa esperança que as ultrapassa e que nem sequer, por vezes, entendem, são outras tantas vozes, no meio das luzes e do negrume da história, que adensam e enfeitam o que S. Agostinho chamava de ordo pulcherrimus rerum, pulcherrimum carmen, ordem esplendorosa das coisas e poema belíssimo, feito de contrastes e antíteses, de consonâncias e dissonâncias, de fulgores e sombras.

FotoMorte (Alexandra Gabriel)

 

3. O auto da História de Deus está, decerto, eivado de pensamento teológico, mas anicha-se num horizonte metafísico que serve de enquadramento ao drama espiritual da existência humana. De facto, o esquema triplo de Deus, Homem e Mundo, que já provinha da filosofia grega, mas foi reformulado e sofreu uma maior unificação e condensação através da mensagem bíblica e da teologia cristã, paira sobre a concepção medieval e, consequentemente, sobre o teatro de Gil Vicente.

FotoAdão (João Cardoso)

Desempenha tal esquema funções várias: situa o conjunto e o rolar das idades do mundo e das miríades de existências humanas num marco de inteligibilidade e de esperança, despojando o relógio do tempo, que “não se destempera, é muito certo e muito facundo”, do seu carácter implacável de inevitabilidade e gerador de infindas despedidas e partidas; fornece uma justificação última ao empenhamento moral na construção da justiça em plena violência da história, com a sua perspectiva de recompensa para os misericordiosos e construtores da paz e de condenação para os cultores da opressão e da iniquidade sob todas as formas; oferece um fundamento de legitimação do poder terreno e da ordem social, contemplada e sofrida em termos de hierarquias rígidas, num cosmos também jerárquico e muito restrito, em que o indivíduo se encontra sempre confinado a papéis que lhe são atribuídos pela situação do seu nascimento, amarrado a guildas, a corporações e classes, sem grandes oportunidades de mobilidade social. O sujeito é aqui, decerto, espiritualmente livre, responsável, agente e actor da sua salvação ou da sua perda eterna, mas historicamente está acorrentado às instituições temporais, ao poder político nimbado de sacralidade, à comunidade religiosa, ao âmbito da profissão, ao destino do sexo e do género. Assim se explica, em parte, o carácter predominantemente alegórico das figuras do teatro vicentino (o fidalgo, o onzeneiro, o sapateiro, o frade, o judeu, a alcoviteira, o procurador, etc.), que figuram como categorias sociais, e não como indivíduos concretos, com psicologia própria.

FotoEva (Lígia Roque)

Não é ainda o sujeito tendencialmente autónomo, entregue à conquista das coisas, mas trágico e solitário, dos tempos modernos, com seu carácter monádico e algo solipsista, que amadurecerá lentamente, à medida que a cultura europeia se for fragmentando e criando esferas com regras próprias e de múltiplas vinculações (ciência, arte, política, comércio e indústria, fomento da intimidade e da vida privada, tecnologia, etc.). Não é ainda, pois, o sujeito da modernidade, feito burguês ou pequeno-burguês, religioso ou não quanto baste, que impugnará o sistema aristocrático e tomará uma consciência cada vez maior dos seus direitos numa república de cidadãos, se possível sem classes, trespassado por todo o tipo de ideologias; mas também cada vez mais longe desse mundo hierárquico a que providencialmente fora ordenado “agasalhar a Adão / e todos aqueles que procederão / de sua semente, de qualquer estado”. Pelo contrário, descobre-se postado ou especado perante “os espaços infinitos” de um universo sem limites e sem centro, já não hierárquico, que o enche de angústia ou no qual projecta os seus receios e o seu desnorte, ao mesmo tempo que o horizonte do divino foi definhando e se diluiu numa neblina impenetrável.

FotoAbel (Pedro Frias)

Precisamente o horizonte que se foi desvanecendo ao longo dos últimos quatro séculos, sobretudo no seu termo, e confluiu na nossa era niilista, já sem enquadramento de sentido, tecida dos espelhismos de uma sensibilidade algo aturdida, obcecada e afeita a sensações cada vez mais radicais, tentada a desanimar da liberdade e da responsabilidade próprias e propensa, em pleno clima neopagão, ao acatamento depressivo e bipolar de novas figuras do destino (genes, história psíquica pessoal, condicionamentos sociais e históricos, com a resultante astenia e atonia do sujeito individual).

FotoJob (Miguel Loureiro)

 

4. O ritmo interno da História de Deus, nos seus veios teológicos, não é propriamente o de uma acção dramática, tensa, conflituosa, palco de paixões, confronto de universos pessoais em colisão; é antes um retábulo de vários compartimentos e de textura verbal, ornado de metáforas, de símbolos e alusões, de figuras que, nos meandros e na ondulação misteriosa do projecto divino, se correspondem e mutuamente se iluminam.

Expande-se em três andamentos, de extensão não muito desigual – a Lei da Natura, a Lei da Escritura e a Lei da Graça –, que surgem entrançados mediante a promessa da redenção, cujo clímax e desfecho se centra na ressurreição de Cristo.

FotoAbraão (Jorge Mota)

O primeiro, a Lei da Natura, delineia o lugar das origens do homem, da sua culpa e do seu consequente desterro terrestre, da sua alegria frágil, dos seus “cuidados feridos”, do seu trabalho e da sua “fruta amargosa”, do tempus edax rerum, do tempo que tudo devora, segundo o pagão Ovídio – mas que na visão cristã de Gil Vicente está repassado de esperança, é instrumento de maturação e de aprofundamento da vida, e não pura transiência caótica e sem remédio.

Também, decerto, lugar da morte, “triste paridura” de Eva, e que para Adão é “a nossa / parteira da terra herdeira das vidas, / senhora dos vermes, guia das partidas, / rainha dos prantos, a nunca ouciosa / adela das dores, / a emboladeira dos grandes senhores, / cruel regateira que a todos enlea”.

FotoMoisés (Alberto Magassela)

Mas o mundo, de início, pomar e jardim de inocência logo perdida, depois, devido à revolta voluntária e ao “desprezo contra a majestade” divina, feito terra de exílio, de lágrimas, de saudade do paraíso, de “ventura sem sorte”, em que o mal é certo e o bem duvidoso, nem por isso deixa, por providência celeste, de ser lugar de aconchego e de agasalho. E pode até, pese ao trabalho, aos muitos cuidados, à doença e à fadiga, ser cantado na sua beleza, na imensa república dos seus seres, como acontece no vilancete de Abel, que parafraseia o Salmo 148 e sugere ainda o ideal pastoril e da vida sossegada (tema também insistente noutro quase contemporâneo do dramaturgo, Fray Luís de León).

A Lei da Natura é igualmente o tempo da paciência, da tenacidade na fé, como vemos em Job. Soube ele, com porfia, permanecer fiel na riqueza e na pobreza, na saúde e na lepra que o atirou para o monturo, resistir à teologia demasiado fácil dos amigos, ao pesar de ter nascido. Pressentiu, apesar do revolver do vento que era a sua vida, da aparente hostilidade de Deus que faz de esquecido e não respondeu às suas questões, que o seu Redentor vive, não obstante a omnipresente prolixitas mortis, a superabundância da morte, na expressão de S. Gregório Magno.

FotoDavid (José Eduardo Silva)

O segundo andamento é a Lei da Escritura, tempo da espera, da expansão da promessa. Abraão, Moisés, David e Isaías avultam como os seus principais representantes.

Significa um, após a visitação de que foi objecto por parte do Deus oculto, do Deus que fez rir Sara e que insinua a Trindade segundo um enunciado interpretativo clássico, o abandono dos ídolos da gentilidade, dos deuses que, desde sempre, nos vamos construindo com os nossos produtos culturais; e, por isso, surdos, cegos, artríticos e toscos, além de impotentes. Era o início de um caminho difícil sem fim à vista, sem meta clara, pela noite dentro, ao passo que, por contraste, o herói grego Ulisses sentia saudades e rumava para a sua Ítaca bem concreta e para os braços da sua amada Penélope.

Indica o segundo, Moisés, na Torah, o desvendar dos segredos da criação, da obra do artífice divino que estrutura e anima o mundo e inspira a lei e que, nos múltiplos sacrifícios do culto hebraico, prenuncia um outro sacrifício definitivo e um novo Génesis.

FotoIsaías (Mário Santos)

David, em terceiro lugar, homem de coragem e também de pecado, descobre, por seu turno, o sacrifício que mais agrada a Deus: não os ritos materiais, a que por vezes magicamente nos entregamos, mas o coração contrito e o espírito humilhado, que reconhece a sua culpa e a sua injustiça.

Por fim, Isaías, o vate da alegria messiânica, da paz ecológica universal, pressagia o Messias, “o duque maior”, nascido da “virgem prenhada”, homem de dores, que pela obediência e pela coerência absoluta da sua vida compensará a falta original.

Como todos até aqui, também estas figuras serão vencidas pela morte e irão para o limbo, para a estância obscura, de vida vaga e inerte, mas levam consigo a semente da esperança, que os susteria, ao contrário da melancolia ilimitada do Hades na imaginação dos Gregos.

FotoJoão Baptista (João Pedro Vaz)

Acerca-se assim o terceiro andamento, a Lei da Graça, iniciada por João Baptista com seu apelo à penitência, sua denúncia profética da opressão e dos atropelos feitos aos mais fracos; ser uma pura voz que proclama a presença da redenção, por ele já vislumbrada, mas a que outros permanecem cegos, tal é o seu destino, selado com o próprio sangue.

O poeta, depois de evocar a morte do profeta do deserto, apresenta então, na prisão do limbo, o romance cantado pelos que lá estão presos: invocam Maria, rememoram a anunciação do anjo, a promessa e o júbilo nela contidos, mas também o drama da cruz.

E, com este breve traço, se prepara o momento final, a irrupção de Jesus na história humana. Diante dele, Senhor nas vestes de servo, ajoelham-se rendidos o Tempo, a Morte e o Mundo. E diz este: “Oh eternal criador / oh temporal criatura / que encubres com terra escura / o divino resplandor / e imensa fermosura”.

FotoCristo (Daniel Pinto)

E a atenção desloca-se, em seguida, para as tentações no deserto. Esta cena é a perfeita antítese da tentação de Adão e Eva. Aqui, o homem foi tentado a ser Deus de si mesmo, a dispor arbitrariamente de tudo, sobretudo do conhecimento; Jesus, pelo contrário, vence as tentações que assediam a vida profunda dos homens – a busca do poder sob todas as formas, a demanda obsessiva do pão e das sensações, o frenesi da ostentação – e morre devido à coerência total com que encarou a sua missão. Revela assim, na sua vida, nos seus gestos e nas suas palavras, enquanto manifestação e “Cara do Pai” (Fray Luís de León), a feição genuína do Deus bíblico: a sua humildade infinita; ou, de certo modo, a sua loucura divina, de que a fé cristã, como lembra S. Paulo, é eco e repercussão, e que Tomás de Aquino exprime nesta fórmula magnífica: Deus dilexit hominem tanquam si homo esset Deus Dei, Deus amou o homem, como se este fosse o Deus de Deus.

A imagem de Cristo ressuscitado, e que desce ao limbo para libertar os que lá estavam cativos, encerra a peça vicentina. Expressa ela, para o poeta, a última palavra do Deus humilde e fonte de vida, a vitória sobre a morte, o início de uma nova criação, de um novo Génesis, da integração da humanidade na luz da glória.

Foto

Nada aqui transparece do motivo literário da inveja divina, típico da religião grega; ou então, se aparece, é na figura de Lúcifer e dos seus apaniguados, Satanás e Belial, cujo humor chocarreiro e impiedoso, mentira hábil, verbo sedutor e calculista, tentando a todos subverter com cinismo e sem contemplações, se revela estéril e acaba apenas por alimentar ainda mais o verme interno do ciúme espiritual que os devora, da invídia que sentem perante o magnificente destino que o Criador preparou para os seres humanos.

A ponta do humor cristão é outra: é um riso pascal ao pé da cruz, por vezes no meio das lágrimas que, segundo a visão do Apocalipse, hão-de ser enxugadas; nasce do evento do amor que salva e que é pura dádiva, da inversão radical daqueles valores que, no fundo, geram a tragédia da história e que, sem ajuda externa, não conseguimos superar. Não é um sorriso para dentro, na dissolução de si, na total imersão no Nirvana; é antes o sorriso do Anjo da catedral de Reims em face do espectáculo da redenção, que tudo e a todos envolve, e que de todos, por graça, mas na liberdade, faz actores na vibratilidade infinda da vida divina.

Foto

O efeito consequente é o que S. Agostinho chama de Jubilus, a música que jorra no coração para além das palavras, abandonada a si própria, inventando-se sem fim, improvisação incessante no Espírito que a todos une e congrega. Na obra vicentina sente-se, amiúde, a asa desta aura sonora.

E, porventura, fica-se assim a saber porque é que os medievais inventaram a música ocidental. No seu brotar histórico, ela nasce da alegria da fé.

O riso incrédulo de Sara perante a promessa absurda de Deus transmutou-se, assim, em riso de confiança, de entrega, de abraço de toda a criação. E pode ouvir-se igualmente o rumor de “un riso de l'universo” (Dante, La Divina Commedia).

 

Artur Morão
07.01.10

Breve Sumário da História de Deus

 

 

 

 

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