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Advento

Maran atha

Eu sou senhor aquele que sente
frios ainda os pés nas estações
com que nos chega o tempo sucessivamente
Nada me fica na alma nem a tarde de praia
quando o vento tinha
uma linguagem nas barracas
Não há coração em mim para a folha que morre
e ando a matar uma por uma até
alegrias simples como a certas horas
reparar que temos um corpo
determinamos uma sombra
e ocupamos um espaço que nos leva
a estar aqui agora nesta rua
e não noutra parte

Homem levantado e caído
setenta vezes sete vezes por dia
que morte me quer para além
de deixar cair os braços?

Eu que te vi e revi descer solene
como um raio sobre o meu destino
que te dei um lugar mais definitivo
em minha boca do que a folha de outono
teve na calçada
quando de vez vieres que será de mim?
E tenho a ousadia de morder-te
à superfície do dia. Tu bem sabes
que catedral de esperança te reservo
Talvez já amanhã nos não saudemos sob as árvores
e venhas sobre as nuvens
sobre o coração sobre a morte sobre mim

Ruy Belo

 

 

Jesus de Nazaré
palavra sem fim
em teu nome pequeno,
carícia infinita
em tua mão de operário,
perdão do Pai
em ruas sem liturgia,
todo poderoso Senhor
em sandálias sem terras,
cume da história
crescendo dia a dia,
irmão sem fronteiras
em uma reduzida geografia.
Não és uma maiúscula
que não cabe na boca
dos mais pequenos,
mas sim pão feito migalhas
entre os dedos do Pai
para todos os simples.
Tu continuas sendo
a água da vida,
uma fonte inesgotável
na mochila rasgada
do que busca seu futuro,
um lago azul
na cavidade insone
do travesseiro,
e um mar tão imenso
que somente cabe
dentro de um coração
sem portas nem janelas.
Em ti tudo está dito,
ainda que somente sorvo a sorvo
vamos libando teu mistério.
Em ti estamos todos,
ainda que somente nome a nome
vamos sendo corpo teu.
Em ti tudo ressuscitou
ainda que somente morte a morte
vamos acolhendo teu futuro
e em cada um de nós
continuas hoje crescendo
até que todo nome,
raça, argila, credo,
culmine tua estatura.

Benjamin González Buelta

 

 

Os três reis do Oriente

Gaspar

Naquele tempo, na cidade de Kalash, o príncipe Zukarta instaurou o culto do bezerro de oiro.

A estátua poisava nas multidões submissas os seus olhos espantados, muito abertos, pintados de branco e de preto. No fundo das suas pupilas aflorava quase uma interrogação, como se a extensão do seu poder o surpreendesse. Era um jovem bezerro de pequenos cornos torcidos e pernas musculosas, de testa obtusa, curta e franzida. As suas quatro patas, firmemente poisadas na terra, davam uma grande impressão de firmeza e estabilidade que tranquilizava o coração dos seus fiéis. E em todo o seu corpo brilhava o oiro, oiro compacto, duro, pesado, faiscante.

Em frente do ídolo as mulheres curvadas sacudiam sobre o mármore claro dos degraus os sombrios cabelos quase azuis. Dos confins do deserto, dos longínquos oásis, das aldeias perdidas, chegavam homens que depunham em frente do altar a sua oferta: vinham oferecer oiro ao oiro. E os homens bons de Kalash, juízes e chefes guerreiros, desfilavam reverentes em frente do bezerro. Atrás deles vinham os comerciantes, os vendedores, os oleiros, os tecelões. Beijavam os degraus do altar e depunham no chão a sua oferta: traziam oiro ao oiro. Até os sacerdotes da Lua e os seus fiéis e acólitos se prostravam, de joelhos, com a cabeça tocando o solo, em frente do ídolo novo de Kalash.

Zukarta olhava todas estas coisas com grande alegria, pois o culto do oiro era o fundamento do seu poder.

Raros eram aqueles que não acorriam ao templo, cada vez mais raros. Os muito pobres, os muito envergonhados, os muito humilhados, não ousavam apresentar-se. Eles eram como uma raça à parte, pois a pobreza era olhada como o estigma que marcava aqueles que o Bezerro não amava. No fundo das suas almas tão humilhadas que mal ousavam pensar o seu próprio pensamento, os muito pobres, os muito envergonhados esperavam outro deus.

Eles e Gaspar.

Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de Gaspar. E disseram:

— Porque não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ralé das docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza de Kalash. Estarás vendido aos nossos inimigos?

Gaspar respondeu:

— Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam.

Ouvindo esta resposta, os chefes das tribos e os homens bons de Kalash disseram:

— Separamo-nos de ti porque te separaste de nós e renegaste os nossos caminhos. Não terás mais parte nas nossas assembleias. Nem serás mais ouvido nos nossos conselhos, nem partilharás dos nossos festejos e banquetes. E também não terás lugar na nossa força. Os soldados não protegerão a tua casa nem as tuas caravanas. E serás presa fácil dos bandidos. Não receberás a protecção das nossas leis, e os nossos juízes julgarão em sentença contra ti, e a tua razão será como um punhado de cinza. Como a gente da ralé, não terás nem protecção nem defesa enquanto não te curvares perante o altar do Bezerro para adorar os ídolos que nós adoramos.

E Gaspar respondeu:

— O meu deus é em mim como uma fonte que não pára de correr e é em meu redor como o muro de uma fortaleza.

Então os notáveis de Kalash sacudiram a poeira dos seus sapatos e saíram do palácio.

Depois desse dia, muitas calamidades se abateram sobre Gaspar. Os bandidos assaltaram as suas caravanas e os ladrões saquearam os seus palmares. Mãos misteriosas apedrejavam de noite a sua casa e na água das suas cisternas apareciam frutos podres e aves mortas a boiar.

E começou o tempo da solidão.

Nos frescos pátios do palácio não penetraram mais os visitantes e a água correndo nos tanques deixou de acompanhar o leve rumor das conversas. Os parentes e os amigos desapareceram como que devorados pela penumbra e todas as coisas pareciam envolvidas em escândalo e terror.

Porém o tempo crescia.

E Gaspar escutava o crescer do tempo. A solidão criava em seu redor um transparente espaço de limpidez onde os instantes avançavam um por um e o universo inteiro parecia atento. O silêncio era como a mesma palavra inumeravelmente repetida.

E debruçado sobre o tempo, Gaspar pensava: «O que pode crescer dentro do tempo senão a justiça?»

Ajoelhado no terraço, Gaspar olhava o céu da noite. Olhava a alta e vasta abóbada nocturna, escura e luminosa, que simultaneamente mostrava e escondia.

E disse:

— Senhor, como estás longe e oculto e presente! Oiço apenas o ressoar do teu silêncio que avança para mini e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua ausência. Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita difícil. Mas és tu que me lês e me conheces. Faz que nada do meu ser se esconda. Chama à tua claridade a totalidade do meu ser, para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde sempre me dizes.

Primeiro pareceu a Gaspar que a estrela era uma palavra, uma palavra de repente dita na muda atenção do céu.

Mas depois o seu olhar habituou-se ao novo brilho e ele viu que era uma estrela, uma nova estrela, semelhante às outras, mas um pouco mais próxima e mais clara e que, muito devagar, deslizava para o Ocidente.

E foi para seguir essa estrela que Gaspar abandonou o seu palácio.

 

Melchior

A placa de barro tinha passado de geração em geração, de idade em idade, de mão em mão. Nela estava escrito que ao mundo seria enviado um redentor e que uma estrela se ergueria no Oriente para guiar aqueles que buscavam o seu reino.

A placa era um pequeno rectângulo de argila, enegrecido pelo tempo, de aspecto frágil, pobre e gasto. Era um prodígio que tivesse atravessado, sem se perder, tantos séculos de ruínas e opulências, saques, incêndios e guerras. Era um prodígio que tivesse podido atravessar, sem se perder, a ambição, a violência, a agitação e a indiferença dos homens.

Estava ali, no palácio, alinhada ao lado de milhares de placas que enumeravam vitórias, batalhas, massacres e riquezas.

Os seus caracteres estavam semi-apagados pelo tempo e a sua escrita era tão antiga que se tornava difícil decifrá-la com exacto rigor. Muitas leituras eram possíveis.

Por isso o rei Melchior convocou três assembleias de sábios para que juntos averiguassem qual era a justa interpretação daquele texto antiquíssimo.

Primeiro vieram os historiadores, aqueles que tinham aprendido toda a ciência das bibliotecas e que conheciam até ao menor detalhe a escrita, a linguagem, os usos, os costumes, os anais e os códigos dos tempos idos.

A assembleia reuniu-se durante um mês no palácio do rei. Era o meio do Verão e o calor poisava pesadamente sobre os terraços cegos de sol. Nos jardins as palmeiras roçavam umas nas outras, com um rumor metálico, as suas folhas afiadas e duras como serras.

Ao cair das tardes os sábios sentavam-se em círculo no pátio interior do palácio. Melchior presidia. Um fino murmúrio de água correndo nos tanques acompanhava os debates. Os escravos descalços circulavam em silêncio servindo vinho de tâmara temperado com neve das montanhas.

O círculo de homens sentados descrevia uma área vazia e no centro dessa área tinha sido colocada uma mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa de barro. Parecia extremamente pequena e insignificante, no meio de tanto espaço e opulência, parecia um detrito das eras antigas que ali tinha sido abandonado pelo tempo.

Durante longos debates, durante trinta dias, os sábios estudaram e examinaram meticulosamente cada linha dos caracteres antiquíssimos.

E ao trigésimo dia ergueu-se Negurat, arquivista-mor do templo da Lua, e disse:

— Creio que a leitura que tu, ó rei, fizeste deste texto não é a verdadeira. Pois leste: «Ao mundo será enviado um redentor, e uma estrela subirá no Oriente para guiar aqueles que buscam o seu reino.» Mas verdadeiramente é outra a significação deste texto antigo: assim, os caracteres onde leste «redentor» significavam, na remota era em que foi gravada esta placa, não «redentor» mas sim «grande rei»; e os caracteres onde leste «será» e «subirá» não exprimem formas verbais do futuro mas sim formas verbais do passado; e o verbo buscar não está no presente mas sim no pretérito perfeito; e onde leste «para guiar» deverá ser lido, de acordo com os métodos de decifração dos textos antigos, «guiando». Portanto, ó rei, ao contrário daquilo que julgaste ler, este texto não se refere ao futuro mas sim ao passado, e não anuncia o advento de nenhum salvador, mas antes glorifica as obras de um grande personagem dos tempos idos. Assim a leitura correcta deste texto é, em minha opinião, a seguinte: «Ao mundo foi enviado um grande rei que como uma estrela dominou o Oriente guiando aqueles que buscaram o seu reino.»

Quando Negurat acabou de falar, levantou-se Atmad, arquivista-mor do palácio, e disse:

— Grande é a ciência de Negurat. Mas a interpretação da escrita antiga tem terríveis dificuldades. Não há dúvida que no texto apresentado devemos ler «grande rei» e não «redentor». No entanto, não concordo com aquilo que diz respeito às formas verbais: creio que o verbo ser e o verbo subir se encontram realmente no futuro. E também discordo da forma como foram lidas as palavras «guiar», «buscam» e «reino». E penso ainda que o verbo «subir» tem aqui o sentido de «dominar». De forma que, na minha opinião, a leitura correcta do texto é esta: «Ao mundo será enviado um grande rei que como uma estrela dominará o Oriente para engrandecer aqueles povos que aceitarem o seu poder.» Pois esta inscrição é de facto uma profecia, mas uma profecia que já foi cumprida. É evidente que o grande rei é o grande Alexandre que dominou todo o Oriente até ao reino de Pórus e que morreu, como sabeis, em Babilónia.

E quando Atmad acabou de falar, levantou-se o velho sábio Akki, que disse:

— Admirei as sapientes palavras que ouvi. Mas na verdade a leitura deste antiquíssimo texto levanta tantas dúvidas e são tantas as interpretações que podemos propor, que verdadeiramente, ó rei, nada podemos concluir. Então levantou-se Melchior e disse:

— Ide em paz e continuai os vossos estudos. Eu continuarei a perguntar, a escutar e a esperar.

E no mês seguinte reuniu-se no palácio real a assembleia dos letrados.

Melchior propôs-lhes as dúvidas e as interpretações dos historiadores e durante trinta dias os letrados estudaram o texto.

E no trigésimo dia, ao cair da tarde, estando todos sentados em círculo e estando no meio do círculo a mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa de barro, levantou-se Ken-Hur e disse:

— A poesia não se exprime directamente. Ora o texto que temos em nossa frente é um poema e por isso mesmo deve ser tomado como um metáfora que não se refere nem ao passado nem ao presente nem ao futuro do mundo em que vivemos, mas só ao mundo interior do poeta, que é o mundo da poesia sempre voltado para o devir e para a esperança. Este texto não fala de factos reais e apenas simboliza o espírito criador do homem.

Falou em seguida Amer, que disse:

— Este texto é um poema e coloca-se por isso à margem do vivido. O poema não se refere àquilo que é, mas sim àquilo que não é. Pois a natureza é uma caixa cheia de coisas da qual o poeta extrai uma coisa que lá não está.

E levantou-se depois o irmão de Amer, que disse:

— Num poema não devemos buscar sentido, pois o poema é ele próprio o seu próprio sentido. Assim o sentido de uma rosa é apenas essa própria rosa. Um poema é um justo acordo de palavras, um equilíbrio de sílabas, um peso denso, o esplendor da linguagem, um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si próprio e, como um círculo, define o seu próprio espaço e nele nenhuma coisa mais pode habitar. O poema não significa, o poema cria.

E tendo terminado o debate, levantou-se Melchior, que disse:

— Eu vos agradeço as vossas palavras. Por mim continuarei a buscar, a escutar e a esperar.

Então retiraram-se os letrados e o rei ficou sozinho no pátio, em frente da placa de barro, escutando o correr da água e o cair da noite.

E no mês seguinte reuniram-se no palácio os homens sapientes. Melchior propôs-lhes as dúvidas dos historiadores e dos letrados e a nova assembleia deliberou durante trinta dias.

E no trigésimo dia levantou-se Kish, que disse:

— As multidões ignorantes curvam-se em frente dos ídolos, mas aqueles que meditam conhecem a solidão do universo. Que redentor poderemos esperar? O universo é como uma máquina bem regulada que sem princípio nem fim gira lentamente através das idades e dos ciclos. Nas constelações e nas luas, nos triângulos e nos círculos, encontrarás as leis dos números que se cumprem e se cumprirão inexoravelmente. Que redenção poderemos esperar?

E falou depois Maro, que disse:

— Os deuses que existiram extinguiram-se há muito, e aquilo que adoramos é apenas a cinza do divino. Qual é, na idade em que vivemos, o homem que viu um anjo? Onde está aquele que ouviu, com os seus ouvidos de carne, a palavra de Ísis ou de Assur? Vivemos um tempo de viuvez e todas as coisas se tornaram cegas e surdas. Num mundo de injustiça e de desordem tentamos sobreviver como animais perseguidos. Quebrou-se o laço que nos ligava ao universo atento. Podemos bater com os punhos na terra, podemos implorar com a cabeça tocando a poeira. Ninguém responderá. Cegou o olhar que nos via e o ouvido que nos escutava secou. Tudo nos é alheio como um lugar que não nos reconhece. E o brilho dos astros impassíveis cintila sobre a nossa tristeza. Quem pode esperar que uma estrela se mova?

Falou em seguida Tot, e disse:

— Nascemos para morrer. Toda a nossa esperança se resolverá em cinza. Onde está o homem que não morreu? O próprio Alexandre, filho de Ámon, que estabeleceu o seu Império desde o Egipto até ao reino de Pórus, morreu miseravelmente nos palácios da Babilónia. E no entanto a sua radiosa juventude parecia mostrar a natureza de um Deus, e era tão grande a sua perfeição que ninguém podia julgá-la mortal. Quem poderia acreditar que morresse o seu corpo equilibrado e liso como uma coluna, a sua inteligência aguda e limpa como o sol, o seu olhar direito que simplificava todas as coisas, o seu rosto brilhante como um estandarte e a sua alegria invencível? Alexandre, príncipe da Macedónia, filho de Ámon, maravilhamento dos povos, conduziu o destino do homem a seus últimos limites, de tal forma que nele todos julgaram que a natureza humana tinha conquistado o divino. Mas Alexandre morreu no trigésimo terceiro ano da sua vida, no cimo da sua força e da sua glória, em pleno esplendor da sua juventude. E assim os deuses nos disseram que o homem não pode ultrapassar o seu destino, e que o seu destino é um destino para a morte. Por isso, ó rei, que poderemos esperar? Nada pode modificar a condição do homem e nesta condição não há lugar para a esperança.

Quando os pensadores se retiraram, Melchior levantou-se do trono e avançou até à mesa de pedra. Entre as grandes colunas que rodeavam o pátio, a placa de argila parecia extraordinariamente frágil e pequena. Mas o rei tocou com a sua fronte as letras quase apagadas.
Nessa noite, depois da Lua ter desaparecido atrás das montanhas, Melchior subiu ao terraço e viu que havia no céu, a Oriente, uma nova estrela.

A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas e confusas escadas. Na grande avenida dos templos já ninguém caminhava. Só de longe em longe se ouvia, vindo das muralhas, o grito de ronda dos soldados.

E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labirinto espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria.

E Melchior deixou o seu palácio nessa noite.

 

Baltasar

O rei Baltasar amava a frescura dos jardins e sorria ao ver na água clara dos tanques o reflexo da sua cara cor de ébano.

E amava a alegria, o rumor e a abundância dos banquetes, e muitas vezes as suas festas duravam até ao romper do dia.

Porém, certa madrugada, depois de se terem retirado todos os convivas, o rei ficou na grande sala, sozinho com um jovem escravo que tocava flauta.

E pareceu-lhe que a melodia desenhava no ar o contorno de um espaço vazio.

Então o seu coração ficou pesado de tristeza, e Baltasar pensou: «Será possível que um dia eu me retire da vida como um conviva saciado que se retira de um banquete? Ou terei sempre a mesma sede, a mesma fome, o mesmo desejo dos momentos e dos dias?»

E tendo pensado isto atravessou a porta da sala e saiu para o jardim.

Cá fora, na luz indecisa da antemanhã, o jardim parecia suspenso. A bruma confundia o desenho claro dos tanques e diluía no ar o contorno das ramagens.

Baltasar caminhou longamente entre flores e palmeiras até romper o Sol. E quando já era dia chegou a um pequeno terraço que ficava no extremo do jardim. Debruçou-se no parapeito e viu, do outro lado da rua estreita, um homem jovem, encostado a uma parede, que o olhava.

Baltasar ficou imóvel, como se o rosto do outro lhe tivesse batido na cara. Ou como se o rosto do outro de repente fosse o seu rosto. Ou como se pela primeira vez na sua vida tivesse visto a cara de outro homem.

O que naquele rosto mais o surpreendia era a nudez, a evidência nua. Era como se naquele rosto o cerimonial da vida tivesse retirado a sua máscara e a realidade mostrasse, sem nenhum véu, o abandono, a dor consciente, a condição do homem.

Era um rosto de homem jovem e magro onde os ossos desenhavam, sem nenhum equívoco, o ideograma da fome. A tristeza subia da mais profunda morada da memória e aflorava inteira à tona das pupilas. A paciência, como uma leve cinza, poisava na testa, sobre os beiços, sobre os ombros. E havia nessa paciência uma doçura tal que Baltasar sentiu de súbito uma vontade aguda de chorar e de se prostrar com a sua própria cara encostada à terra.

E perguntou:

— Tu, quem és?

— Tenho fome — murmurou o homem.

— Entra — disse Baltasar. — Vou mandar que te sirvam os melhores frutos, as melhores carnes, os melhores vinhos. Vou mandar que lavem os teus pés com água perfumada numa bacia de ouro. Vou mandar que te vistam de púrpura. Vou mandar aos meus músicos que toquem para te aprazer as mais belas melodias. Vou mandar vir para ti a tocadora de cítara. Eu próprio colocarei debaixo dos teus pés o tapete mais precioso, e ficarei sentado ao teu lado para desfazer a tua solidão, e escutarei as tuas palavras para que possas tomar parte na alegria e para que as fontes e os jardins do palácio apaguem a tua tristeza.

Porém o homem, ouvindo estas palavras, assustou-se. No rosto negro, debruçado na luz branca do terraço, reconheceu com terror o rosto do rei. E pensou:

«Ai de mim! Para que me chama o rei? Vim espreitar o seu palácio e isto sem dúvida é um crime. É melhor que eu fuja antes que os guardas cheguem.»

Pois aquele homem, como todos os muito pobres, sabia que o mundo era governado por leis que o perseguiam e condenavam, e por isso temia a cada instante ser acusado e preso por uma razão desconhecida. Caminhava num país que não era o seu e onde tudo era para ele insegurança e temor.

E por isso fugiu, sumiu-se ofegante entre as curvas da ruela estreita, sem ver o gesto de Baltasar que o chamava.

E no palácio o rei disse aos seus guardas:

— Ide e procurai nas ruas um homem jovem magro, vestido de farrapos e que tem os olhos cheios de tristeza e de paciência.

Porém, ao cair da tarde, os guardas voltaram e disseram:

— Encontrámos tantos homens esfarrapados, tristes e pacientes que não soubemos distinguir aquele que tu procuras.

Por isso, na manhã seguinte, o rei Baltasar, tendo despido os seus vestidos de púrpura, envolveu-se num manto de estamenha e saiu sozinho do palácio para procurar o homem.

Desceu pelas ruelas estreitas da encosta, e, longe das grandes avenidas triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das palmeiras, percorreu longamente os bairros pobres da beira do rio. Os carregadores do cais ergueram para ele a face sombria, e o homem que vendia os sapatos de corda poisou no olhar do rei o seu olhar cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que puxavam carroças como bois, lentos e pacientes como bois, viu os que usavam grilhetas nos pés, viu os que deslizavam rente às paredes, silenciosos como sombras, viu os que gritavam, os que choravam, os que gemiam. Viu os que estavam sós, imóveis, encostados aos muros, atónitos, interrogando, para além da voz rouca das ruas, o silêncio opaco, fitando em sua frente a estrada recta do silêncio. Viu os que pescavam pequenos peixes nas águas sujas do rio. Viu os que tinham a cara cor de trapo e as mãos feitas de cinza, cinza leve que voava com o vento. Viu a sombra verde, o reino da paciência, o país da desolação sem margens, o império dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a Pátria deserdada, o fundo do mar da cidade.

E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse-lhes:

— Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as reservas acumuladas nos armazéns e nos celeiros. E reparti tudo entre os esfomeados e os pedintes.

Tendo ouvido isto, os ministros retiraram-se para deliberar.

E voltaram passados três dias, e responderam:

— Os teus tesoiros não chegam para resgatar os escravos, e as reservas dos teus armazéns não chegam para saciar os esfomeados. Nem o teu poder chega para alterar a ordem da cidade. Se cumpríssemos aquilo que mandaste, os fundamentos que nos sustentam e os muros que nos protegem ruiriam. O teu desejo é contrário ao bem do reino.

E o rei lhes respondeu:

— Procuro outra lei e procuro outro reino.

Então os ministros retiraram-se, murmurando entre si:

— Vemos que ele nos trai.

Na manhã seguinte, dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os deuses.

E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar:

Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força e o domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses.

Seguiu o rei para o segundo altar e leu:

Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses.

Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu:

Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo o espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram. E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os sacerdotes:

— Dizei-me onde está o altar do deus que protege os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore.

Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam:

— Desse deus nada sabemos.

Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse:

— Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?

A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.

E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira.

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

 

Maria, a Mãe por excelência,
ajuda-nos a compreender as palavras-chave do nascimento do seu Filho divino:
humildade, silêncio, enlevo e alegria.
Ela exorta-nos, sobretudo, à humildade,
para que Deus possa encontrar espaço no nosso coração,
não ofuscado pelo orgulho nem pela soberba.
Ela indica-nos o valor do silêncio,
que sabe escutar o canto dos Anjos e o vagido do Menino,
sem os sufocar no alarido e na confusão.
Juntamente com Ela,
deter-nos-emos diante do presépio com íntimo enlevo,
saboreando a alegria simples e pura
que aquele Menino traz para a humanidade.

João Paulo II

 

 

Rezar à luz da estrela do Advento

Visite-nos Senhor tua alegria.
Seja ela o dom que sustém esta hora da nossa vida.
Tenha o poder de reedificar o caído,
de aclarar a tenda que a noite atribulou,
de unir aquilo que a tristeza ou o cansaço interromperam.
Seja ela o sinal da leveza com que nos vês,
a carícia que nos estendes no tempo,
o assobio que inaugura as tréguas.
Dá-nos Senhor, neste tempo,
a alegria como alento revitalizador.
Inscreva ela em nós o sabor
da vida abundante e multiplicada;
perfume cada um dos nossos gestos;
traga às nossas palavras a luz das estrelas
que emprestam à noite uma inesquecível doçura.

Estrela

Texto: José Tolentino Mendonça
Imagem: Rui Aleixo

 

 

O nosso mundo debate-se hoje com graves problemas de vida e sobrevivência.
Difícil é a subsistência básica de muitos e de famílias inteiras;
difícil é a vida laboral, indispensável ao sustento e à realização de cada um;
perigosa é também a disposição corrente para ganhos rápidos e satisfações fugazes.
Assim era há dois mil anos, como antes e depois:
“comiam e bebiam, compravam, vendiam…”, sem realmente dar por nada.
Mas nós demos por quanto sucedeu no Coração de Deus e no Coração de Maria.
Reconhecemos em Cristo a resposta de Deus e com Maria dizemos: “Sim!”.
Sim à esperança possível e activa, até para reconstruir a sociedade no âmago das suas motivações e práticas.
Sim à caridade aplicada, para que não falte a ninguém o sustento e o ânimo para viver e conviver.
Sim à autêntica beleza e ao contentamento perdurável,
que só se alimentam com a verdade de Deus e da humanidade segundo Deus,
respeitando a sua presença e prioridade absoluta.

D. Manuel Clemente
8.12.2009

 

 

Rezar com José em tempo de Advento

"E não nos deixeis cair em tentação".
Rezo devagar estas palavras, fazendo-as minhas.
Não me deixes, Senhor.
Não me deixes quando as paredes do tempo se tornam instáveis, e as palavras de hoje têm a dureza do pão amassado de ontem.
Não me deixes quando recuo porque é difícil,
quando quase me inclino perante a idolatria do que é cómodo e vulgar.
Não me deixes atravessar sozinho os baços corredores da incerteza,
ou perder-me no sentimento do cansaço e da desilusão.
Não me deixes tombar na maledicência e no descrédito quanto à vida.
Que a Tua mão levante à altura da luz a minha esperança! Que o Teu nascimento inspire os meus renascimentos.
Que a Tua presença, me ensine o que é tornar-se presente. Que o dom que fazes de Ti, me ajude a fazer da vida oferenda de amor.

São José

Texto: José Tolentino Mendonça
Imagem: Rui Aleixo

 

 

Nem medo nem recusa perturbaram
A graça que em Ti cumpre a sua obra:
Ofereceste a Deus aquele silêncio,
Onde habita a Palavra.

Em Ti desponta a aurora da justiça,
O mistério do reino que há-de vir;
A sombra do Espírito que desce
Teu coração preserva.

Por Ti, Maria, Mãe imaculada,
Ao Céu se eleve o nosso humilde canto:
Louvor e glória a Deus três vezes santo,
Por toda a eternidade.

Liturgia das Horas

 

This text will be replaced

O Evangelho segundo Mateus
Pier Paolo Pasolini (1964)

 

 

No Advento a liturgia repete-nos com frequência e garante-nos, quase que a vencer a nossa natural desconfiança, que Deus "vem": vem para estar connosco, em qualquer situação; vem para habitar no meio de nós, para viver connosco e em nós; vem preencher as distâncias que nos dividem e nos separam; vem para nos reconciliar com Ele e entre nós.

Vem à história da humanidade, bater à porta de cada homem e mulher de boa vontade, para dar aos indivíduos, às famílias e aos povos o dom da fraternidade, da concórdia e da paz.

Por isso, o Advento é por excelência o tempo da esperança, no qual os crentes em Cristo são convidados a permanecer em expectativa vigilante e laboriosa, alimentada pela oração e pelo compromisso efectivo do amor.

Bento XVI

 

 

É necessário, meus queridos irmãos, ter paciência e perseverar, para que, depois de termos sido admitidos à esperança da verdade e da liberdade, possamos chegar realmente à verdade e liberdade; porque, pelo facto de sermos cristãos, temos fé e esperança; mas, para que a esperança e a fé possam dar os seus frutos, é necessária a paciência.

A esperança e a paciência são necessárias para levarmos a bom termo o que começámos a ser e para conseguirmos, por mercê de Deus, o que esperamos e acreditamos.

S. Cipriano

 

 

Deixa um momento as tuas ocupações habituais, ó homem, entra um instante em ti mesmo, longe do tumulto dos teus pensamentos. Põe de parte os cuidados que te apoquentam e liberta-te agora das inquietações que te absorvem. Entrega-te uns momentos a Deus; descansa por algum tempo em sua presença.

Entra no íntimo da tua alma; remove tudo, excepto Deus e o que te possa ajudar a procurá-lO. Encerra as portas da tua habitação e procura-O no silêncio. Diz a Deus, de todo o coração: «Procuro o vosso rosto; o vosso rosto, Senhor, eu procuro.»

E agora, Senhor meu Deus, ensinai ao meu coração aonde e como hei-de buscar-Vos, aonde e como poderei encontrar-Vos.

Que fará, altíssimo Senhor, que fará este desterrado, tão longe de Vós? Que fará este vosso servo, sedento do vosso amor, mas tão longe da vossa presença? Anela contemplar-Vos, mas o vosso rosto está tão longe dele. Deseja aproximar-se de Vós, mas a vossa morada é inacessível. Deseja encontrar-Vos, mas desconhece o vosso rosto.

Olhai, Senhor, para nós; ouvi-nos, iluminai-nos, manifestai-Vos a nós. Vinde morar connosco e seremos felizes; sem isso, passaremos muito mal. Tende compaixão dos nossos trabalhos e esforços para Vos alcançar, porque sem Vós nada podemos.

Ensinai-me a procurar-Vos e mostrai-me o vosso rosto; porque não posso procurar-Vos, se não mo ensinais. Não posso encontrar-Vos, se não Vos mostrais. Desejando Vos procurarei, e procurando Vos desejarei; amando Vos encontrarei, e encontrando Vos amarei.

Santo Anselmo

 

 

Eis chegado, irmãos caríssimos, o tempo tão celebrado e solene, o tempo favorável, como diz o Espírito Santo, os dias da salvação, da paz e da reconciliação.

Ao celebrar todos os anos este mistério, a Igreja convida-nos a renovar perpetuamente a memória do amor infinito que Deus mostrou para connosco; e ao mesmo tempo nos ensina que o advento de Cristo não foi apenas para os seus contemporâneos, mas que a sua eficácia nos é comunicada a todos nós, se quisermos receber, mediante a fé e os sacramentos, a graça que nos mereceu, e orientar de acordo com ela os costumes da nossa vida segundo os seus mandamentos.

Além disso, a Igreja espera fazer-nos compreender que assim como Ele veio uma vez, revestido da nossa carne, a este mundo, também está disposto, se não oferecermos resistência, a vir de novo, em qualquer hora e momento, para habitar espiritualmente em nossas almas com abundantes graças.

S. Carlos Borromeu

 

 

Rezar com Maria em tempo de Advento

Maria

O que te peço, Senhor, é a graça de ser.
Não te peço mapas, peço-te caminhos.
O gosto dos caminhos recomeçados,
com suas surpresas, suas mudanças, sua beleza.
Não te peço coisas para segurar,
mas que as minhas mãos vazias
se entusiasmem na construção da vida.
Não te peço que pares o tempo na minha imagem predilecta,
mas que ensines meus olhos a encarar cada tempo
como uma nova oportunidade.
Afasta de mim as palavras
que servem apenas para evocar cansaços, desânimos, distâncias.
Que eu não pense saber já tudo acerca mim e dos outros.
Mesmo quando eu não posso ou quando não tenho,
sei que posso ser, ser simplesmente.
É isso que te peço, Senhor:
a graça de ser nova.

Texto: José Tolentino Mendonça
Imagem: Rui Aleixo

 

 

Chegou sem ser esperado, veio sem ter sido concebido. Só a mãe sabia que era filho de um anúncio do sémen que existe na voz de um anjo. Tinha acontecido a outras mulheres hebreias, a Sara por exemplo.

Só as mulheres, as mães, sabem o que é o verbo esperar. O género masculino não tem constância nem corpo para hospedar esperas. Sinto de novo a agravante de ignorar fisicamente a voz do verbo esperar. Não por impaciência, mas por falta de capacidade: nem mesmo durante as febres de malária me acontecia recorrer ao repertório das fantasias de me curar, de estar à espera de.

Nos despertares matutinos ao folhear Isaías leio: «Felizes aqueles que o esperam» (Is 30,18). Não conheci esta sábia e física alegria. Mas mais forte do que esta notícia, no mesmo versículo está escrito «Por isso esperará Iod/Deus para vos fazer misericórdia». Existe uma primeira espera, que espera por Deus e tem o mesmo verbo hebraico hacchè. Na sua redução à forma da espécie humana, o Seu tempo infinito contrai-se no finito de uma espera. Deus espera: «para vos fazer misericórdia».

O tempo de Advento vive desta imitação, defronte à eternidade de um Deus que aceita fazer-se tempo, irrompendo no mundo em meses estabelecidos com nascimento, morte e ressurreição.

Quem tem no seu corpo os recursos para conceber esperas, conhece do versículo de Isaías a imensidade da correspondente espera de Deus.

Erri De Luca

 

© SNPC | 23.12.09

Advento

 

 

 

 

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