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Ver a partir do invisível

Quando as notícias formaram um cerco invisível, obrigando os habitantes a ficar em casa, muitos entraram em “modo de pânico”. As áreas comerciais foram invadidas como se tivessem ressoado as trombetas do apocalipse. Regressavam a casa exaustos, mas carregados de bens, alguns dos quais podiam ser consumidos em quarenta quarentenas. Por essa altura, até a mercearia do antigo mercado, habitualmente frequentada por um reduzido número de fiéis de cabelo grisalho e pelas respetivas empregadas, começou a dar nas vistas. Era uma área bonita, no centro de uma pequena praça com tílias e áceres que ofereciam uma sombra generosa aos bancos de cimento.

A estrutura estava claramente caquética, já que as autoridades locais adiavam sucessivamente as obras de restauração. Alegavam urgências de última hora. Prometiam começar em breve. Os novos equipamentos, a reparação do telhado e a abertura de uma nova porta, diziam, haveria de atrair novos investidores, e os clientes voltariam a frequentar o espaço.

Sempre que ouviam tais promessas, os sobreviventes comerciantes voltavam a repetir as memórias do espaço como um lugar de encontro de gerações, o ambiente familiar de outrora, e o apoio social prestado, pois conheciam bem os habitantes mais velhos do bairro, os carenciados, os doentes, os que viviam sozinhos. Percebiam, no entanto, que não eram ouvidos. Tudo continuou na mesma, ano após ano.

«Somos invisíveis» desabafava a proprietária da mercearia. Entretanto, as novas áreas comerciais da vizinhança tinham sugado as forças da velha equipa. O fim parecia iminente. Eles estavam dispensados de fazer parte da história do futuro.

Na semana em que as notícias do vírus se tornaram numa força imparável, encontrei o espaço com uma fila à porta. Devia ter uns 10 metros. Várias pessoas, algumas de máscara e luvas, esperavam à intempérie para serem atendidas. Lá dentro, as bancas das laranjas e das maçãs, das hortaliças e dos limões, permaneciam calmas e reluzentes, num ambiente de súbita agitação. «Nem no Natal», disse o abastecedor enquanto respirava fundo e abanava a cabeça, como se estivesse a expelir dentro de si um mau pensamento, encostado à parede, numa pausa de descanso. «Agora já sabem onde fica o mercado. Passavam aqui e nunca tinham reparado.»

Uma força invisível obrigou-nos a alterar rotinas. Atou os nossos pés a pesadas cadeias e abriu-nos os olhos. Neste tempo de quarentena quaresmal, as palavras recolhimento e conversão tornaram-se uma regra de vida para todos, crentes e não crentes. Oxalá esta coletiva tribulação passe depressa, mas também nos cure para sempre. 


 

P. Nélio Pita, CM
Publicado em 20.03.2020 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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