O papa emérito Bento XVI, de 89 anos, fala de si, da Igreja, dos momentos difíceis do seu pontificado, da «grande surpresa» que foi para ele a eleição do papa Francisco, da sua preparação para morte e de vários outros temas no livro-entrevista “Últimas conversas”, resultante de longas horas de conversa com o jornalista alemão Peter Seewald.
No texto de apresentação da edição italiana (“Ultime conversazioni”, ed. Garzanti, 240 páginas, 12,90 €) lê-se que este volume constitui o «testamento espiritual, o legado íntimo e pessoal do papa que mais do que nenhum outro conseguiu atrair a atenção quer dos fiéis quer dos não-crentes para o papel da Igreja no mundo contemporâneo».
Joseph Ratzinger fala sobre os problemas que antecederam a sua renúncia ao pontificado, ao mesmo tempo que responde, «com surpreendente sinceridade, às muitas perguntas sobre a sua vida pública e privada: a carreira de teólogo de sucesso e a amizade com João Paulo II, os dias do Concílio Vaticano II e a eleição papal, os escândalos dos abusos sexuais cometidos pelo clero» e as fugas de informação dentro da Santa Sé, conhecidas por “Vatileaks”.
«Bento XVI conta-se com extrema coragem e sinceridade, alternando memórias pessoas com palavras profundas e repletas de esperança sobre o futuro da fé e do cristianismo. Ler hoje as suas últimas reflexões é uma ocasião privilegiada para reviver e voltar a escutar os pensamentos e os ensinamentos de um homem extraordinário capaz de amar e de surpreender o mundo», assinala a sinopse.
O jornal italiano “Corriere della Sera” publicou esta quarta-feira alguns excertos do livro, que transcrevemos.
Eu escrevi a renúncia
«O texto da renúncia fui eu que o escrevi. Não posso dizer com precisão quando, mas no máximo duas semanas antes. Escrevi-o em latim porque uma coisa tão importante faz-se em latim. Além disso, o latim é uma língua que conheço suficientemente bem para poder escrever de forma condigna. Poderia também tê-lo escrito em italiano, naturalmente, mas havia o perigo de cometer algum erro.»
Não fui chantageado
«Não se tratou de uma retirada sob a pressão dos acontecimentos ou de uma fuga devido à incapacidade de lhes fazer frente. Ninguém procurou chantagear-me. Nem sequer o teria permitido. Se o tivessem tentado não teria saído porque não se deve deixar quando se está sob pressão. E também não é verdade que estava desiludido ou algo semelhante. Na verdade, graças a Deus, estava num estado de alma pacífico de quem ultrapassou as dificuldades. O estado de alma em que se pode passar tranquilamente o leme a quem vem depois.»
Feliz pelo sucessor
«O meu sucessor não quis a mozeta vermelha. Isso não me tocou minimamente. O que me tocou, em vez disso, é que já antes de sair para a varanda [da basílica de S. Pedro] quis telefonar-me, mas não me encontrou porque estávamos precisamente diante da televisão. O modo como rezou por mim, o momento de recolhimento, depois a cordialidade com que saudou as pessoas, de tal maneira que a faísca, por assim dizer, se inflamou imediatamente. Ninguém esperaria que fosse ele. Eu conheço-o, naturalmente, mas não pensei nele. Neste sentido foi uma grande surpresa. Não pensei que estivesse no grupo restrito dos candidatos. Quando ouvi o nome, fiquei primeiramente inseguro. Mas quando vi como falava, por um lado com Deus, por outro com os homens, fiquei verdadeiramente contente. E feliz.»
A Igreja está viva
«A eleição de um cardeal latino-americano significa que a Igreja está em movimento, é dinâmica, aberta, tendo diante de si perspetivas de novos desenvolvimentos. Que não está congelada em esquemas: acontece sempre alguma coisa de surpreendente, que possui uma dinâmica intrínseca capaz de a renovar constantemente. O que é belo e encorajador é que precisamente no nosso tempo acontecem coisas que ninguém esperava e mostram que a Igreja está viva e transborda de novas possibilidades.»
Reformas: não sou forte
«Cada pessoa tem o seu próprio carisma. Francisco é o homem da reforma prática. Foi arcebispo durante muito tempo, conhece o mester, foi superior dos Jesuítas e tem também o ânimo para meter mão em ações de carácter organizativo. Eu sabia que esse não é o meu ponto forte.»
Sobre o grupo de pressão homossexual no Vaticano
«Efetivamente foi-me indicado um grupo, que entretanto dissolvemos. Tinha sido assinalado no relatório da comissão de três cardeais que se podia individuar um pequeno grupo de quatro, talvez cinco pessoas. Dissolvemo-lo. Formaram-se outros? Não sei. Seja como for é certo que no Vaticano não pululam casos semelhantes.»
«A Igreja muda»
«É evidente que a Igreja está a abandonar cada vez mais as velhas estruturas tradicionais da vida europeia e portanto muda de aspeto e nela vivem novas formas. É claro sobretudo que a descristianização da Europa progride, que o elemento cristão desaparece cada vez mais do tecido da sociedade. Consequentemente a Igreja deve encontrar uma nova forma de presença, deve mudar o seu modo de se apresentar. Estão em curso reviravoltas epocais, mas não se sabe ainda a que ponto se poderá dizer com exatidão que começa uma ou outra.»
Não sou um fracasso
«Um ponto frágil meu é talvez a pouca resolução no governar e tomar decisões. Aqui, na realidade, sou mais professor, alguém que reflete e medita sobre questões espirituais. O governo prático não é o meu forte e esta é, certamente, uma fragilidade. Mas não consigo ver-me como um fracassado. Durante oito anos desempenhei o meu serviço. Houve momentos difíceis, basta pensar, por exemplo, no escândalo da pedofilia e no caso Williamson, ou também no escândalo Vatileaks; mas em geral foi também um período em que muitas pessoas encontraram uma nova via para a fé e foi também um grande momento positivo.»
Preparo-me para morte
«É preciso preparar-se para a morte. Não no sentido de realizar determinados atos, mas de viver preparando-se para ultrapassar o último exame diante de Deus. Ao abandonar este mundo e encontrar-se diante dele e dos santos, dos amigos e dos inimigos. A, digamos, aceitar a finitude desta vida e colocar-se a caminho para chegar à presença de Deus. Procuro fazê-lo pensando sempre que o fim está próximo. Procurando preparar-me para esse momento e sobretudo tendo-o sempre presente. O importante não é imaginá-lo, mas vivê-lo na consciência de que toda a vida tende para este encontro.»
In "Corriere della Sera"