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Arquitectura

A substância dos sonhos é a luz. Sobre a Igreja de Santa Maria, de Siza Vieira

A igreja de Santa Maria nasceu duma necessidade, mas depressa se tornou num sonho. Há realidades assim: nascem como nascem os dias, previsíveis, com uma determinação habitual. E depois, há um lanço de luz, um encontro essencial, uma notícia, sei lá, uma dobra do tempo súbita e surpreendente, que tudo alteram. A igreja de Santa Maria (na altura, apenas a igreja nova) era mais uma igreja que era necessário construir, como muitas vezes e em muitos lados acontece. Um dia, talvez ao acordar, tomei consciência do fardo enorme que os meus ombros teriam de suportar. O que fazer, como fazer, por onde começar?

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Um pensamento atravessou-me o espírito, rápido e claro como um pássaro. Um pensamento de quatro letras apenas: Siza. É neste momento que a necessidade se transforma em sonho. É aqui que o fardo deixa de o ser e se transforma num desafio cheio de luz e de entusiasmo. A substância dos sonhos é a luz. Uma substância esquiva, mas de uma presença irresistível. Foi assim que nasceu a igreja de Santa Maria. É assim que nascem todas as coisas tocadas por um fogo que se faz não sei lá onde. O debate com a realidade nada arrefeceu. Apenas alguns medos apareceram, daqueles que se misturam com os sonhos e os tornam ainda mais resistentes, para que a obra fosse amassada com a humana matéria da dúvida e da dualidade.

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O Marco é um lugar de névoas frequentes. Nesses dias o volume branco do edifício desaparece, a lembrar a sua vocação de se elevar, de se ausentar, de criar um espaço vazio. Recordo-me de uma manhã vir a descer de Soalhães, num desses dias de névoa densa, olhar a cidade ao fundo, vislumbrar apagadamente todos os edifícios, menos a igreja e, de repente, pensar: roubaram a igreja! E lembrei-me dos ladrões de sonhos, daqueles que, não os sabendo construir, não escapam ao seu fascínio, e se metem dissimulados no meio deles para os confundir, desfazer ou roubar. Desci o mais depressa que me foi possível e fui direito ao sítio da igreja: afinal ela estava lá. A raiz que a sustém é uma raiz profunda, mas, mesmo assim, tenho medo que a roubem. Não é da névoa que tenho medo. É dos tiranos que caminham vigiando a sua própria sombra, dos oficiais da religião que aparecem como se fossem os fiscais do templo, dos répteis do dinheiro que com a sua longa cauda tudo derrubam na sua passagem. Tenho medo dos liceais que vêm aos magotes, sobem para cima das cadeiras, desenham"corações no estuque e deixam latas de Coca-Cola em cima do altar. Tenho medo dos que vêm em passeios paroquiais, falam muito e alto, olham sem nada ver, trocam uns risinhos patetas e perguntam qual é o café mais próximo.

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Uma obra, uma decisão, por mais simples que sejam, cada hora do dia têm um dever que lhes corresponde: nesta obra esse dever é olhá-la em si mesma, libertando-a dos subjectivismos atrevidos e opiniosos. Olhá-la em si mesma no seu estar ali, erguendo-se da terra, abrindo um mundo entre outros mundos. Olhá-la a partir de si e não a partir do observador: na sua implantação, no seu volume, na sua brancura, no seu ser quase-animal que nos rodeia e acaricia. Olhá-la nos seus materiais que apetece tocar porque brilham de realidade. A igreja de Santa Maria não imita nada, seja uma tenda, seja um barco, seja uma espiga, seja o que for. Esse é um equívoco tantas vezes repetido, destruidor da realidade e dos símbolos. O símbolo não intenta imitar ou substituir. O símbolo mediatiza e nessa mediatização constrói, unifica e torna presente a realidade. O sagrado não é imitado ou substituído pelo símbolo. O sagrado recolhe-se no símbolo e não se esgota nem se consuma nele. Este recolher-se no símbolo leva em si um retirar-se para além dele porque todo o símbolo é inadequado. A igreja de Santa Maria, como todos os templos que verdadeiramente o são, surge da terra, como surgem da terra as pedras, as árvores e as ervas. Como surgem da terra as casas das aldeias que restam dum tempo menos dividido, um tempo de relevo não uniforme, um tempo vertebrado. E no seu elevar-se e instituir-se em mundo traz Deus à habitação, para utilizar uma terminologia heideggeriana. O edifício da igreja abre um espaço aberto a partir da terra, ilumina a cidade, faz aparecer a luz sem que saibamos explicar aquela luz, faz sobressair o branco como se nunca tivéssemos visto aquele branco. Que outra raiz senão a terra pode suster esta capacidade de manifestação e de pergunta?

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Alguns visitantes, não raro, e não raramente clérigos, comentam que gostam deste ou daquele pormenor mas não gostam do conjunto: gostam do interior, mas não gostam do exterior; gostam dos muros de suporte da parede curva e do baptistério, mas não gostam da cruz, do sacrário ou das cadeiras. Como se, olhando a Guernica, se pudesse dizer: gosto do candeeiro, do guerreiro prostrado, da mãe com o filho morto ao colo, mas não gosto do cinzento da tela, do anjo que irrompe pela janela ou do touro em agonia.

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Há um segredo para entrar na igreja de Santa Maria: entrar como um vaso poroso de argila entra numa água impoluta e fresca. Entrar e deixar-se embeber pela luz e pela frescura do silêncio. Sentar-se numa cadeira. De preferência numa das que permite uma visão do Marão longínquo, sem fotográfica, sem ideias, ouvindo apenas a música da água do baptistério, ouvindo os pássaros que esse murmúrio da água tem na voz.

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Quem nunca fez isto, quem nunca andou pelo jardim olhando, quem nunca ouviu no claustro a água veemente da fonte que corta ao meio o óculo da casa mortuária, quem nunca percorreu as galerias que levam à câmara mortuária e aí se sentou no banco de madeira com as costas sobre o rodapé frio de mármore, quem nunca experimentou esta humildade, não conhece a igreja de Santa Maria.

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Eu sei que a igreja de Santa Maria não é um sonho. É uma igreja. Eu não pedi ao Arquitecto Siza que me desenhasse um sonho, coisa que aliás ele sabe fazer como muito poucos, pedi-lhe uma igreja. Uma árvore é uma árvore, uma casa é uma casa, uma ave é uma ave, uma paisagem é uma paisagem. Mas há uma força torrencial chamada paixão que duma árvore, duma casa, duma ave ou duma paisagem é capaz de fazer um sonho.

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Texto: Nuno Higino
Fotografias: VRfoto (1), to.bi.as (2, 11, 12), tecum (3, 4, 5, 6, 7, 8), camil-b (9), Miki_Fog (10, 13)
07.10.09

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