O apelo à memória, a marca da História e da Aliança são traços distintivos da Quaresma, em particular do seu quarto domingo.
Jesus, evocando a serpente levantada no deserto, olha para a história entre Deus e a humanidade: uma história de pecado e redenção. Mas o olhar para o passado, ainda que necessário, não é suficiente: poderia ser apenas nostalgia. Jesus, pelo contrário, é o hoje de Deus, a luz que veio ao mundo.
O grande êxodo que Cristo propõe é, portanto, sempre atual, aposta e proposta sempre nova: do meu “eu” ao “Tu” de Deus. Ao encontro de um homem centrado em si mesmo, vítima das suas paixões e ilusões, vai a Luz de Deus na pessoa de Cristo: uma luz que não violenta nem cega, mas esclarece, ilumina e cura com confiança e esperança.
Estar centrado em si mesmo, lançar-se na vida seguindo os caminhos do “eu” e não do “nós”, para depois se encontrar desestabilizado na sua caducidade, no descobrir na crista da existência o tempo disperso sem sentido aparente: este é, de certa forma, o traçado inicial do filme de animação “Soul” (2020), de Pete Docter, disponível na plataforma Disney.
Em linha com as anteriores obras-primas assinadas por Docter, em particular “Up”, Óscar em 2009, “Soul” narra a história de Joe, professor de música em escolas nova-iorquinas e apaixonado pelo jazz.
De dia está nas aulas, enquanto à tarde e de noite participa em audições para entrar numa banda. Quando é selecionado, Joe sente-se realizado, feliz, ele que sacrificou tudo e todos por causa da música. Neste contentamento, ao caminhar pelas ruas da Grande Maçã, cai num buraco de esgoto e acaba em coma…
Mudança de cenário, e estamos quase no Além, ou melhor, numa região de trânsito, onde a alma de Joe está uma encruzilhada. Será a ocasião para pensar no seu percurso.
Decerto não se trata de uma animação para crianças, ao colocar o delicado tema da morte, do Além, mas não deixa de ser um filme válido e aproveitável para uma audiência a partir da pré-adolescência, e em geral para famílias.
Incorporando o grande fascínio e envolvimento das narrações Disney, “Soul” coloca-nos diante de temas densos, importantes, como o sentido da vida. Não se trata, porém, de uma obra marcada pela angústia ou desalento; pelo contrário, transforma-se num atrativo e poético hino à vida.
Através dos acontecimentos de Joe compreende-se como muitas vezes, ao longo da nossa existência, acabamos por desperdiçar energias ou deixar deslaçar relações afetivas importantes, com a família à cabeça, para seguir objetivos, paixões ou interesses que desaguam nas obsessões.
Joe adora a música, o seu mundo irradia de beleza quando se senta ao piano, mas aquilo que nasce como um sentimento saudável depressa se transforma numa miragem, num falso mito, que o isola e afasta de tudo, reduzindo inevitavelmente a sua vida à solidão.
Ao caminhar pelas margens da vida, apercebendo-se da proximidade da morte, Joe compreende como a música é preciosa, mas não é tudo. A beleza da vida desabrocha graças ao encontro com o “outro”, no horizonte da partilha. No “nós”.