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Um modo de te amar antes do tempo: Sobre a saudade de Deus na poesia de Daniel Faria

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Um modo de te amar antes do tempo: Sobre a saudade de Deus na poesia de Daniel Faria

Ó saudade de Deus! Dor cósmica! Tristeza!
Ó mágoa indefinida,
Na qual se perde, além da minha vida,
Esta presença morta que me pesa! (2)
(Teixeira de Pascoaes)

não tentes soletrar o indecifrável: aí começa o trilho
pedregoso aonde vêm morrer todos os nomes (3)
(Rui Nunes)

 

1.º dia
Porque pressinto que posso ouvir-te (4)
Porto, Domingo de Páscoa, 27 de março de 2016

Tomei ontem a decisão de escrever este texto sobre Daniel Faria. A noite em insónia desdobrou a memória do poeta, sob os escombros de mais de 20 anos. Restam-me apenas reminiscências, imagens esmaecidas do tempo que partilhámos com uma vaga e depois desmentida pretensão de futuro. Intermitências. Durante anos silenciei qualquer leitura hermenêutica da sua poesia, certamente por medo de tocar a superfície pressentida de uma luz que encandeia.

Conheci-o no outono de 1993, no Seminário Maior do Porto. Nós, os mais novos, sabíamos que o Daniel era poeta: tinham já sido publicados "Uma Cidade com Muralha" (5) (1991), "Oxálida" (6) (1992) e, nesse mesmo ano, "A Casa dos Ceifeiros" (7) (1993). Lembro-me do seu quarto, do modo como naquela tarde de outono leu uns versos de Herberto Helder, que escutei contemplativamente pela primeira vez, como diante de uma epifania:

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
>só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva, >
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida. (8)

Em 1994, Daniel Faria terminou o curso de Teologia (9), na Universidade Católica Portuguesa. O desejo de se tornar monge no Mosteiro beneditino de Singeverga sobrepôs-se ao caminho que o conduziria à ordenação presbiteral. Numa espécie de interlúdio, ingressou no curso de Estudos Portugueses, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

 

2.º dia
A semente está poisada no lugar de padecer (10)

Daniel Faria nasceu no dia 10 de abril de 1971, em Baltar, num contexto rural, a 25 quilómetros do Porto. Manifestou desde a infância o desejo de ser presbítero da Igreja, tendo ingressado no Seminário do Bom Pastor com 12 anos. Logo revelou uma inteligência penetrante, uma vontade incontida de aprender e um interesse crescente pela literatura e pela arte, que lhe possibilitou o contacto com obras poéticas de referência numa idade em que até o gosto pela leitura é pouco expectável.

Quando inicia os seus estudos teológicos, Daniel Faria tem já uma cultura verdadeiramente diferenciada: os livros que lia, a música que ouvia, o interesse que revelava pelo teatro ou pelas artes plásticas, as conversas em que se demorava. Estávamos diante de alguém diferente, um «rapaz raro» (11) (como lhe chamou Alexandra Lucas Coelho), com uma literacia cultural que não era meramente cumulativa, mas criativa. Havia nele um entusiasmo, um brilho estremecido, temperado por uma vida interior intensa, por um vagar deslumbrado, talvez místico. Guardo na minha memória o clarão fóssil, a luz esmaecida desse fogo invisível que ardia no âmago da sua interioridade, como uma ferida aberta que o tornava íntimo de realidades que só podíamos perscrutar à distância, entrever no escuro.

Já não me recordo da sua voz, mas não me esqueço que nela os versos de Herberto Helder, os de Luiza Neto Jorge, os seus próprios versos, guardavam um rumor ensimesmado, talvez essa «significância mais antiga que qualquer intencionalidade dadora de sentido» (12) (nas palavras de Jean-Luc Nancy).

Reparo agora que vivemos desencontrados. O Daniel estudou na Escola Secundária Rodrigues de Freitas, onde eu ingressaria precisamente no ano letivo em que ele se matriculou na Faculdade de Teologia; quando iniciei os meus estudos teológicos, o Daniel ingressou na Faculdade de Letras; e estava a preparar-me para os últimos exames na Faculdade de Teologia quando me informaram da sua morte, no dia 9 de junho de 1999.

Foi entre 1994 e 1997 que mais contactámos. Senti, então, que o Daniel amadurecia intensa e silenciosamente, entre a colaboração pastoral nas paróquias da Senhora da Conceição (no Porto, onde então residia) e de Santa Marinha de Fornos (em Marco de Canaveses, onde nascia a Igreja de Santa Maria, de Álvaro Siza) e a redação e defesa da sua tese de licenciatura em Teologia, sobre o poeta e asceta franciscano Agostinho da Cruz (1540-1619). Termina a licenciatura de Estudos Portugueses no ano letivo de 1997/98, ano em que vive no Mosteiro de S. Bento da Vitória, no Porto, como postulante. 

Em 1998, no fim do primeiro inverno no Mosteiro de Singeverga, publica dois livros: "Explicação das Árvores e de Outros Animais" (13) e "Homens que são como Lugares mal Situados" (14). Não nos víamos há alguns meses, mas o Daniel fez com que me chegassem às mãos os seus livros. Sim, tinha amadurecido intensa e silenciosamente: ali se guardavam versos que, como escreveu Sophia, «põem o mistério a ressoar em redor de nós» (15).

Li-os ensimesmado, com o estremecimento de quem toca a superfície pressentida de uma luz que encandeia. Ali estava o Daniel, em cada poema, numa espécie de processo de transfiguração, a exercitar a levitação: «Sei bem que não mereço um dia entrar no céu/ Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra» (16).

Esta reflexão detém-se nas páginas de "Explicação das Árvores e de Outros Animais", o primeiro dos seus últimos livros (17). Lê-se no exemplar que o Daniel me dedicou, no dia 4 de junho de 1998: «Ao José Rui, que também se explica com a matéria viva das palavras». E esta dedicatória guarda o sentido da única leitura hermenêutica para a qual me sinto legitimado: a poesia de Daniel Faria (e este livro em concreto) é uma explicação, um sistema explicativo. Não se explica desde o exterior, ao modo da dissecação que, numa vertigem reducionista, tem no fim apenas os escombros orgânicos do objeto dissecado. É na condição de poeta que busco uma hermenêutica que não me substitua à Palavra.

 

3.º dia
Canso-me como o degrau onde o homem hesita (18)
Praga, 30 de março de 2016

Daniel Faria é um poeta crescentemente místico nos seus três últimos livros, que constituem claramente o seu corpus poético, já distantes da juvenília com que ensaiou a sua voz e universo poéticos. Nesses três livros não se limitou a escrever sobre aquilo que sabia, mas, mais profundamente, sobre aquilo que não sabia ainda. É curioso que Daniel Faria tenha revelado a intenção de dar ao seu último livro o programático título de "Das coisas que eu sei do céu" (19).

A sua poesia não tende para a alucinação, nem para a deriva onírica. As estruturas sintáticas e semânticas são cuidadosamente definidas e a profusão da metáfora serve a abertura do ângulo do arrebatamento, do êxtase tantas vezes contido por um rumor de melopeia que, particularmente em "Explicação das Árvores e de Outros Animais", resulta de uma premente saudade de Deus, condição disfórica que permite situar Daniel Faria numa família de poetas dissidentes, heterodoxos, tão atormentados com a ausência de Deus que a espera se tornou insuportável e a oblação se realizou na vertigem suicidária que fez com que Unamuno escrevesse que somos um povo de suicidas, um povo suicida (20). 

"Explicação das Árvores e de Outros Animais" resulta de um laboratório de criação que convoca e combina diferentes intertextualidades com elementos do universo rural de onde o poeta provém, um bestiário íntimo, vagamente telúrico, que Daniel Faria observa com um certo desapego e progressiva distância.

Este livro guarda uma poesia invulgarmente sinestésica, na medida em que não se limita a combinar perceções de natureza sensorial distinta, mas essencialmente de distinta natureza concetual, paradoxos sem arestas, imagens inusuais que vão estabelecendo um universo de aparições poéticas profundamente idiossincrático e que situam esta poesia num sistema complexo, mas não hermético.

Estou convencido de que toda a poesia tem um grau de cravação: a intensidade com que se imprime contra a página. E creio que a poesia de Daniel Faria tem um índice de cravação muito baixo, quase uma marca de água. É uma poesia que tende a levitar, uma poesia etérea, como se buscasse desprender-se da página: «Socorre-me, devolve-me a leveza/ Da tão primeira nuvem que avistares» (21).

 

4.º dia
Estou a um palmo do teu silêncio e alteio o silêncio

"Explicação das Árvores e de Outros Animais" é um livro que «vem com as chuvas, depois das queimadas» (23); é um exercício de interlúdio, uma realidade intermédia, transfronteiriça, uma suspensão consentida que não disfarça uma disforia latente. Perpassa todo o livro uma vaga tensão escatológica, o «já agora» e o «ainda não» de uma presença que, sendo esmaecida na experiência existencial, é sentida como ausência. E apesar de uma vida espiritual tão intensa, a expectativa do pleroma condenava Daniel Faria a uma insatisfação que nem as primícias da vida monástica pareciam saciar.

Diria que o poeta sofre de uma incurável saudade de Deus. Esse vem a ser o principal "leitmotiv", escorado por diferentes esteios, por vezes ambivalentes: a manhã e a noite, o homem e o anjo, o chão e o céu.

O leitor é cuidadosamente conduzido para uma experiência mística, para uma espécie de vidência em que a realidade é focada no limite sensível da fronteira entre o visível e o invisível, sem nunca descurar o rigor sintático e semântico que a matéria viva das palavras exige. O poeta permanece com os olhos bem abertos diante da realidade e, de explicação em explicação, absorvendo-a em imagens interiores até à cegueira.

Para Daniel Faria, o poeta – que pousa devagar a enxada sobre o ombro depois de cavar muito silêncio, «Como punhal em suas costas/ A lâmina contra o cansaço» (24) – é um instrumento não meramente oracular: é o poeta que religa a palavra ao silêncio, o visível ao invisível, sacrificando-se, renunciando a si próprio:

Ando um pouco acima do chão
[…]

Estou ligeiramente acima do que morre
[…]

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores 
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim

E bebe (25)


Entre a terra e o céu, «um pouco acima do chão», «ligeiramente acima do que morre», «um pouco no interior do que arde». Este é o espaço em que o poeta se move, «nos arredores do verbo», num «degrau invisível sobre a terra», entre a imanência e a transcendência, entre a consciência de que o homem é uma caverna (26) e o lamento enlevado: «Como é/ Amargo não poder guardar-te/ Em chão mais próximo do coração.» (27) E este lamento, insistentemente repetido, «Não é um pensamento./ É uma ideia ensimesmada. Uma pedra fechada/ Pelo lado de dentro.» (28)

Daniel Faria colecionava pedras (29), semantema recorrente em "Explicação das Árvores e de Outros Animais", onde aparece inscrito 12 vezes. As pedras conferiam-lhe simbolicamente peso, gravidade, e contrariavam a levitação; fincavam-no à terra, à vida; representavam os amigos. Tal como as árvores, com as suas raízes, o peso e a compacidade das pedras confortavam um poeta que se recusava a escrever a sua «casa sobre a terra» (30); um poeta que existiu como se levitasse e que era «Irmão dos ritmos invisíveis sobre a terra/ Familiar dos anjos que pousam sobre a vida» (31). E não é apenas a sua poesia que adquire uma condição etérea, são as suas feições, o seu modo de escrever-se em silêncio.

A sua poesia intensifica-se na ressonância de semantemas como «labirinto», «casa», «mãe» e «coração», a mãe que «sorria cega de dor/ E parecia de deslumbramento» (32) e um coração interior, um coração nuclear (33).

 

5.º dia
Com a noite em minhas mãos para ter luz (34)

Em "Explicação das Árvores e de Outros Animais", a «luz» é o semantema mais impressivo, desdobrado nos tópicos do «fogo» e do «incêndio», num adentramento na «noite escura», estância de abandono e vórtice místico de uma presença mais pura: «No meio do escuro peço/ Uma pedra incendiada.» (35)

Diria que, na poesia de Daniel Faria, podemos identificar as duas ações: a de apagar a luz exterior e a de acender a luz interior. Assim, numa cedência ao sono abúlico, o poeta murmura: «Não deixes a candeia acesa/ Dorme: basta-me essa luz» (36). E depois, nesse outro espaço de interioridade, alumia-se: «Se acender a luz/ Não morrerei sozinho» (37). Daniel Faria busca contemplativamente a origem dessa luz, sem perder a consciência do seu caráter instrumental, no âmago do múnus do poeta: «E enxerto a luz/ Em tudo o que nomeio» (38).

A sua poesia adquire um tempo próprio, que prescinde do sentido de eterno retorno sem, por isso, assentir com uma linearidade cronológica. É um tempo sobreposto, suspenso, concêntrico, mais denso e menos volumoso à medida que passa: «E no tempo repetido acharei uma saída/ Uma manhã depois de uma manhã» (39). O seu tempo é o 8.º dia, a manhã que rompe o tempo circunscrito, a manhã pascal: 

Guarda a manhã 
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão (40)


A aura hierática que envolvia a figura de Daniel Faria, a sua experiência espiritual e muitos dos seus poemas, pode aparentar uma área de conforto que verdadeiramente não existia. Ainda que eventualmente o confortasse, a sua vida espiritual era agónica, traduzia uma intensa luta interior, entre a consciência de promessa não cumprida e a espera exasperadamente prolongada: «Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa/ Nem se cumpriu/ E a espera é não acontecer […]/ E a saudade é tudo ser igual.» (41)

A temporalidade tende a ser, para Daniel Faria, uma mortificante experiência de desterro. Mais ou menos inconformado, o poeta não disfarça a desolação diante da ausência ou da presença não pressentida. Por vezes, escuta-se um rumor de maceração nos seus versos:

Vou-me pôr à mesa e esperar.

Tenho aflição por toda a ausência não anunciada
Acendi a luz por toda a casa e eletrifiquei a voz
Agora posso ampliar o clarão dos gritos.
[…]

Vou-me sentar à mesa. Vou deixar arrefecer a comida.
Fazer de conta que estou a esperar. (42)

 

6.º dia
Escolhi a morte para ficar contigo (43)

A reação de Daniel Faria é menos exasperada do que a de poetas como Antero de Quental e Manuel Laranjeira, que perdem a fé e a esperança e, no âmago de um desespero profundo, encontram na "mors liberatrix" o lenitivo para o premente vazio escavado pela ausência de Deus. Mas nem por isso é uma reação menos agónica:

Não tinha nada donde vim. Aqui não encontrei 
O que tive e a cadeira não serve o meu repouso.
Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres
O vazio que persiste à minha beira. (44)


Quando Daniel Faria morre, no fim da primavera de 1999, é um estranho acidente que o conduz ao hospital (45). Apesar desse consternamento que a sua morte causou, sentia-se que Daniel Faria estava maduro (46), como se a sua morte não tivesse resultado de um acidente concreto, mas da intimidade que lhe cedeu: «Encosto-me à morte sem amparo ou sombra» (47); «Vou construir um labirinto para a morte/ Deitar o corpo sobre o pó para morrer» (48). São de Nuno Higino estas palavras: «Apesar da confiança que lhe davas – parece-me que lhe permi-tias andar pelos teus versos com demasiado à vontade – não devias ter deixado que viesse assim, às portas do verão, a morte.» (49)

Mas Daniel Faria já tinha deixado que a morte viesse, resultado de um processo de resiliência: o corpo imaterial do poeta (assentindo com o paradoxo) recuperava a sua forma original após sofrer o embate deformador da existência. A morte veio e adquiriu uma concisão impressiva e permitiu uma inteligibilidade sistémica à sua vida e obra:

O meu projeto de morrer é o meu ofício
Esperar é o modo de chegares
Um modo de te amar antes do tempo (50)


«Um modo de te amar antes do tempo» é a expressão da saudade de Deus que veementemente incendiou o seu coração de homem (51), o coração interior que nas árvores não buscou o lenitivo das raízes, mas a «incomparável paciência de procurar o alto» (52).

Em "Explicação das Árvores e de Outros Animais" entrecruzam-se a solidão infinita de ocupar um lugar (53), a recusa a escrever a sua casa sobre a terra (54) e a consciência de que não terá saudades deste mundo (55). Daniel Faria é um poeta desterritorializado, desapegado do corpo material (assentindo com a redundância), soletrando o nome que «parece a infância» e consciente de que «Para dentro/ Do nome se esvazia o corpo» (56).

Recordo as palavras de Unamuno, quando escrevia sobre Espinosa, em "Do Sentimento Trágico da Vida": «Do mesmo modo que aos outros lhes dói uma mão, ou um pé, ou o coração, ou a cabeça, a Espinosa doía-lhe Deus.» (57) De um modo diferente, nos rudimentos de outras literacias, também a Daniel Faria lhe doía Deus:

Não me verga a velhice nem o peso do crânio
Mas os olhos cansados na dor de te não ver.
O chão tornou-se a última paisagem.
No mais longínquo da terra te levantas
E vejo erguer-se a poeira dos teus pés. (58)

 

7.º dia
Quando como no princípio a manhã se abeira (59)
Porto, 3 de abril de 2016

Daniel Faria dedica-me o exemplar de "Explicação das Árvores e de Outros Animais" no dia 4 de junho de 1998; passado precisamente um ano o seu corpo estava embrenhado nesse sono, acerca do qual escrevera: «Estranho é o sono que não te devolve.» (60) Como uma crisálida. No dia 9 de junho de 1999, a declaração de óbito anuncia que do nome se tinha esvaziado o corpo (61). Com apenas 28 anos, Daniel Faria adentra-se no inexplicável com que urdira os seus poemas.

Viveu com a «incomparável paciência de procurar o alto» e morreu jovem, lembrando as palavras com que Fernando Pessoa evoca Mário de Sá-Carneiro, que morreu em 1916, com apenas 24 anos: «Morre jovem o que os Deuses amam» (62). 

Em 2000, é publicado "Dos Líquidos", que é o terceiro e último dos seus últimos livros. Estes três livros constituem uma «obra completa» no sentido mais abrangente do conceito, nimbando-a a morte de uma irrevogável completude. 

Ainda em 2000, é publicado "Legenda para uma casa habitada", com inéditos e fragmentos de poemas dos livros de 1998. Em 2003, insisti e mediei a publicação da sua obra poética nas Quasi Edições: em maio é reeditado "Dos Líquidos" e, em novembro, são reunidos num só volume todos os seus poemas editados entre 1991 e 2000, e alguns inéditos. A sua poesia, que só enganadoramente parece caber num volume de cerca de 400 páginas, torna-se uma referência incontornável na história da Literatura portuguesa.

 

8.º dia
Eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão (63)

Daniel Faria nasceu num Sábado Santo, à hora da Vigília Pascal, quando já se cantavam aleluias. A sua primeira manhã no mundo foi um Domingo de Páscoa. E se o seu ofício foi um projeto de morrer, foi apenas porque sabia que só ao extinguir-se diria «Tudo/ O que podia ser dito/ Sobre a luz.» (64)

Terminei hoje a releitura de "Dos Líquidos". Aí, Daniel Faria acelera, num último fôlego, prime a planta do pé de apoio sobre as últimas intertextualidades (interstícios bíblicos e o rumor de vozes como as de João da Cruz e Teresa de Lisieux), alavanca o salto e projeta o corpo: a matéria viva das palavras funde-se com a luz e silencia-se. E a sua poesia permanece como uma caixa-de-ressonância para o silêncio.

Reparo agora que, no meu jardim, a magnólia esperou por abril para florir.

Se fosse vivo, Daniel Faria teria hoje 45 anos. Não é menos difícil imaginá-lo a envelhecer do que sabê-lo morto. Sobre o que seria, ocorre-me o que veio a ser:

Devo ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Devo ser o último degrau na escada de Jacob
E o último sonho nele
Devo ser a última dor no quadril.
Devo ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Devo ser a véspera. Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir. (65)

 

2 Teixeira de Pascoaes, "Sempre – Obras Completas" (I volume. Lisboa, Livraria Bertrand, s/d [1965], p. 208.
3 Rui Nunes, "Ofício de Vésperas", Lisboa, Relógio D’Água, 2007, p. 8.
4 Verso de "Dos Líquidos". Cf. Daniel Faria, Poesia, Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 62. Para a citação dos poemas de Daniel Faria, utilizarei esta edição, reeditada posteriormente em 2015.
5 Daniel Faria [Daniel Augusto da Cunha Faria], "Uma Cidade com Muralha", in Bibliotheca Portucalensis (Bibliote-ca Pública Municipal do Porto), II Série, N.º 6, 1991, pp. 57-77.
6 Id. [Cérjio Lage], "Oxálida", Porto, Associação de Estudantes da Faculdade de Teologia – UCP, 1993.
7 Id. [Daniel Augusto], A Casa dos Ceifeiros, Porto, AEFT – UCP, 1993.
8 Herberto Helder, "Ofício Cantante – poesia completa", Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 109.
9 Mas só em 1996 defendeu a tese de licenciatura, que viria a ser publicada postumamente, em 1999: A vida e conversão de Frei Agostinho: entre a aprendizagem e o ensino da Cruz, Coleção ÉPHETA 6, Lisboa, Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, 1999.
10 Verso de "Dos Líquidos". Cf. Daniel Faria, Poesia, p. 284.
11 Alexandra Lucas Coelho, «Daniel Faria: o rapaz raro», in Mil Folhas (suplemento literário do jornal Público), 14 de julho de 2001, pp. 4-10. A expressão «o rapaz raro» é inspirada no título escolhido por Maria Gabriela Llansol para a edição da sua tradução da poesia de Rimbaud (cf. Arthur Rimbaud, O Rapaz Raro – Iluminações e Poemas, Lisboa, Relógio D’Água, 1998).
12 Jean-Luc Nancy, "Las Musas", Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2008, p. 50.
13 Daniel Faria, "Explicação das Árvores e de Outros Animais", Porto, Fundação Manuel Leão, 1998.
14 Id., "Homens que são como Lugares mal Situados", Porto, Fundação Manuel Leão, 1998.
15 Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Daniel Faria, Legenda para uma casa habitada", Marco de Canaveses, Paróquia de Santa Marinha de Fornos, 2000, p. 9.
16 Daniel Faria, "Poesia", p. 62.
17 E"xplicação das Árvores e de Outros Animais" é o único dos livros de Daniel Faria traduzido para espanhol: Explicación de los árboles y de otros animales (edición bilingüe; traducción e estudio de Luis María Marina), Salamanca, Ediciones Sígueme, 2014.
18 Verso de "Dos Líquidos". Cf. Daniel Faria, Poesia, p. 304.
19 Cf. Vera Vouga, «Da Magnólia entre nós (posfácio)», in Daniel Faria, Dos Líquidos, Porto, Fundação Manuel Leão, 2000, p. 149. Aí se explicam os motivos pelos quais se optou por Dos Líquidos para título deste livro póstu-mo de Daniel Faria.
20 Cf. Miguel de Unamuno, «Un Pueblo suicida», in Por tierras de Portugal y de España, Madrid, Alianza Editorial, 2011, p. 106.
21 Daniel Faria, "Poesia", p. 82.
22 Verso de "Dos Líquidos". Cf. ibid., p. 255.
23 Ibid., p. 31.
24 Ibid., p. 101.
25 Ibid., pp. 39-40.
26 Cf. ibid., p. 94.
27 Ibid., p. 78.
28 Ibid., p. 49.
29 Cf. Alexandra Lucas Coelho, «Daniel Faria: o rapaz raro»: «O Daniel colecionava pedras.» (p. 4); «A paixão das pedras durou toda a vida. Cada amigo em viagem lhe foi trazendo uma. As mais pequenas e preciosas continuam na sua cela do Mosteiro de Singeverga, as maiores em casa dos pais. E o lugar de todas será o da palavra, tantas são as que vemos nos poemas.» (p. 5).
30 Daniel Faria, "Poesia", p. 62.
31 Ibid., p. 73.
32 Ibid., p. 107.
33 Cf. ibid., p. 86
34 Verso de "Dos Líquidos". Cf. ibid., p. 244.
35 Ibid., p. 48.
36 Ibid., p. 91.
37 Ibid., p. 51.
38 Ibid., p. 43.
39 Ibid., p. 70.
40 Ibid., p. 80.
41 Ibid., p. 110.
42 Ibid., p. 41.
43 Verso de "Dos Líquidos". Cf. ibid., p. 259.
44 Ibid., p. 57.
45 Cf. Alexandra Lucas Coelho, «Daniel Faria: o rapaz raro»: «A morte aproximou-se na madrugada de um dia que para os católicos é o do Corpo de Deus, 3 de junho, tinha Daniel 28 anos. Segundo o relato de Dom Abade [D. Luís Aranha]: “Ele levantou-se à uma da manhã para ir à casa de banho. Estava uma grande chuvada, a janela estava aberta, a porta bateu, apanhou-lhe um dedo, ele caiu e bateu com a parte de trás da cabeça. Chamou um colega, que lhe limpou o sangue, e foi-se deitar. Às quatro da manhã telefonou-me para o quarto a dizer que não se sentia bem. Fomos logo para o hospital de Santo Tirso, de onde o mandaram para o São João do Porto. Fizeram-lhe uma TAC, que acusou traumatismo craniano. À cautela, internaram-no em observação. Vim-me embora tranquilo. Às sete da tarde telefonam-me a dizer que tinha entrado em coma.”» (p. 10).
46 De acordo com João Pedro Brito: «Passadas três semanas, fui com o Padre Nuno ao Mosteiro de Ossera, na Galiza, buscar um poema que ele fizera para um frade de quem ficara amigo, no ano anterior. Quando lhe contá-mos da morte do Daniel, disse: “Tinha de ser. Estava maduro.”» (ibid.).
47 Daniel Faria, Poesia, p. 43.
48 Ibid., p. 66.
49 Nuno Higino, in "Daniel Faria, Legenda para uma casa habitada", p. 11.
50 Daniel Faria, "Poesia", p. 85.
51 Cf. ibid., p. 86.
52 Ibid., p. 44.
53 Cf. ibid., p. 83.
54 Cf. ibid., p. 62.
55 Cf. ibid., p. 61.
56 Ibid., p. 77.
57 Miguel de Unamuno, "Do Sentimento Trágico da Vida", Coimbra, Quarteto Editora, 2001, p. 11.
58 Daniel Faria, "Poesia", p. 98.
59 Verso de "Dos Líquidos". Cf. ibid., p. 271.
60 Ibid., p. 78.
61 Sobre a morte de Daniel Faria: «“Foi uma das experiências mais dolorosas da minha vida”, recorda o Padre Nuno, capelão do hospital, “desde que o Daniel me entrou por ali que eu não estava tranquilo, fui-o visitando durante a tarde. E quando vou, mais uma vez, vi aquele reboliço. Ele tinha acabado de entrar em coma, e estavam a descer com ele para uma nova TAC. Dei-lhe a extrema-unção a correr, corredor fora. E depois foi uma espera terrível, durante a cirurgia.” Demorou seis horas, a operação, sem que os médicos conseguissem estancar a hemorragia que entretanto avançara. Segundo Celeste Dias, a médica responsável pela unidade de cuidados intensivos, a segunda TAC revelou um edema, um coágulo de sangue no cérebro. A cirurgia seria para o retirar, mas o nível de plaquetas estava tão baixo – “nunca soubemos se por um problema que o Daniel já tivesse, ou se devido ao próprio traumatismo craniano” – que se formava sempre um novo coágulo. Ainda houve segunda intervenção, o coma manteve-se e, ao fim de seis dias, a 9 de Junho, foi decretada a morte cerebral.» Alexandra Lucas Coelho, «Daniel Faria: o rapaz raro», p. 10.
62 Fernando Pessoa, «Mário de Sá-Carneiro», in Athena, VOL. I, novembro de 1924, N.º 2, pp. 41.
63 Verso de "Dos Líquidos". Cf. ibid., p. 337.
64 Ibid., p. 79.
65 Ibid., p. 38.

 

José Rui Teixeira
Diretor da Cátedra Poesia e Transcendência, Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, membro do Secretariado da Pastoral da Cultura da diocese do Porto
Conferência pronunciada no VI Congreso Internacional de Literatura, Estética y Teología: El amado en el aman-te: Figuras, textos y estilos del amor hecho historia, promovido pela Asociación Latinoamericana de Literatura y Teología; Pontificia Universidad Católica Argentina, Buenos Aires, 17-19 de maio de 2016
Publicado em 20.05.2016 | Atualizado em 15.04.2023

 

 
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Quando inicia os seus estudos teológicos, Daniel Faria tem já uma cultura verdadeiramente diferenciada: os livros que lia, a música que ouvia, o interesse que revelava pelo teatro ou pelas artes plásticas, as conversas em que se demorava. Estávamos diante de alguém diferente, um «rapaz raro»
Ali estava o Daniel, em cada poema, numa espécie de processo de transfiguração, a exercitar a levitação: «Sei bem que não mereço um dia entrar no céu/ Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra»
Daniel Faria é um poeta crescentemente místico nos seus três últimos livros, que constituem claramente o seu corpus poético, já distantes da juvenília com que ensaiou a sua voz e universo poéticos. Nesses três livros não se limitou a escrever sobre aquilo que sabia, mas, mais profundamente, sobre aquilo que não sabia ainda
Estou convencido de que toda a poesia tem um grau de cravação: a intensidade com que se imprime contra a página. E creio que a poesia de Daniel Faria tem um índice de cravação muito baixo, quase uma marca de água. É uma poesia que tende a levitar, uma poesia etérea, como se buscasse desprender-se da página
O leitor é cuidadosamente conduzido para uma experiência mística, para uma espécie de vidência em que a realidade é focada no limite sensível da fronteira entre o visível e o invisível, sem nunca descurar o rigor sintático e semântico que a matéria viva das palavras exige
Entre a terra e o céu, «um pouco acima do chão», «ligeiramente acima do que morre», «um pouco no interior do que arde». Este é o espaço em que o poeta se move, «nos arredores do verbo», num «degrau invisível sobre a terra», entre a imanência e a transcendência, entre a consciência de que o homem é uma caverna e o lamento enlevado
Daniel Faria colecionava pedras (29), semantema recorrente em "Explicação das Árvores e de Outros Animais", onde aparece inscrito 12 vezes. As pedras conferiam-lhe simbolicamente peso, gravidade, e contrariavam a levitação; fincavam-no à terra, à vida; representavam os amigos
Diria que, na poesia de Daniel Faria, podemos identificar as duas ações: a de apagar a luz exterior e a de acender a luz interior. Assim, numa cedência ao sono abúlico, o poeta murmura: «Não deixes a candeia acesa/ Dorme: basta-me essa luz». E depois, nesse outro espaço de interioridade, alumia-se: «Se acender a luz/ Não morrerei sozinho»
A sua poesia adquire um tempo próprio, que prescinde do sentido de eterno retorno sem, por isso, assentir com uma linearidade cronológica. É um tempo sobreposto, suspenso, concêntrico, mais denso e menos volumoso à medida que passa: «E no tempo repetido acharei uma saída/ Uma manhã depois de uma manhã»
A aura hierática que envolvia a figura de Daniel Faria, a sua experiência espiritual e muitos dos seus poemas, pode aparentar uma área de conforto que verdadeiramente não existia. Ainda que eventualmente o confortasse, a sua vida espiritual era agónica, traduzia uma intensa luta interior, entre a consciência de promessa não cumprida e a espera exasperadamente prolongada
«Um modo de te amar antes do tempo» é a expressão da saudade de Deus que veementemente incendiou o seu coração de homem, o coração interior que nas árvores não buscou o lenitivo das raízes, mas a «incomparável paciência de procurar o alto»
Em "Explicação das Árvores e de Outros Animais" entrecruzam-se a solidão infinita de ocupar um lugar a recusa a escrever a sua casa sobre a terra e a consciência de que não terá saudades deste mundo. Daniel Faria é um poeta desterritorializado, desapegado do corpo material (assentindo com a redundância), soletrando o nome que «parece a infância» e consciente de que «Para dentro/ Do nome se esvazia o corpo»
Recordo as palavras de Unamuno, quando escrevia sobre Espinosa, em "Do Sentimento Trágico da Vida": «Do mesmo modo que aos outros lhes dói uma mão, ou um pé, ou o coração, ou a cabeça, a Espinosa doía-lhe Deus.» De um modo diferente, nos rudimentos de outras literacias, também a Daniel Faria lhe doía Deus
Em 2003, insisti e mediei a publicação da sua obra poética nas Quasi Edições: em maio é reeditado "Dos Líquidos" e, em novembro, são reunidos num só volume todos os seus poemas editados entre 1991 e 2000, e alguns inéditos. A sua poesia, que só enganadoramente parece caber num volume de cerca de 400 páginas, torna-se uma referência incontornável na história da Literatura portuguesa
Daniel Faria nasceu num Sábado Santo, à hora da Vigília Pascal, quando já se cantavam aleluias. A sua primeira manhã no mundo foi um Domingo de Páscoa. E se o seu ofício foi um projeto de morrer, foi apenas porque sabia que só ao extinguir-se diria «Tudo/ O que podia ser dito/ Sobre a luz.»
Terminei hoje a releitura de "Dos Líquidos". Aí, Daniel Faria acelera, num último fôlego, prime a planta do pé de apoio sobre as últimas intertextualidades (interstícios bíblicos e o rumor de vozes como as de João da Cruz e Teresa de Lisieux), alavanca o salto e projeta o corpo: a matéria viva das palavras funde-se com a luz e silencia-se. E a sua poesia permanece como uma caixa-de-ressonância para o silêncio
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