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Cinema: “Se as montanhas se afastam”

Imagem Póster (det.) | D.R.

Cinema: “Se as montanhas se afastam”

Fenyang, China, 1999: uma dança em grupo para chegar ao novo milénio. Um triângulo emocional que se separa da juventude. Tao (Zhao Tao) é cortejada por dois amigos de infância, Zhang (Zhang Yi) e Liangzi (Liang Jun Dong). O primeiro, destinado a um futuro de riqueza, é o clássico “yuppie”, descarado e seguro de si, o segundo, taciturno e reflexivo, trabalha numa mina de carvão. A escolha da rapariga, dolorosa, determinará o futuro de todos, incluindo o do seu filho vindouro, Dollar.

O filme de Jia Zhangke é uma epopeia grandiloquente, um “Era uma vez na China” de raro poder emotivo, um melodrama pop a espaços irresistível. O arranque é estranho, com o formato do ecrã a 1.33, no qual, “apertando-se” como num quadro incapaz de recolher todo o poder da memória, o grupo de amigos dança embalado pelas notas de “Go West”.

Mas o alcance total da obra de Jia compreende-se definitivamente menos de uma hora depois: quando o trio se divide e um desvanecimento em negro introduz (novamente) o filme. O ecrã alarga-se a 1.85, estamos em 2014.

Liangzi tinha feito as malas e partido. Agora também é pai, mas um tumor nos pulmões obriga-o a abandonar a nova mineradora e a regressar, com mulher e filhos às origens. Não há dinheiro para o tratamento, a única esperança é tentar pedir um empréstimo a algum amigo do passado…

Ao regressar a Fenyang, descobre que Tao se divorciou de Zhang e trabalha numa bomba de combustível, enquanto o ex-marido vive em Xangai, é riquíssimo e refez a vida com outra mulher. E o pequeno Dollar está com ele, porque o dinheiro pode tudo, inclusive em termos de custódia exclusiva.

Será a morte do pai de Tao a oferecer-lhe alguns dias da maternidade perdida, o tempo necessário para compreender, se tal fosse preciso, que aquela criança não foi nem nunca será sua.

Esta é a fase talvez mais dolorosa e que melhor descreve todo o sentido do trabalho do realizador, que reporta o espetador ao momento da divisão, quando Tao se deixou seduzir pela escolha mais “simples”. Que com o passar dos anos a levou a ficar só.

O realizador, também aqui, confia aos detalhes (o convite para o casamento que ficou na velha casa de Liangzi) e à banda sonora (o sucesso “Take care” da estrela pop Sally Yeh, de Hong Kong) o apoio visivo e emotivo através do qual percorre o longo caminho de uma história que, além da inexorável passagem do tempo, reflete sobre a justaposição entre a solidão e a caducidade das nossas certezas. Das nossas raízes.

Melbourne, Austrália, 2025: Dollar cresceu. O horizonte visual da obra de Jia adequa-se ao ecrã, que passa a 2.39, uma panorâmica de beleza sufocante, quase que a dizer-nos que a inadequação do rapaz – entediado pelo colégio e incapaz de dialogar com o pai (que nunca aprendeu inglês) – é a mesma do cineasta no ter de “enjaular” um tempo outro, longínquo (mas não exageradamente distante), concebível, sim, mas não através daquela “moldura”.

E aqui uma reflexão, além daquela sobre o passado, presente e futuro das imagens, sobre a liberdade, que Zhang define assim: «A liberdade é uma treta. Na China era proibido ter armas. Aqui, na Austrália, mudaram a lei, e comprei muitas. Mas não tenho ninguém para quem disparar».

Eis, então, a liberdade: aquela que levou o homem a afastar-se de tudo em nome de um Eldorado feito de enormes vidros com vista para o oceano, com tudo à volta do nada. O mesmo que agita a inquietude do jovem Dollar, primeiro exibindo-se a toda a turma por não ter uma mãe, depois, desesperadamente necessitado de uma mão, a da professora que tenta voltar a despertar a memória dos filhos da China que, porém, de chinês só têm os contornos. “Nome”, “apelido”, e daqui tentar voltar a uma memória. Um sabor, um cheiro, uma melodia: “Take care”, Sally Yeh.

«Num quarto de século, entre uma China em profunda mutação e a Austrália como a promessa de uma vida melhor, encontram-se as esperanças, os amores e as desilusões das personagens face ao seu destino», lê-se no resumo do filme.

Um molho de chaves ao pescoço para tentar reabrir fechaduras de um tempo desaparecido, que partiu, como as montanhas que não voltarão. Chegar agora até elas seria forçado (a mesma artificialidade que leva Jia a mostrar-nos um beijo fugaz e uma noite de paixão entre Dollar e a professora, bem mais velha), voltar a saborear-lhes a atmosfera é difícil, reevocar-lhes o nome é um dever. Porque lá está Tao, a neve, o rio Amarelo. E a recordação de uma dança que prometia grandes coisas. Imperdível.

 




 

Valerio Sammarco
In "Cinematografo"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 15.09.2016

 

Título: Se as montanhas se afastam
Realização: Jia Zhangke
Interpretação: Zhao Tao, Jing Dong Liang, Dong Zijian, Sylvia Chang
Género: Drama
País / Ano: China / 2015
Duração: 126 min.
Classificação etária: M/12
Estreia em Portugal: 15.9.2016

 

 
Imagem Póster | D.R.
Num quarto de século, entre uma China em profunda mutação e a Austrália como a promessa de uma vida melhor, encontram-se as esperanças, os amores e as desilusões das personagens face ao seu destino
Um molho de chaves ao pescoço para tentar reabrir fechaduras de um tempo desaparecido, que partiu, como as montanhas que não voltarão
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