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S. João XXIII e o encontro com Deus

«No momento de me apresentar ao Senhor Uno e Trino, que me criou, me redimiu, me quer seu sacerdote e bispo, me cumulou de graças sem fim, confio a minha pobre alma à sua misericórdia; peço-lhe humildemente perdão dos meus pecados e das minhas deficiências; ofereço-lhe aquele pouco de bem que, com a sua ajuda, consegui fazer, embora imperfeito e mesquinho, para sua glória, ao serviço da Sta. Igreja, para edificação dos meus irmãos, suplicando-lhe enfim que me acolha, como Pai bom e piedoso, com os seus santos na bem-aventurada eternidade.

Quero professar ainda uma vez mais a minha fé cristã e católica, e a minha pertença e sujeição à Santa Igreja Apostólica e Romana, e a minha perfeita devoção e obediência ao seu Chefe Augusto, o Sumo Pontífice, que tive a grande honra de representar durante longos anos nas várias regiões do Oriente e do Ocidente, que, por fim, me quis em Veneza como Cardeal e Patriarca, e que sempre segui com afeição sincera, fora e acima de qualquer dignidade conferida.

O sentimento da minha pobreza e do meu nada sempre me fizeram boa companhia, mantendo-me humilde e calmo, e concedendo-me a alegria de me empenhar com o meu melhor no exercício continuado de obediência e de caridade pelas almas e pelos interesses do Reino de Jesus, meu Senhor e meu tudo. A Ele toda a glória; para mim e por meu mérito a sua misericórdia.

O meu mérito é a misericórdia do Senhor. Senhor, Tu conheces todas as coisas, Tu sabes que te amo. Isto me basta. Peço perdão àqueles que inconscientemente houver ofendido e a todos a quem não tiver edificado. Sinto que não tenho nada a perdoar a quem quer que seja, porque quantos me conheceram e contactaram comigo – mesmo que me tiverem ofendido ou desprezado ou desestimado, aliás justamente, ou me tivessem dado motivo de afeição – reconheço-os unicamente como irmãos ou benfeitores, a quem estou grato e para quem oro e orarei sempre.

Nascido pobre, mas de honrada e humilde gente, estou particularmente contente por morrer pobre, tendo distribuído segundo as várias exigências e circunstâncias da minha vida simples e modesta, ao serviço dos pobres e da Santa Igreja que me alimentou, tudo o que me veio às mãos – aliás, numa medida bastante limitada –, durante os anos do meu sacerdócio e do meu episcopado. Por vezes, assaz frequentemente, aparências de riqueza velaram escondidos espinhos de aflitiva pobreza e impediram-me de dar sempre com a largueza que teria querido. Agradeço a Deus esta graça da pobreza de que fiz voto na minha juventude, pobreza de espírito, como padre do S. Coração, e pobreza real; e que me segurou a nunca pedir nada, nem lugares nem dinheiro nem favores; nunca, nem para mim nem para os meus parentes ou amigos.

À minha dileta família de sangue – de quem, aliás, não recebi nenhuma riqueza material – não posso deixar senão uma grande e especialíssima bênção, com o convite a que mantenha aquele temor de Deus, que sempre ma tornou tão querida e amada, embora simples e modesta, sem nunca me envergonhar dela; é esse o seu título de nobreza. Às vezes, também a socorri nas suas necessidades mais graves, como pobre com os pobres, mas sem tirá-la da sua pobreza honrada e contente. Rezo e peço sempre pela sua prosperidade, feliz como estou por também constatar nos novos e vigorosos rebentos a firmeza e a fidelidade à tradição religiosa dos pais, que será sempre a sua fortuna. O meu mais fervoroso augúrio é que nenhum dos meus parentes e próximos falte à alegria da reunião eterna final.

Despeço-me partindo, como confio, pelos caminhos do Céu; despeço-me, agradeço e abençoo os muitos e muitos que a minha família espiritual em Bérgamo, em Roma, no Oriente, em França e em Veneza foi abrangendo e que foram meus concidadãos, benfeitores, colegas, alunos, colaboradores, amigos e conhecidos, sacerdotes e leigos, religiosos e irmãs, e de quem, por disposição da Providência, fui, embora indigno, irmão, pai ou pastor. A bondade de que a minha pobre pessoa foi objeto da parte de quantos encontrei no meu caminho tornou serena a minha vida. Diante da morte, lembro-me bem de todos e de cada um daqueles que me precederam na última passagem, daqueles que me sobreviverão e daqueles que me seguirão. Peçam a Deus por mim. Dar-lhes-ei a retribuição a partir do Purgatório ou do Paraíso, onde espero ser acolhido, ainda que, repito-o, não por meus méritos, mas pela misericórdia do meu Senhor. Recordo todos e pedirei por todos.

Mas os meus filhos de Veneza: os últimos que o Senhor pôs em torno de mim, para extrema consolação e alegria da minha vida sacerdotal, quero nomeá-los aqui particularmente como sinal de admiração, de reconhecimento, de ternura toda singular. Abraço-os em espírito a todos, todos, do clero e do laicado, sem distinção como sem distinção os amei, pertencentes a uma mesma família, objeto de uma mesma solicitude e amabilidade paterna e sacerdotal. Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para serem um só, como Nós somos! (Jo 17,11).

Na hora do adeus ou, melhor, do até à vista, ainda relembro a tudo o que na vida mais vale: Jesus Cristo bendito; a Santa Igreja, o seu Evangelho e, no Evangelho, sobretudo o Pater Noster, no espírito e no coração de Jesus e do Evangelho, a verdade e a bondade, a bondade mansa e benigna, operosa e obediente, invicta e vitoriosa.

Meus filhos: adeus. Meus irmãos, até à vista. Em nome do Pai, do Filhinho, do Espírito Santo. Em nome de Jesus nosso amor; de Maria nossa e sua dulcíssima mãe; de S. José meu primeiro e predileto protetor. Em nome de S. João Batista, S. Pedro e de S. ourenço Justiniano e de S. Pio X. Assim seja.» (1)

 

«O pensamento da morte não me perturba [...]. A minha saúde é ainda excelente e robusta; mas não devo confiar; quero manter-me alerta disponível para o que quer que seja, mesmo uma chamada imprevista [...]. Penso que o Senhor Jesus me reserva alguma grande prova, para minha completa mortificação e purificação, para admitir-me na sua alegria perene. Temo a debilidade da minha capacidade de suportar e peço-lhe que me ajude, porque tenho pouca confiança em mim mesmo; mas tenho-a completa no Senhor Jesus.

As portas do Paraíso são duas: inocência e penitência. Quem pode pretender, pobre homem frágil, que encontra escancarada a primeira? A segunda também e seguríssima. Jesus passou por aquela, com a cruz às costas, em expiação dos nossos pecados, e convida-nos a segui-lo [Jo 21,22]. Mas segui-lo significa fazer penitência, deixar-se flagelar um pouco a partir de si mesmo.

Meu Jesus. As minhas circunstâncias permitem-me uma vida de mortificação entre muitas consolações que o meu ministério episcopal me traz. Acolho-as de bom grado. Às vezes, fazem sofrer um pouco o meu amor-próprio; mas sofrendo também as saboreio e repito-o diante de Deus; Que bom para mim se for humilhado! [cf. Sl 119,71].» (2)

 

«Quando, em 18 de outubro de 1958, os cardeais da Santa Igreja Romana me designaram para a suprema responsabilidade do governo da grei universal de Cristo Jesus, aos 77 anos de idade, difundiu-se a convicção de que eu seria um Papa de transição provisória. Ao contrário, eis-me já nas vésperas do IV ano de pontificado e na visão de um robusto programa a realizar perante o mundo inteiro que observa e espera. Estou como São Martinho: não temia morrer, mas não recusava viver. [...] Por isso, este meu retiro pretende conseguir e marcar um progresso no estudo da minha santificação pessoal: não só como cristão, sacerdote e bispo, mas também como Papa, como bom pai de todos os cristãos, como bom pastor [Jo 10], tal como o Senhor me quis, não obstante a minha pequenez e indignidade. [...]

Assim, e cada vez mais: a vida que me resta viver aqui deve ser revigorada: aos pés da cruz de Jesus crucificado, regada pelo seu preciosíssimo Sangue, e pelas lágrimas amarguíssimas da Senhora das Dores, mãe de Jesus e minha mãe.

Este impulso interior que, nestes dias, me surpreendeu sinto-o no coração como uma palpitação e um espírito novo, uma voz que me infunde generosidade e grande fervor, que gosto de exprimir em três manifestações características:

1) desapego total de todas as coisas e tão perfeita indiferença que subestime os louvores, e por tudo o que se encontra e que poderia acontecer de grave no mundo a meu respeito.

2) diante do Senhor, eu sou pecador e pó; vivo pela misericórdia de Jesus, a quem tudo devo, e da qual tudo espero; a Ele me submeto, até me deixar transformar todo pelas suas dores e pelos seus sofrimentos em pleníssimo abandono de absoluta obediência e de conformidade à sua vontade. Agora mais que nunca, e enquanto viver, e em todas as coisas, obediência e paz.

3) disposição completa para viver e morrer como São Pedro e como São Paulo, e tudo considerar, até mesmo correntes, sofrimentos, anátema e martírio pela Santa Igreja e por toda as almas redimidas por Cristo. Sinto a gravidade do meu compromisso e tremo ao conhecer-me débil e lábil. Mas confio em Cristo crucificado e na sua Mãe, e olho para a eternidade.» (3)

 

(1) Card. Angelo Roncalli (João XXIII)
«Testamento espiritual e as minhas últimas vontades»
Veneza, 28 de junho de 1954

(2) Card. Angelo Roncalli (João XXIII)
1957

(3) João XXIII
10-15 de agosto de 1961

In O bom papa João - Biografia de um pontífice, ed. Paulinas
20.05.14

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S. João XXIII
Foto: D.R.

 

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