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Ruy Cinatti, poeta nómada

Imagem Ruy Cinatti | D.R.

Ruy Cinatti, poeta nómada

"Entre a botânica e a literatura - A poesia de um nómada": é com estas palavras que o padre Peter Stilwell intitula um artigo de três páginas sobre Ruy Cinatti, no centenário do seu nascimento, publicado na edição de 12 de agosto do "Jornal de Letras".

Para o reitor da Universidade de S. José, em Macau, «é pelo menos inesperado que uma antiga colónia, hoje justamente orgulhosa da sua independência, dedique tanto afeto a quem foi membro da administração colonial».

«Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes, funcionário colonial, silvicultor, antropólogo e poeta, nasceu em Londres a 8 de março de 1915», recorda o professor associado da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, de que foi vice-reitor.

A morte da mãe «deixou marcas fundas», e «não é por acaso» que Cinatti «abre o seu primeiro livro de poesia, "Nós não somos deste Mundo» (1941) com um texto em prosa "À memória de minha mãe".

«A relação com o pai era bem menos pacífica. António Monteiro Gomes agradece o [primeiro] livro mas informa-o, laconicamente, que de imediato lhe deu como destino a lareira», o que se explica por lamentar «desperdiçar tempo de estudo com longas caminhadas, a envolver-se de poetas dos "Cadernos de Poesia", e a preferir o apelido da mãe nesses "devaneios literários"», recorda Peter Stilwell.

Cinatti integrou durante anos a Juventude Universitária Católica, acompanhando «o fermento cultural que atravessa o laicado católico europeu, com repercussões na arte, na literatura e na política»

Em 1942 lança a revista "Aventura", propondo associá-la «a um processo de integração espiritual» fundada no «humanismo integral», mas a publicação tem vida breve devido a «suspeitas das autoridades» e o afastamento de amigos que a financiavam.

No final da II Guerra Mundial, Cinatti, ainda sem licenciatura, é empregado como meteorologista na companhia de aviação Pan-American. Chega-lhe, então, «o convite para integrar a comitiva do capitão Óscar Ruas, recém-nomeado governador de Timor-Leste.

As paisagens, as florestas e sobretudo o povo de Timor» condicionarão o seu futuro. E escreve: «"Repare-se que eu pouco escrevi enquanto em Timor. Eu não necessitava de criar poesia porque ela existia ali à mão, oferecendo-se generosa e fácil, fonte de alegria ou consoladora de tristezas, força que moderava ímpetos violentos ou, pelo contrário, os afervorava, indefetível"».

Passará oito anos em Timor: julho 1946-dezembro 1947 (secretário e chefe de gabinete do governador), dezembro 1951-1956 (secretário da Agricultura), outubro 1958 (dirige um levantamento da arquitetura timorense), dezembro 1961-dezembro 1962 (recolhe dados para o doutoramento, em Oxford, em Antropologia Cultural, e no verão de 1966, em busca de elementos complementares.

«Os primeiros 18 meses em Timor repartem-se entre trabalhos de secretaria, que o desgastam profundamente, e a alegria de percorrer florestas, descampados e montanhas em busca de amostras para a tese de licenciatura em Agronomia», publicando, no regresso a Lisboa, três livros que continuam a ser «obras de referência para o conhecimento do território».

Na estadia de 1961-62, «realiza um registo cinematográfico das práticas quotidianas, festas e rituais das populações timorenses», filme que foi tratado e arquivado pela Cinemateca Nacional.

«Nessa mesma passagem por Timor realiza pactos de sangue com dois liurais - rito que explica em parte a aceitação que Ruy Cinatti tem hoje no país», assinala Peter Stilwell, responsável pela investigação e publicação do espólio literário e científico do poeta.

Em fevereiro de 1965 visita Persépolis, no México, que reacende nele «o seu sonho dos anos 40 de uma civilização feita de respeito e amizade entre culturas»: «"O México saciou-me. Voltei quando já não tinha dinheiro"».

A experiência reflete-se em "Manhã imensa", que publicará em 1984. «Explicando nesse livro um estranho poema, refere a determinada altura: "O desejo imenso do poeta de que os homens ao morrerem entrem no Céu ou que, ainda na Terra, vivam a sua vida com Deus, com os homens e consigo próprios. Continuação da terceira fase do rito de passagem: reintegração na Graça, mantida a condição humana"».

Viaja a Angola em 1971, «e encanta-o a grandiosidade da paisagem mas, como em Timor, perante a falta de respeito que deteta pela cultura local, comenta no seu notável "Itinerário angolano": "Beleza, beleza... Não há beleza maior que a justiça!"».

«No ano seguinte, também por razões profissionais, visita S. Tomé e Príncipe e dedica-lhes, pouco depois, um livro. É tocante a sensibilidade do poema intitulado "Fé": "Capelas. A fé que ninguém tira/ entre quatro paredes. Vela acesa/ por mãos que ainda falam no/ limiar da porta - a vela acesa/ ao fundo trémula/ de tanta experiência! Quando já tudo/ for seixo, alívio, mar,/ vestígio nulo, hei de pedir (se é que não exclamo)/ a fé que vi nos gestos de uma preta/ entrando..."».

Em 1975, a invasão de Timor pela Indonésia e a morte da irmã causam em Cinatti «momentos de algum desamparo e perturbação psicológica, que transfigura em luta espiritual. De cruz ao peito e flor na lapela, prega nos bares do Cais do Sodré e distribui os seus poemas em gesto de partilha pelas ruas e cafés de Lisboa».

«Os últimos anos são tranquilos. Retoma as viagens pelo país, visita amigos no estrangeiro e por fim até planeia uma ida ao Peru para subir a Machu Pichu. Mas, em agosto de 1986, adoece gravemente, é hospitalizado e acaba por falecer a 12 de outubro», conclui Peter Stilwell.

 

Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 28.09.2015

 

 
Imagem Ruy Cinatti | D.R.
«"Repare-se que eu pouco escrevi enquanto em Timor. Eu não necessitava de criar poesia porque ela existia ali à mão, oferecendo-se generosa e fácil, fonte de alegria ou consoladora de tristezas, força que moderava ímpetos violentos ou, pelo contrário, os afervorava, indefetível"»
«Explicando um estranho poema, refere a determinada altura: "O desejo imenso do poeta de que os homens ao morrerem entrem no Céu ou que, ainda na Terra, vivam a sua vida com Deus, com os homens e consigo próprios. Continuação da terceira fase do rito de passagem: reintegração na Graça, mantida a condição humana"»
«"Capelas. A fé que ninguém tira/ entre quatro paredes. Vela acesa/ por mãos que ainda falam no/ limiar da porta - a vela acesa/ ao fundo trémula/ de tanta experiência! Quando já tudo/ for seixo, alívio, mar,/ vestígio nulo, hei de pedir (se é que não exclamo)/ a fé que vi nos gestos de uma preta/ entrando..."»
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