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Adriano Moreira

A Espuma do Tempo. Memórias do Tempo de Vésperas

As gentes e as terras portuguesas nunca tiveram, ao menos no século da minha experiência, o mesmo ritmo do tempo. Povo de muitos tempos e que, durante a longa vigência do regime corporativo, viu a multiplicidade submetida ao modelo de vida habitual, repetitiva, conservadora das especificidades, avessa às mudanças, sem rompantes inovadores vindos da sociedade civil repartida pelas pequenas pátrias que tinham nas aldeias a expressão mais sentimental, e na cidade grande, distante e mitificada, a sede do poder e das suas disputas.

Na pequena aldeia de Grijó de Macedo de Cavaleiros, onde nasci em 1922, e embora tivesse já acontecido a guerra de 1914-1918, ainda com frequência os mais velhos e informados falavam doridos do martírio das invasões francesas, que não se tinha minorado na memória das gerações.

Quando vinham para os grandes centros da orla marítima formavam uma espécie de colónias interiores, que em Lisboa exprimiam as suas identidades nas casas regionais, das quais algumas ainda subsistem com moderada intervenção.

Foi essa relação entre a aldeia e a colónia interior que manteve e fortaleceu a minha ligação a Trás-os-Montes, de onde meus pais emigraram ainda não tinha dois anos, adotando cedo a regra de me enviar a passar as férias grandes, que eram de meses, na casa dos meus avós maternos.

Durante anos não me dei conta de que realmente viajava entre Trás-os-Montes e Trás-os-Montes porque o mundo circundante era invisível, ou eventualmente agressivo.

Ainda hoje, concretamente em 11 de agosto de 2000, regressei de Mirandela, onde fui proferir algumas palavras de apreço na homenagem ali prestada ao Dr. Joaquim Trigo de Negreiros, que passou vinte anos no Governo.

Neste fim de milénio, as diferenças que marcam a evolução da província, sobretudo depois de 1974, são notáveis.

Ali, a antiga vila que não era mais do que uma rua longa e mal tratada, onde a densa poeira do verão se transformava em lama no inverno, é agora uma cidade com uma europeização visível nos trajes das raparigas e rapazes, na alteração do perfil das casas e dos arruamentos, na intensidade do tráfego, na multiplicação dos centros comerciais.

Os dramas humanos não mudaram talvez muito de natureza, a emigração vai fazendo rarear o povoamento, o envelhecimento da população é mais acentuado, mas as diferenças do ambiente das primeiras décadas do século XX a findar são profundas e definitivas.

Por então, naquelas aldeias que se alinhavam segundo um critério de distância correspondente à capacidade de ir e voltar dos trabalhos dos campos com luz do dia, a economia de subsistência era a regra.

As famílias mais abonadas tinham uma modesta leira junto ao rio, onde cultivavam as batatas, as cebolas, as couves, o milho, o meloal, algumas outras frutas, eventualmente nogueiras raras, raríssimas amendoeiras, ou um sobrevivente castanheiro do tempo em que essa árvore venerada fornecia uma parcela importante da alimentação.

Nas colinas procuravam reter uma leira onde estava a vinha que fornecia a diversidade incontável dos vinhos do lavrador, e finalmente na serra uma pequena parcela da floresta, onde se cortava a lenha que seria amontoada em sequeiro, de modo a poder ser utilizada no inverno.
As casas eram de pedra e barro, de regra sem caiamento exterior, por isso escuras e enegrecidas pelo tempo, com as varandas de madeira que alargavam a área de intervenção das mulheres.

No piso térreo guardavam-se os animais, os bois de trabalho cuja posse era sinal de alguma abundância, os burros usados para as pequenas cargas e deslocações, o porco que havia de garantir a carne necessária para o ano, todos fornecendo por acréscimo o calor interior da habitação.

No fim das ceifas, as ruas eram com frequência atapetadas com a palha do trigo e do centeio, dando um luzimento breve aos cane1hos, e para ali seriam feitos despejos que, com as chuvas, tudo haviam de transformar num estrume necessário para as terras agricultadas.

A garotada, raparigas e raparigos na linguagem do tempo, tinham ali um espaço de correrias e divertimento, e também uma fonte de doenças que viriam a traduzir-se na avultada mortalidade infantil, sobretudo no inverno, e que as crenças de conforto chamavam a Colheita do Senhor, dando às famílias a certeza e a consolação de que os meninos tinham partido de anjinhos, sem pecado.

As memórias da visita pastoral que Frei Bartolomeu dos Mártires por ali andou a fazer, no século XVI, podiam ser usadas para retratar muita da vida corrente da sociedade civil do começo do século XX.

Longe do poder central pelas dificuldades de acesso e pelo descaso que este tinha pelas interioridades, as autoridades da Monarquia absoluta tinham sido substituídas pelo caciquismo liberal, que depois remodelou a imagem para o regime republicano, mas sem mudar a hierarquia social que se mantinha estável para além das alterações formais dos regimes políticos.

Uma pequena nobreza não coroada espraiava-se pelas chamadas casas grandes das aldeias, desfrutando de uma qualidade de vida modesta e de alguma ocasional reverência que derivava da solidariedade dispensada à comunidade, e do eventual respeito por um valor essencial transmontano que é o da democracia da sociedade civil.

Durou até ao último quartel do século o facto de ser nas interioridades que os vocacionados para o exercício da política vinham recolher as designações obtidas pelo método de fazer funcionar os mecanismos tradicionais de representação, os quais eram parentes longínquos dos mecanismos democráticos, aparecendo depois nas sedes do centralismo governativo, conforme as épocas, com a bandeira legitimista, com a bandeira liberal, com a bandeira da democracia representativa.

Os afazeres e práticas desse centralismo estrutural estavam ausentes das preocupações daquelas comunidades isoladas pelas montanhas, pela falta de acessos fáceis, pela praticamente inexistência de meios de comunicação social.

Ajudaria algum benefício comunitário que os íntimos do poder alcançavam para as terras, a emigração para os grandes centros informava-se de onde encontrar nos destinos os notáveis que os pudessem socorrer, e que não lhes recusariam a solidariedade da origem. Quanto aos benefícios, qualquer atenção parecia uma benesse inesperada para terras onde não existia saneamento básico, nem água nas casas, nem eletricidade, nem rede escolar suficiente que atendesse às necessidades sentidas ou que, coisa mais desejável em regiões adormecidas, agredisse a passividade e fomentasse as exigências.

Por isso, neste domínio da luta pela implantação do saber ler, escrever, e contar, bem mereceram o respeito e a gratidão dos povos os professores primários, em regra uma professora, da notável escola primeira republicana. Não obstante a pesadíssima taxa de analfabetismo, havia aldeias onde a ação do professor conseguia implantar a ambição de diploma. O meu avô paterno, moleiro de profissão, teve oito filhos que todos fizeram a instrução primária, e não era caso único na aldeia. E todavia as dificuldades que a escola enfrentava eram estruturais, porque derivavam em primeiro lugar da organização da economia familiar.

Não se tratava da exploração do trabalho infantil, uma realidade de que ainda não conseguimos livrar a vida portuguesa, mas da necessidade que a própria família tinha de utilizar os filhos, logo que por tradição se considerassem hábeis, na divisão do trabalho: regar a leira que ficava longe, levar ao pasto os animais domésticos, ajudar a cuidar dos irmãos mais novos, auxiliar nas colheitas, nunca do aluguel dos braços.

De resto, o valor da democracia da sociedade civil fazia com que a relação patrão-empregado não tivesse um grande significado entre gente que não se diferenciava grandemente pelos meios de fortuna.

Salvo a Casa Grande que ostentava os seus criados, uma designação suposta de prestígio social, com escassa remuneração e abrangente de pouca gente, o método do torna-jeira impedia que ganhasse predominância uma distinção baseada na referência à posse dos meios de produção.

As famílias combinavam trabalhar umas para as outras nas épocas de maior exigência de mão-de-obra, e cada jeira era paga com retomo de outra jeira, sempre que os recursos monetários escasseavam.

O tecido comunitário era reforçado por velhas práticas, designadamente o rebusco e o galelo. Depois da apanha das batatas, por exemplo, era livre o rebusco do que lá tivesse ficado, e os mais necessitados faziam-no sem embaraço porque se sentiam no exercício de um direito. Tal como acontecia depois aos galelos esquecidos nas videiras.

O trabalho não parecia ser a condenação bíblica, e as épocas das colheitas eram marcadas por manifestações de alegria comunitária só punida pelos maus anos. Havia algum paganismo sobrevivente na explosão de energia das ceifas em que se encontravam homens e mulheres na força da juventude, e, sobretudo, nas vindimas, particularmente na verdadeira festa que era a pisa das uvas nos vários lagares espalhados pela aldeia, noite dentro ao ritmo de músicas e cantares. Também quando os alambiques se multiplicavam perto da ribeira para destilar os bagaços, e as provas repetidas produziam os efeitos esperados e sabidos. Aguardentes que ao longo do ano serviam para o mata-bicho a que se atribuíam virtudes preventivas de doenças sérias, especialmente depois que a peste bubónica deixara um rasto de pesados lutos em todas as famílias.

A Igreja Católica tinha uma presença vastíssima em toda a vida comunitária, numa área que ainda guardava lembrança da presença de ordens religiosas, como era o caso da antiga residência dos jesuítas de Vilar do Monte, mas que ainda assim recebia de tempos a tempos a visita das missões, isto é, pregadores que vinham tentar avigorar ou esclarecer a fé das populações, pregando sermões difíceis de entender, tantas as citações e as admoestações, que precisavam do apoio de um Santo António para deixarem rasto na memória dos fiéis.

Foi deste modo que o meu grande amigo Padre Joaquim António de Aguiar, o Padre Aguiar do Colégio Universitário Pio XII de Lisboa, foi levado em verdes anos, da sua aldeia de Castainço, na Beira, para o seminário da ordem de Santo António Maria Claret em Espanha.

Os pregadores encantaram-se com aquele menino que tão bem ajudava à missa e, embora filho único vivo e órfão de pai, convenceram a mãe a não resistir à chamada do Senhor, e ali ficou ela só até que o rapaz se formou e sagrou, tendo-se visitado apenas uma vez em Salamanca, já começada a guerra civil de Espanha. O pai, emigrante que fora em busca de melhor vida, morrera a bordo no regresso, e ficou enterrado nas Canárias sem que o filho dele tivesse ao menos lembrança.

Estas viúvas de homens vivos eram uma realidade permanente do panorama social português, tinha-se aprofundado a partir das descobertas e conquistas, voltaria ao primeiro plano com as emigrações para o Brasil que abrandaram apenas pela década de cinquenta, para voltarem a acentuar-se com a mobilização para a guerra do Ultramar a partir de 1961, e com a emigração a salto para a Europa que também por esse tempo se tomou significativa.

Cada aldeia tem o seu patrono, a sua festa anual, e por então o seu pastor que se procurava que não acumulasse encargos de várias freguesias, uma acumulação difícil de servir bem em vista das dificuldades das comunicações.

Para atender à Missa, os homens da aldeia entravam por uma porta lateral na igreja do século XVII que tinha Santa Maria Madalena por padroeira, e ocupavam a metade superior da sala. Na outra metade, cabeça bem coberta pelos lenços negros, ficavam as mulheres, um rigor que era igual em todos os templos.

Algumas das imagens atormentavam as crianças, e ali era o caso do Nosso Senhor da Cana Verde, trágico, sucumbido, sofredor, mais a pedir ajuda do que a dar esperança, e que mais tarde um bispo advertido mandou retirar.

Mas em compensação a imagem do Menino Jesus, sempre vestido de branco impecável, e de que a minha tia Clementina era a responsável, parecia sempre disposta a juntar-se ao grupo das crianças para tomar parte nas brincadeiras, e na festa anual saía num andor que muito frequentemente incluía, como transportadores, a mim e ao meu primo Alexandre.

A festa anual da freguesia era ali dedicada ao Senhor do Calvário que se ia buscar a uma capela que então ficava fora da aldeia numa pequena colina. Quando, em 1953, ganhei o Prémio Abílio Lopes do Rego da Academia das Ciências, doei o dinheiro, a pedido da minha Mãe, para reconstruir a Capela, e o Dr. Trigo de Negreiros subsidiou parte dos trabalhos, também a solicitação dela.

As mulheres estendiam-se numa fila que ajoelhava enquanto o andor passava no seu caminho para a Igreja matriz, da qual no Domingo seguinte, sempre o primeiro de setembro, saía a procissão solene que daria volta à aldeia. O pranto das mulheres, que interiorizavam o sofrimento de Cristo que a imagem sugeria, era doloroso de escutar, e parecia mais intenso nas ocasiões excecionais em que a cerimónia se realizava para pedir a proteção divina contra sofrimentos coletivos, por exemplo implorando a chuva em épocas de seca.

Nas procissões em que ao mesmo tempo desfilavam o andor do Senhor do Calvário e o andor do Menino Jesus, não ocorria pensar que era sempre Cristo o representado, às crianças parecia-lhes mais que o Menino estava a ser obrigado a contemplar a privação iminente, e dolorosa, de alguém mais velho a quem tinha amor.

De quando em vez algum incidente fazia aparecer um certo anticlericalismo sempre presente na população, e que era mais crítico ou exigente de comportamentos, do que atitude de repúdio, porque a presença católica não tinha desafiante de outras confissões, e os agnósticos não abundavam.

O meu avô materno, o avô Valentim, que vivera no Brasil alguns anos como emigrante, e também teve oito filhos, era atento a que todos os da casa fossem pontuais à Missa. Mas ele não ia à Missa. E um dia em que, já adiantado no curso do Liceu, me atrevi a perguntar-lhe os motivos desta diferença de comportamento, respondeu-me: é que não gosto do padre. E não é lá por ter dois filhos, que ninguém tem nada com isso, é porque empresta dinheiro a juros aos pobres.

Quando apareceram as telefonias, e a Emissora Nacional passou a transmitir a Missa dominical, comprou um recetor, colocava-o na janela para que ouvisse quem quisesse, e seguia devotadamente a emissão.

Esta distância teve que a quebrar muitas vezes, porque lhe foram morrendo os filhos, a maior parte adolescentes, e no fim da vida restavam-lhe três, dois homens e a minha Mãe. Todos os outros foram, em ritmo acelerado, como também aconteceu a muitas outras famílias, morrendo de tuberculose, incluídos nas sete a dez mil pessoas que essa doença vitimava em cada ano.

De cada vez o avô Valentim entrava na igreja para velar o filho morto sem um queixume ou comentário, acompanhava depois o corpo ao cemitério, rezava com fé, e voltava à vida habitual sem recriminações nem para o céu nem para os homens.

Foi ele a primeira pessoa que vi morrer, depois do sacramento dos doentes, na sua cama bem acomodado nos travesseiros em que gostava de se recostar, os grandes bigodes brancos manchados pela nicotina dos cigarros "fortes" que fumava, o rosto sereno e belo, e nós todos doridos mas respeitosos como sempre, solidários e acompanhando as preces que a avó Olívia conduzia, submissos às leis da vida e aos mandamentos.

Recordo-me de ouvir contar de um incidente em que o protagonista foi o meu tio avô Henrique de Carvalho, que esse era emigrante regressado dos Estados Unidos, onde trabalhara duro nas estradas, e que vivia numa casa ao fundo da aldeia.

Um dia chegaram-lhe à varanda o badalar dos sinos da igreja e as queixas lacrimosas de vizinhos, porque o padre se ausentara e não vinha acompanhar o enterro de uma criança, cuja família não pagara a côngrua devida. Tomou-se de cuidados, juntou dois amigos, foi à sacristia vestir as opas e alçar a cruz, e, dirigindo-se à família, decretou: é da doutrina, não havendo padre, qualquer cristão serve. Siga o enterro.

Estas questões não afetavam a adesão do povo ao catolicismo, distinguindo as querelas que diziam eventualmente respeito às relações com o clero local, mas não com a Igreja que continuou numa posição de liderança, não obstante a política assinada pela República em 1911, ao proclamar a separação da Igreja do Estado, como sempre constara do programa anterior à queda da Monarquia.

As festas religiosas promovidas anualmente em cada freguesia, no dia do seu patrono, eram expressão de uma cultura popular arreigada, que misturava homens e bichos nos apelos à proteção divina.

Além de festas especialmente consagradas à proteção do gado, como por muitos anos aconteceu na minha aldeia, na segunda-feira seguinte aos festejos do Senhor do Calvário, havia locais onde as manifestações desse tipo eram invocadoras de um franciscanismo comovente. Por exemplo, as festas da Senhora da Assunção, em Vila Flor, tinham por centro a capela erguida no cabeço, de onde se avistava um panorama impressionante, e que era servida por uma escadaria.

As devoções e promessas incluíam subir a escada de joelhos, dar a volta à capela beijando os muros, entregar os sacos de cereais prometidos e que tinham antes sido transportados nos andores, repartindo por todos os transportadores o sacrifício do peso, e ainda levar o gado numa guizalhada pela escada acima até à porta da capela, onde algumas vezes introduziam a cabeça, como que a dar consistência às promessas dos donos. A longa pedagogia contra muitas destas manifestações de fé e gratidão não fez progressos rápidos, e muitas delas podem ainda ser vistas nos centros de espiritualidade espalhados pelo país.

A ligação com o mundo, restrita como era a circulação de jornais, dependia muito da comunicação verbal. O meu avô matemo recebia O Século com o atraso inerente à distância de Lisboa, e era uma indispensável fonte de informações para a vizinhança sobre o que se passava no país e no mundo.

Durante a Guerra Civil de Espanha, que deu inquietações às populações receosas dos refugiados armados e de alguns excessos que cometeram, tendo suportado a verdadeira campanha militar que foi desencadeada em Trás-os-Montes para os capturar e de regra entregar na fronteira, segundo a voz corrente, mantinham o avô em regime de permanente interrogatório sobre o noticiário.

O comum das gentes vivia assim contida na satisfação das necessidades pela limitação dos recursos, com uma alimentação pobre, em que o caldo de couves temperado com unto era obrigatório, em que só o centeio tinha a dignidade de ser chamado pão, que o outro chamava-se trigo, com a carne predominantemente proveniente da matança do porco, com o peixe reduzido às sardinhas de barrica, que se comiam tiradas diretamente da salmoura.

Os pequenos estabelecimentos que vendiam produtos correntes a crédito recebiam por altura das colheitas, sendo avultada, para os recursos, a despesa com as compras para as festas do padroeiro, umas calças, uma saia, uns tamancos, coisas de ver a Deus, de ir à vila, de atender as festas ou tristezas de preceito, com restrições e cuidados extremos de conservação.

Contava o meu Pai que, para ir fazer exame de instrução primária à vila, e não tendo calçado apresentável, um soldado lhe emprestou as botas, que o pai dele atafulhou de papel para que não lhe escapassem dos pés, e lá foi a passos de circo mas composto.

A moderação dos ressentimentos contra a vida dura tinha certamente apoio na prática cristã, mas a pobreza extrema raramente existia. Guerra Junqueiro deixou a rigorosa imagem dos pobres que são pobrezinhos, e que em Trás-os-Montes andavam pelos caminhos, no inverno duríssimo ou no verão da terra descrita como uma " encosta selvagem, seca, deserta, e nua à beira de uma estrada". Essas figuras trágicas chegavam às escaleiras das casas, anunciavam-se dizendo alto - Padre Nosso, Avé Maria pelas almas dos vossos mortos, e depois de rezarem nunca deixaram de receber alguma ajuda, de regra em espécie - azeite, pão, batatas, comida feita -, muito poucas vezes dinheiro, que era escasso. Mas era difícil acontecer que o necessitado fosse da terra, porque talvez um sentimento de dignidade parecia encaminhar a exibição da carência para longe da sua própria comunidade.

Esta solidariedade era manifesta nas grandes calamidades, por exemplo no incêndio com perda da casa. Não apenas todos corriam ao apelo dos sinos para extinguir o fogo, no que serviam o próprio interesse de impedir que alastrasse, mas depois combinavam as contribuições de cada família, em trabalho ou em espécies, para reconstruir a habitação e repor as reservas perdidas.

Tradições comunitárias mantinham-se com a existência de prados, carvalheiras, fomos comuns, e ainda subsistiam os Conselhos de aldeia, para além da extinção decretada pelo Código Administrativo de Marcello Caetano.

Na véspera à noite, um homem tocando ferrinhos ou cometa percorria a aldeia convocando para o Conselho do dia seguinte, e os homens compareciam no adro da igreja, onde existiam uns bancos de pedra que serviam de tribuna.

Tratava-se, eventualmente, de montar a guarda da carvalheira comum que os alheios rebanhos de cabras devastavam, ou de compor caminhos, ou de tomar viáveis atravessadouros. As decisões eram acertadas, e de novo as contribuições em trabalho ou espécie viabilizavam a execução do projeto.

De justiça popular não me recordo de ouvir contar exemplos, mas ainda se referiam discretamente casos de ajustes de contas familiares, por exemplo para vingar a morte de parente ou a honra ofendida de mulheres, sendo difícil que as autoridades encontras­sem denunciantes ou ajudas, como referi.

Naturalmente, o urbanismo incipiente, que ainda respeitava a aldeia como dimensão básica do país, hoje substituída pela vila a evoluir para cidade, tendia para adensar estilos de vida menos rústicos, e ligações mais consistentes em relação aos problemas gerais do país. Mas a característica geral era a do conservadorismo e da fidelidade à hierarquia da sociedade civil e ao poder instituído, de tal modo que a lei política poderia dizer-se ser a de que o poder se ganha e perde na cidade, e que a província segue.

Do círculo pesado da vida rural saía-se pela emigração, que ainda durante décadas se dirigia externamente para o Brasil, e internamente para a cidade grande.

Foto

Adriano Moreira entrega a João Paulo II o livro «D. Sebastião de Resende, Profeta em Moçambique». Está presente o P. Aguiar e o editor Manuel Bulhosa. Roma, 1994

Para o Brasil eram as ligações familiares que apoiavam as cartas de chamada, e por ali andou alguns anos o meu avô Valentim, e para lá enviou dois filhos homens que assim foram poupados pela tuberculose.

Para a cidade grande era fundamentalmente a prestação do serviço militar que trazia o conhecimento da vida diferente, que despertava a vontade de emigrar, estabelecendo também uma cadeia familiar de chamadas.

Foi o que aconteceu com o meu Pai que, tendo vindo prestar o serviço militar em Lisboa, se defrontou com as habituais oportunidades, entre elas a Polícia de Segurança Pública.

Por isso vim pequeno para a cidade grande, e hoje, escrevendo estas notas ao acaso da memória, depois do regresso de Mirandela, tenho a consciência de que vou ligando restos dispersos de lembranças que me ficaram de épocas diversas, sobretudo porque ia todos os anos passar as férias grandes a Grijó, o que aconteceu até terminar o curso de Direito.

 

Adriano Moreira
In A Espuma do Tempo - Memórias do Tempo de Vésperas, Ed. Almedina
21.04.09

Capa

A Espuma do Tempo
Memórias do Tempo de Vésperas

Autor
Adriano Moreira

Editora
Almedina

Páginas
544

Ano
2009

Preço
€ 30,00

ISBN
978-972-403-676-2



































































































































































































































































































































































































































 

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