Jornada «Ver para Crer? Cristanismo e Culturas Visuais»
Aproximações profanas ao sagrado
“A minha ideia foi esta: seguir ponto por ponto o “Evangelho segundo Mateus” sem extrair dele argumento, e sem reduzir. Traduzi-lo fielmente em imagens, seguindo-o sem omissão ou um acrescento. Até mesmo os diálogos deviam ser rigorosamente os de S. Mateus, sem qualquer frase de explicação ou ligação: porque nenhuma imagem nem nenhuma palavra inserida poderão jamais estar à altura poética do texto.
É esta altura poética que tão ansiosamente me inspira. E é uma obra de poesia que quis fazer. Não uma obra religiosa, no sentido comum da palavra, nem de algum modo uma obra ideológica. Em palavras simples: u não acredito que Cristo seja filho de Deus, porque não sou crente – pelo menos conscientemente. Mas acredito que Cristo seja divino: isto é, creio que nele a humanidade é uma coisa tão elevada, tão rigorosa e ideal que ultrapassa os termos comuns da humanidade. Por isso, falo em ‘poesia’: instrumento irracional para exprimir este meu sentimento irracional por Cristo. (...)
Aquilo que me impressionou foi a implacabilidade, o rigor absoluto, a ausência de qualquer espécie de concessões, o estar sempre presente em si próprio duma maneira obsessiva, obcecante, com um rigor perfeitamente louco, que a figura de Cristo possui no Evangelho segundo São Mateus. Ou seja, a chave deste filme é a frase de Cristo: ‘Não vim para trazer a paz, mas a espada...’” (in Pasolini, Ciclo anos 60, Cinemateca Portuguesa, 1985).
Foi com esta perspectiva que Pier Paolo Pasolini realizou em 1964 «O Evangelho segundo Mateus», que para a professora de Cinema Inês Gil “é, sem dúvida, uma obra que tem um lugar privilegiado na história do cinema”.
A análise ao filme e as questões colocadas pelas aproximações profanas ao sagrado cristão estiveram no centro das conferências que Inês Gil e o P. José Tolentino Mendonça apresentaram às mais de 150 pessoas presentes na Jornada «Ver para Crer? Cristianismo e Culturais Visuais», realizada a 27 de Novembro, em Lisboa.
Para a docente da Universidade Lusófona, “a leitura poética do texto evangélico” revela “o mundo interior” e as emoções das personagens, embora as respeite, não as convertendo num “espectáculo”, ao contrário de «A Paixão de Cristo», realizada por Mel Gibson.
Inês Gil considerou que o filme de Pasolini “reactualizou a figura de Cristo” e mostrou a possibilidade da “existência do sagrado na realidade”.
“É uma obra que está sempre longe do espectador e nunca desvendará o seu mistério”, concluiu.
O Pe. José Tolentino Mendonça assinalou que o cineasta italiano assumiu uma perspectiva que hoje continua válida “para a arte e para a Teologia”: “Uma história de Jesus, hoje, não pode acontecer por reconstrução mas apenas por analogia”, pelo que é necessário “um esforço de transposição”.
Durante a sua intervenção, o poeta madeirense reflectiu sobre os cruzamentos entre a narrativa sagrada e a sua representação por autores ou obras consideradas profanas.
De acordo com o biblista, a Teologia continua a interrogar-se sobre os modos de contar Jesus: “Como narrar o sagrado? Seguindo o sagrado ou o profano? O que é que significa uma maior indagação da verdade?”
O professor da Faculdade de Teologia recordou que as ligações entre a cultura e a narrativa da vida de Jesus foram inauguradas com os Evangelhos.
Os textos bíblicos atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João manifestam, através das suas diferenças, que a arte de contar converteu-se num protagonista da narrativa, o que não implica que o programa literário se tenha sobreposto às intenções teológicas dos autores.
Os Evangelhos – bem como a obra de Pasolini ou os quadros de Rouault – revelam “um magma do registo sacro com o profaníssimo”. “É como se o nosso olhar se lavasse e pudéssemos reencontrar o rosto de Jesus”, observou o poeta.
A Jornada «Ver para Crer? Cristianismo e Culturas Visuais» foi uma iniciativa promovida pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, em parceria com o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.
rm
Agência Ecclesia / SNPC
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02.12.09
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