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Passos & Passagens da "Via Crucis" de Kcho

Vivem a cruz dentro da carne
e não têm mais necessidade de ostentá-la!

«Religião é amar além de nós mesmos. A obra de arte é a imagem perfeita de um tal amor além de si mesmo» (Nietzsche). Este aforisma do filósofo alemão poderia sintetizar a arte do pintor cubano Alexis Leiva Machado (conhecido por Kcho). É uma interpretação possível da Via Crucis de Kcho para quem está do outro lado da margem. A exposição encontra-se em exibição no Palazzo della Cancelleria em Roma. É uma exibição com estreia mundial acolhida pela Santa Sé. Nascido em 1970, em Cuba, Kcho conta já com diversas exposições em todo o mundo. A mostra procura ser um tributo a todos os humanos que naufragam no mar, de Cuba a Lampedusa. Luciano Caprile, curador da exposição, interpreta do seguinte modo o complexo da obra: “Aqueles que abandonam a sua terra e saem em embarcações para tentar uma sorte melhor noutro lugar carregam aos ombros uma oprimente cruz de penas, tristezas, de privações, de humilhações”. Tudo menos uma metafísica estética da dor!

Kcho transporta para os seus quadros o mundo da vida captável na experiência própria da realidade, de figuras, de comoções e sentimentos, de desejos e aberturas de sentido, de medos e esperanças, de objetos e paisagens, de cores intensíssimas e formas sobrepostas da realidade. Os rostos não são nitidamente visíveis mas a forma corporis está lá como condicionamento inultrapassável do drama visível das pessoas. O Mar é o grande protagonista da narrativa. É a condição de possibilidade de existência dos humanos, do seu êxodo da escravidão, desde sempre fonte de mitos originários e histórias da humanidade. As telas de Kcho tornam presente a dramaticidade da história das nossas relações quotidianas. Não são um mero simbolismo representacional ou estetizante de uma arte pela arte, literatura pela literatura, pintura pela pintura, religião pela religião...

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Esta neutralidade da não-intencionalidade da consciência ética da sensibilidade estética é hoje quase impossível. Só possível na mente de uma elite gnóstica, fora do drama do mundo, para quem a salvação é um propósito para uma minoria. O grande pecado, talvez o mais originário, é não querer ver as diversas formas do mal que subsiste no ser-aí do mundo Tudo menos mal banal! Mas ninguém se salva sem a justiça do rosto disforme ou desfigurado da alteridade! É esse o grito da Via Crucis de Kcho. O grito silencioso daqueles e daquelas que “vivem a cruz dentro da carne e não têm mais necessidade de ostentá-la. Assim se renova dia- após-dia a subida ao calvário de tantas pessoas que confiam à última esperança o sentido da sua pobre vida” (Luciano Caprile).

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Esta Via Crucis é uma suspensão crítica constrangedora. O símbolo se é símbolo “dá que pensar” declarava Paul Ricoeur no conflito hodierno das interpretações. O símbolo se é símbolo é presença amante; é reunificação das margens, dos humanos de um e do outro lado da margem. É corpo partido para ser dado! É preocupante uma certa retórica que lamentosa de uma arte que já não fala de Deus, do divino, da fé, ou dos ritos e mitos fundativos, da religião. Mas será verdadeiramente assim? Esta Via Crucis de Kcho é uma hermenêutica profunda da compreensão do horizonte da vida no evento do drama turbulento. O debate sobre figuração/representação, analogia/simbolismo, realidade/metáfora impõe urgentemente uma clareza conceptual. Talvez seja mais cómodo e audível intelectual e pastoralmente falar de relativismo, de afasia artística, de desvalorização do sentimento religioso e das suas figurações por parte da cultura contemporânea… Mas isso acontece quando somos incapazes de sair do nosso mundo de aspirações e conceções ‘próprias demasiadamente próprias’, do nosso condomínio cultural e religioso, ao ponto de reduzir tudo a um amor intelletualis Dei (Espinosa) que nos impede de olhar o mundo com alguma sim-patia e em-patia.

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A arte de Kcho é uma hermenêutica compreensiva e interpretativa que tem em conta a autenticidade do humano, a seriedade da procura, seja na sua raiz conceptual seja na sua vertente figurativa. Kcho com esta sua maravilhosa exposição rompe com dois clichés: o cliché de um pietismo que busca a repetição exata dos modelos antigos e o cliché de uma certa arte contemporânea estetizante, sem compromisso, sem vontade nem desejo de futuro. O artista interpreta o drama da existência de tantos homens e mulheres através da travessia do mar, de passos e passagens profundamente significativos, bem presente na matéria que se transfigura em sacramento de salvação (os remos dos barcos transformados em cruz que muito subtilmente aparece em quase todos os quadros). Os elementos associados ao mar são a matéria sacramental da aventura de milhares de pessoas que arriscam a sua existência na procura de um futuro diverso. É a vontade de sonhar uma u-topia (lugar) diferente de acolhimento sem interstícios de quem se encontra do outro lado da margem. Essa visão do sonho é mobilização do humano a uma existência diferente. Uma Via Crucis in via maris a lembrar o belíssimo documentário de Gonçalo Tocha A Mãe e o Mar.

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A Via Crucis de Cristo ganha pendor universal e condivisível se intrínseca à condição humana. Não a partir de uma retórica do triunfo, de palavras dogmatizadas em formulações internamente coerentes, mas a partir da condivisão do drama com todos os humanos. Da kenose, precisamente, que é uma estética da incarnação, ou escato-estética profética do tempo. Esta Via Crucis poderia ser sintetizada na feliz expressão “teologia dos três dias” do teólogo suíço Hans Urs von Balthasar. A universalidade do cristianismo e da sua proposta de salvação para os humanos ou toca a existência ou torna-se irrelevante. O último grito de Cristo na cruz é a expressão de que a morte não silencia a voz de Deus, que continua a suscitar uma justiça dos afetos divinos como a condição de toda a justa afeição humana. É a desvinculação desta intrínseca relação que provoca a vontade de poder como vontade de domínio sobre os outros ou do exercício piedoso da caritas dei sem Deus e sem humano!

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Esta Via Crucis é a expressão fortíssima da ‘justiça dos afetos’. Uma justiça que apela, suscita e emociona para uma ação justa, de compaixão atuante, responsorial ao mandamento urgente de amor ao próximo. “Vendo a multidão, Jesus sentiu compaixão por eles”. Sentir compaixão não é um sentimentalismo romântico de inação; é um estar predisposto a atuar, a sentir-com, a sentir os mesmos sentimentos do outro. Não é este o apelo do navegante apóstolo Paulo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo”? A Via Crucis de Kcho é uma “agitação do pensamento” (Martha Nussbaum) que não sublima o drama num espiritualismo estéril do corpo mas que compromete o olhar a agir, a decidir-se por, a incarnar na carne-outra, a ver do outro lado da margem, e olhando, a hospedar os que aí conseguem chegar e a suplicar pelos que ficam na passagem. Mesmo sem ver o rosto os traços do humano apelam à hospitalidade daquele que vem da parte de Deus!

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A Via Crucis in via maris Kcho é um apelo est(é)tico a “amar além de si mesmo”, arte que agita o pensamento a decidir-se pela justiça dos afetos do humano que nos é comum. Talvez a vontade humana com a força do Espírito torna possível que esta exposição navegue por outras partes do mundo como consciência autocrítica de uma realização autêntica da justiça afetiva humano-divina. É no saldar os afetos que nos relacionam que a vida será mais forte do que a morte, aqui e depois!

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João Paulo Costa
Imagens: Kcho Estudio
© SNPC | 09.06.14

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