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Leitura: "Palavras em redor do poço - Conversas sobre a fé"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: "Palavras em redor do poço - Conversas sobre a fé"

«Refletir sobre a fé cristã no mundo de hoje, quase conversando com o leitor, tendo como pano de fundo figuras ou momentos emblemáticos do Novo Testamento», é o propósito da socióloga teóloga italiana Stella Morra no seu livro "Palavras em redor do poço - Conversas sobre a fé".

A obra, recentemente proposta pela Editorial A.O., convoca «casos paradigmáticos», como os episódios de Jesus e a samaritana, Jesus e Simão Pedro, Jesus e os discípulos de Emaús, para construir «uma narrativa sobre a fé cristã em terra estranha, os seus lugares comuns que já quase ninguém acolhe e os possíveis novos horizontes da fé inscritos nas narrativas evangélicas».

Trata-se de «“conversas” lentas, por vezes enigmáticas, como a de Jesus com a Samaritana» - que inspira o título da obra -, «mas sempre em busca de novos modos de dizer, novos olhares e novas medidas», refere o texto de apresentação.

Nascida em 1956, Stella Morra ensina na Pontifícia Universidade Gregoriana e no Pontifício Ateneu Santo Anselmo, e centra a sua investigação especialmente nas «práticas religiosas na vida quotidiana» e na «experiência eclesial como mundo vital».

 

Questões de estilo
Stella Morra
In "Palavras em redor do poço - Conversas sobre a fé"

As imagens e os personagens da Bíblia, em particular dos Evangelhos, fazem ainda parte, para muitos de nós, se não para todos, de um imaginário partilhado: Zaqueu é o que subiu a uma árvore, o jovem rico o que se foi embora triste, Judas é o traidor e Pilatos o que lavou as mãos…

Seja porque frequentamos aqueles textos, os lemos ou os escutamos na liturgia, seja porque, pelo contrário, só conservamos deles vagas memórias infantis, associamos, muitas vezes instintivamente e quase inconsideradamente, cada personagem a uma característica principal pela qual nos foi apresentado no catecismo ou numa pregação.

É um exemplo do poder dos textos que foram e são grandes códices culturais: a história dos seus efeitos recolhe e condensa também o que não é escrito no texto verdadeiro e próprio. Na história destes textos somos tocados também por aquilo que, por exemplo, nos foi ensinado pelas grandes pinturas ou pelas composições musicais que inspiraram, pelas explicações da avó e pelos contos da professora, pelo ensino moral (não raramente adaptado a um tempo e a uma cultura determinados) e pelas perguntas cultas.

É o seu poder e ao mesmo tempo o seu limite: imagens e personagens acabam por ter uma espécie de vida própria, quase «independente» da realidade material do texto. Suscitam afetos e antipatias, paixões e desacordos «fantasmáticos», que muitas vezes pouco têm a ver com aquilo que o texto e o seu autor queriam dizer. Mas é verdade também que estas estratificações de leitura conservam o rasto da fé com que estes textos foram lidos: lá se rastreiam as perguntas e as esperanças dos homens e das mulheres que perscrutaram com amor estas palavras, reconhecendo-as como palavra de Deus.

No caso da Bíblia, os exegetas – isto é, os estudiosos especialistas na matéria – convidam-nos, apesar disso, a despir o nosso imaginário: com investigações sempre mais exatas forçam-nos à materialidade do texto, à sua história, à sua linguagem, ao seu autor, provocando-nos a abandonar as cargas excessivas de sentimentalismo e invenção.

Também este sapiente convite tem, contudo, o seu contrapeso arriscado: a investigação cada vez mais técnica acaba por parcelizar a história, por lhe tirar o sabor e o gosto imediato. O risco é transformar, embora não voluntariamente, um texto nascido para alimentar num texto «só» para estudo, que pode por fim ser percebido, com razão ou sem ela, como árido e abstrato. A exatidão do texto e da sua compreensão arrisca-se a ser paga com o preço altíssimo de uma (bastante certa) estranheidade, precisamente num tempo em que as palavras e as imagens da Sagrada Escritura se vão já fazendo sempre mais raras (por isso inevitavelmente estrangeiras) no falar comum e no saber miúdo e automático que cresce connosco nos gestos da vida quotidiana.

Verifica-se assim o estranho fenómeno de um texto como a Bíblia, nascido popular (ou melhor, como coleção de textos populares) e vital (tanto, que foi regulado na leitura e na transmissão pela comunidade de crentes), se tornar, em vez disso, um texto do qual corremos o risco de ser expropriados por razões opostas: por excesso de estudo ou por ausência de estudo e excesso de peso dos fantasmas de uma história.

Certamente, a longa história da presença da Bíblia no Ocidente tem um peso real, não só para o imaginário que provocou e que está em certa medida perdendo: o «endurecimento» do texto e a expropriação que o povo católico sofreu («a Bíblia é demasiado difícil, por isso perigosa, o melhor é não a ler…»), as leituras excessivamente literais até ao fundamentalismo («as mulheres na assembleia calem-se…»), as dificuldades sobre a interpretação e sobre a quem compete realizá-la, as leituras por vezes ingénuas e um pouco "naïf", as derivas espiritualísticas, a reação a uma demasiado longa e violenta exclusão que corre o risco de exceder-se pelo oposto em leituras totalmente individuais e subjetivas, são tudo elementos não irrelevantes na posição que cada um toma diante destes textos.

E, num certo sentido, é justo que assim seja, dado que, na verdade, a Bíblia é para todos e de todos, sem contudo pertencer a ninguém: ninguém dela recebe os direitos de autor! Não é, pois, por acaso que o texto bíblico ou passagens dele foram, no curso da história (e em parte ainda o são), a bandeira e a espada de batalhas ideológicas, políticas ou culturais que, muitas vezes, pouco tinham a ver com o texto em si.

Por todos estes motivos, no início do nosso percurso parece-nos legítimo dizer que ler hoje a Bíblia é, antes de mais, uma questão de estilo. Necessita-se a mistura justa de conhecimento histórico e de competência sobre nós mesmos

O que queremos dizer é que para alguém se deixar guiar e interrogar pelas suas histórias, pelos personagens, pelas imagens e pelo perfil da relação com Deus que é proposto, é  necessário, seguramente, um pouco de conhecimento histórico e literário da Bíblia; é indispensável para não violentar as suas páginas e respeitar-lhe a estrutura fundamental, já que o texto permanece um objeto que recebemos a partir de uma história, de uma cultura e de uma (ou muitas) comunidades crentes.

Ao mesmo tempo, todavia, é necessário também um pouco de competência sobre nós, no sentido de uma certa distância do mundo vital a partir do qual lemos o texto: precisamos de conhecer a nossa interioridade, as nossas perguntas e os nossos desejos, preconceitos e pré-compreensões. Não se trata de uma questão simples: os adultos deste século (que nós somos) são um complicado condomínio interior, habitados por muitas histórias, como cada um poderia testemunhar.

Para nos podermos reapropriar do texto com uma certa consciência do que (justamente) acrescentamos de nosso, é preciso também saber alguma coisa acerca das arquiteturas vitais dos homens e mulheres nossos contemporâneos, mas não só: quando o texto nos conta, por exemplo, o caso da mulher atormentada por causa da perda de sangue que toca no manto de Jesus no meio da multidão (Marcos 5, 25-34), temos que saber alguma coisa do nosso ser homens ou mulheres, saber alguma coisa da relação com o nosso corpo saudável ou doente, mas carregar também sobre os ombros alguma reflexão sobre o modo como as mulheres e os homens do nosso tempo vivem os preconceitos acerca do corpo das mulheres, sobre qual seja o sentimento generalizado acerca da pureza ou da vergonha, e assim por diante.

Só assim poderemos elaborar um estilo de leitura que, por maioria de razão no caso da Bíblia, é pessoal, mas nunca individual: a saber, implica o meu comprometimento profundo com o texto que, no entanto, não pode deixar de ser partilhado, confrontado e repensado na permuta com outros e na escuta recíproca.

 

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Publicado em 25.02.2016

 

Título: Palavras em redor do poço - Conversas sobre a fé
Autora: Stella Morra
Editora: Editorial A.O.
Páginas: 124
Preço: 10,00 €
ISBN: 978-972-39-0792-6

 

 
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Verifica-se o estranho fenómeno de um texto como a Bíblia, nascido popular (ou melhor, como coleção de textos populares) e vital se tornar, em vez disso, um texto do qual corremos o risco de ser expropriados por razões opostas: por excesso de estudo ou por ausência de estudo e excesso de peso dos fantasmas de uma história
A Bíblia é para todos e de todos, sem contudo pertencer a ninguém: ninguém dela recebe os direitos de autor! Não é, pois, por acaso que o texto bíblico ou passagens dele foram, no curso da história (e em parte ainda o são), a bandeira e a espada de batalhas ideológicas, políticas ou culturais que, muitas vezes, pouco tinham a ver com o texto em si
Para alguém se deixar guiar e interrogar pelas suas histórias, pelos personagens, pelas imagens e pelo perfil da relação com Deus que é proposto, é necessário um pouco de conhecimento histórico e literário da Bíblia; é indispensável para não violentar as suas páginas e respeitar-lhe a estrutura fundamental, já que o texto permanece um objeto que recebemos a partir de uma história, de uma cultura e de uma (ou muitas) comunidades crentes
É necessário também um pouco de competência sobre nós, no sentido de uma certa distância do mundo vital a partir do qual lemos o texto: precisamos de conhecer a nossa interioridade, as nossas perguntas e os nossos desejos, preconceitos e pré-compreensões
Para nos podermos reapropriar do texto com uma certa consciência do que (justamente) acrescentamos de nosso, é preciso também saber alguma coisa acerca das arquiteturas vitais dos homens e mulheres nossos contemporâneos, mas não só
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