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Novo cardeal português, D. António Marto, prefacia livro "Clássicos da espiritualidade cristã"

«Os clássicos da espiritualidade cristã são repositórios de memórias de muito daquilo que, tendo no passado configurado o modo de viver de tantos irmãos nossos na fé, marcam ainda hoje o nosso modo de seguimento de Jesus Cristo. Assim, conhecê-los é também conhecermo-nos um pouco melhor.»

É com estas palavras que D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, que o papa Francisco criará cardeal a 28 de junho, se refere ao novo livro "Clássicos da espiritualidade cristã", de Alexandre Freire Duarte, recentemente lançado pela Paulinas Editora, que recolhe textos publicados na "Voz Portucalense", semanário da diocese do Porto.

«Antigamente, era comum conhecer-se, pelo menos de ouvir falar, uma ou duas dúzias de grandes obras de espiritualidade cristã. Hoje, isso já não acontece, talvez pela proliferação de fontes, com frequência de desinformação, mas mascaradas de fontes de informação. Mas os clássicos da espiritualidade cristã não desapareceram, e, talvez, nunca tenham estado tão acessíveis como agora. Mas já não são conhecidos: nem na sua existência concreta, nem, menos ainda, no seu conteúdo. Desse modo, não é fácil decidir-se por ler um ou outro dos mesmos, nem, depois de se ter elaborado e assumido tal decisão, eleger por onde começar», sublinha o prelado.

D. António Marto saúda a obra que «introduz na leitura e meditação» de textos de mestres da espiritualidade, «que expressam não só o entendimento cristão acerca do que é a vida espiritual em Jesus Cristo, mas também vivências concretas dessa mesma vida».

Cada apresentação de um autor «ajuda a superar o hiato, sempre custoso de transpor para quem não conhece as suas extremidades», entre o enquadramento histórico atual e aquele em que ele foi escrito».

«A brevidade de cada apresentação, ilustrada por uma ainda mais breve e saborosa transcrição de cada obra, suscita o desejo de saber mais e mais. Além disso, oferece chaves de leitura para a aproximação a cada clássico, ajudando o leitor a saber com o que poderá contar e, ao aproximar-se dele, adentrar-se com suficientes pistas seguras para retirar um bom proveito espiritual do mesmo», assinala.

O autor explica que cada obra começa por uma referência ao contexto histórico em que surgiu, seguindo-se os «objetivos inerentes à sua redação» e os «seus valores espirituais essenciais, mormente naquilo que os mesmos poderão comportar de mais significativo» para a atualidade.

«Sendo verdade que estas obras poderão levar a profundas mudanças nas vidas de quem as vier a ler, deixo um ulterior alerta: não as leiam senão os "aventureiros do espírito"; aqueles que não temem ser levados pelo Espírito do Senhor através das "terras desconhecidas" dos seus corações», observa Alexandre Freire Duarte.

Gregório de Nissa, Agostinho de Hipona, Bento de Núrsia, Boaventura de Bagnoregio, Juliana de Norwich, Tomás de Kempis, Inácio de Loiola, Teresa de Ávila, João da Cruz, Francisco de Sales, Blaise Pascal, Teresa de Liseux, Teilhard de Chardin, Josemaría Escrivá, Dietrich Bonhoeffer, Romano Guardini, Karl Rahner, Hans Urs von Balthasar e Gustavo Gutiérrez são alguns dos autores presentes.

Ao todo são 37 obras, divididas em três secções temporais: sécs. III-XII, XIII-XVIII e XIX-XXI. Apresentamos o excerto de um autor de cada uma destas três épocas.

 

"Tratado do amor de Deus"
Bernardo de Claraval
Alexandre Freire Duarte

In "Clássicos da espiritualidade cristã"

i) Contexto: o século XII pode ser considerado o cume da espiritualidade cristã medieval. Aquele cume, já dador de relevo ao indivíduo e aos seus sentimentos, resultante de um ponderado humanismo baseado na cultura clássica, no pensamento dos Padres da Igreja e na vitalidade dos povos germânicos já cristianizados.

ii) Objetivos: esta obra é escrita no seguimento de uma missiva sobre o mesmo tema que Bernardo (1090-1153) tinha enviado aos monges da Grande Cartuxa, em resposta a um pedido de um cardeal romano, que queria ver dirimidas duas questões essenciais. A saber: qual o motivo do ser humano amar a Deus e a medida com que se deve amar a Deus. Pode-se dizer que este é um texto de desenvolvimento da carta mencionada, mas com a diferença de, ao contrário daquela, não estar centrado somente na especificidade da vida monástica.

iii) Valores espirituais essenciais: atento a toda a cultura que começava a estar prenhe do amor cortês, Bernardo, com este texto, esboça a natureza da relação humana com o Deus que é Amor, mediante o cartografar de um progresso nas modalidades de amor. De facto, tal mapeamento, tentando suster que se deve amar a Deus por Ele mesmo e de um modo sem medida, delineia um preciso e precioso itinerário entre o amor mais elementar e o amor mais perfeito.
No amor mais básico, o sujeito ama-se de um modo natural e inato para obter ganhos egoístas para si mesmo. Ao ser tal amor depurado no contacto com os demais, converte-se, na fé, num amor mercenário e interessado a Deus, isto é, orientado ao Criador, mas tendo como razão central o desejo de recompensas pelo mesmo. Purificando-se tal motivação na relação com Deus, passa-se a amar a este, só pelo facto de Ele ser Deus, de um modo filial e desinteressado. Por fim, e graças à vivência plena do amor divino, o sujeito começa a amar universalmente de um modo puro, ou seja, sem sequer se considerar a si mesmo senão em e por Deus. Este é o amor que, realizando a inteira união da vontade humana à divina, permite a deificação do crente.
Bernardo, neste breve e eloquente texto repleto de lucidez teológica, é perfeitamente explícito: cada cristão está chamado a libertar-se progressivamente do seu amor-próprio, para poder responder, com uma cada vez maior generosidade, ao amor divino oferecido a si. Amar de um modo cada vez mais gratuito não é, para o cristão, um luxo ignorável; é a sua mais genuína vocação e, assim, a única forma de se realizar em plenitude. De facto, somente a gratuidade converte solidamente o coração, ao libertar o amor de todos os motivos inadequados a um ser criado para viver em Deus.

«Deve-se reconhecer em que medida Deus merece ser amado, ou melhor, admitir que Ele deve ser amado ilimitadamente, porque Ele nos amou primeiro, Ele, infinito, e nós, nada; Ele amou-nos, tristes pecadores, com um amor excessivo e antes de qualquer mérito nosso. É por isso que eu, no início, disse que a medida do nosso amor por Deus é a de exceder qualquer medida. Uma vez que o nosso amor é para com Deus, que é infinito e imensurável, como podemos pensar em demarcar ou limitar o amor que lhe devemos? Além disso, o nosso amor não é um dom, mas uma dívida. E já que é Deus que nos ama, Ele próprio o Ser infinito, eterno, o amor supre mo cuja grandeza não tem fim, a sabedoria infinita, a paz que ex cede todo o sentimento e todo o entendimento; pois se é Ele que nos ama, poderemos alguma vez ser mesquinhos no nosso amor por Ele? Tu, Senhor, és tudo o que eu preciso e desejo. Meu Deus e minha ajuda, eu vou amar-te com a minha força, não tanto como merecerias, mas certamente tanto quanto eu puder.»

 

"Livro da vida"
Ângela de Foligno
Alexandre Freire Duarte
In "Clássicos da espiritualidade cristã"

i) Contexto da obra: no derradeiro quartel do século XIII, a Umbria, após ter passado a fazer parte dos territórios pontifícios, via-se cindida entre aqueles que queriam estar sob a alçada do Imperador, que apoiava os «franciscanos espirituais», e os que desejavam um governo eclesial, particularmente oposto a estes.

ii) Objetivos da obra: na sua forma tradicional, que associa uma autobiografia a um conjunto disperso de instruções espirituais, pode dizer-se que este texto tem três intuitos. A saber: comunicar, de modo interpretado, o relato da transformação espiritual vivida por Ângela (c. 1248-1309); nutrir espiritualmente aqueles que a consideravam sua guia, entre os quais alguns franciscanos que terão escrito aquelas instruções; e propalar algumas das teses (espirituais) dos «franciscanos espirituais».

iii) Valores espirituais essenciais: nesta obra, embora seja o testemunho de uma vida particularmente singular, contactamos com a realidade de que a vida espiritual cristã é uma vida de contínua desapropriação. Uma vida de saída de si para se configurar com um Jesus pobre, sofredor e humilhado, que transforma em amor verdadeiro e puro todos os, por vezes mais atraentes, sucedâneos do amor. E isto porque manifesta, sobretudo numa Cruz que é apresentada como o leito nupcial entre Deus e a humanidade, a omnipotência do amor divino, bem como a seriedade do pecado humano.
Tal gradual conformação, que agrega sofrimento e consolação, levará, segundo esta cultíssima franciscana terceira, a ser-se totalmente possuído por um Cristo que, facultando o amar a Deus como Ele ama, insere o sujeito nas luzentes trevas da Trindade. A partir dessa ocorrência e inundado do indizível, o crente começa a vislumbrar todo o mundo como prenhe de Deus. Neste estado, as faculdades da alma cessam de agir de forma humana, pois o espírito é inundado da mais bela e límpida luz divina, que leva a que se superem todas as realidades criaturais – inclusive o Deus-Homem – pois passa-se a estar neste último. Eis, aqui, a metamorfose da alma em Amor, que faz admitir que Deus é sempre Amor, mesmo quando não se O sente.
Esta obra, surgindo-nos incompleta e em porções redacionais que por vezes se sobrepõem, não é de leitura fácil, e a sua radicalidade evangélica talvez não seja do agrado da sensibilidade contemporânea. Todavia, a sua espontaneidade, vivacidade e beleza, bem como a atenção aos dinamismos espirituais por parte da sua autora (que veicula a acessível ideia de que ser-se cristão é desenvolver uma autoconsciência que coincide com uma memória do sacrifício de Jesus), fazem dela uma das mais especiais obras da mística cristã.

«Nessa mesma ocasião vislumbrei uma plenitude, uma imensa majestade, que, mesmo que tentasse, não conseguiria descrever. Parecia-me que era somente Bondade. Disse-me, então, palavras imensamente doces quando se retirava; com enorme suavidade e intensa delicadeza ausentava-se lentamente. Mal desapareceu, não consegui deixar de começar a vozear e a bradar. Sem nenhuma prudência ou circunspeção humana, dei por mim a gritar e a exclamar: "Amor desconhecido! Porque te vais embora?" Não conseguia dizer mais nada além de exclamar, sem nenhuma apreensão, conforme o que antes referi: "Amor desconhecido! Porquê? Porquê?" Mas estas palavras acabavam por resultar ininteligíveis, pois brotavam misturadas pelo meio dos meus gritos. Então ausentou-se, deixando-me com a certeza, sem lugar para quaisquer dúvidas, de que era Deus. Eu bradava incessantemente com desejos de morrer, pois causava-me uma imensíssima dor permanecer com vida longe do meu Amor; era verdadeiramente como se os meus ossos se desconjuntassem.»

 

"Sementes de contemplação"
Thomas Merton
Alexandre Freire Duarte
In "Clássicos da espiritualidade cristã"

i) Contexto: nos Estados Unidos da América, o fim da década de 40 do século transato surge marcado pela transformação desse país numa das superpotências mundiais: época de progresso tecnológico, económico e do movimento «evangélico », que assumiu muito do espírito do censurado – pelo Vaticano – «americanismo».

ii) Objetivos: este texto, com um título inspirado na evangélica «Parábola do Semeador», deseja ser a partilha de um conjunto de considerações, umas vezes mais aforísticas e outras mais detalhadas, que, a partir do contexto da vida monástica do seu Autor, respondam à questão, por este tida como determinante para contrapesar o espírito materialista e bélico que dimanara da Segunda Grande Guerra, «o que é a contemplação?». No fundo, esta obra pretende ser um guia para quem, vivendo na secularidade, tem inquietações e questões sobre a vida interior.

iii) Valores espirituais essenciais: na base de tudo o que é referido neste texto – seja na sua primeira parte, em que, com uma prosa abreviada e incisiva, se descreve o que é viver aquém da união com Deus, seja na seguinte, em que, com frases mais alentadoras e práticas, se descreve como se relacionar com Ele – encontra-se a certeza de que a meta da existência humana é um estado em que não é a vontade própria, mas a de Deus, que deve ser realizada em cada ocasião.
Este estado é fruto de uma sensibilidade à graça, apenas possibilitada pela humildade, isto é, por aquela virtude que permite ao sujeito superar a sua personalidade exterior – o «falso-eu» definido por apeteceres e tendências particulares – e desvendar a sua verdadeira pessoa – o «eu-genuíno» criado, numa união com Deus, para ser inundado e metamorfoseado pelo amor divino. É esta mudança que – não levando a uma busca ansiosa pela união a Deus, mas ao desejo de se afastar da quilo que impede a vivência, consciente, de uma união que já é real – levará, segundo Merton (1915-1968), a íntegras e diligentes relações contemplativas – com os demais, com a restante Criação e com Deus – que logram a conectividade entre a oração e a vida.
Partilhando, com uma linguagem penetrante e clara, as suas descobertas pessoais acerca da vida espiritual, Merton, nesta obra, surge-nos como um mestre na apresentação, em tons modernos, dos fundamentos oracionais da vida cristã. Tal apresentação, embora não seja sistemática, é francamente coerente e coesa na sua exposição de uma espiritualidade monástica que, podendo ser como um «substrato espiritual» para os áridos terrenos em que se converteram muitos dos corações contemporâneos, tem muito a dizer a todos aqueles que desejem explorar uma perceção contemplativa da vida.

«Desapegar-se das coisas não é, como se pensa às vezes, erguer oposições artificiais entre as "coisas" e Deus, como se Deus fosse uma qualquer "coisa" que iria rivalizar com as criaturas. Nós não nos desapegamos das coisas para nos apegarmos a Deus; mas de nós mesmos para vermos tudo, e servirmo-nos de tudo, em Deus e para Ele. Muitos ascetas, sinceramente orientados para o bem, não compreenderam minimamente esta perspetiva completamente nova. Não pode existir nada de errado com o que Deus criou, e nada do que Ele criou pode impedir a nossa união com Ele. É em nós que está o verdadeiro obstáculo; isto é, na necessidade constante que temos de manter a todo o custo a nossa vontade individual e egoísta. E é quando reportamos tudo a este «eu» exterior e falso que nós separamos a realidade de Deus. Este «ego» torna-se o nosso deus e amamos tudo por amor a ele, servindo-nos, por assim dizer, de tudo para adorar a este ídolo, a este nosso imaginário e superficial "eu".»



 

SNPC
Imagem: Capa | D.R.
Publicado em 21.05.2018 | Correção da data de criação cardinalícia (antes 29 de junho) em 10.10.2023

 

Título: Clássicos da espiritualidade cristã
Autor: Alexandre Freire Duarte
Editora: Paulinas
Páginas: 136
Preço: 11,00 €
ISBN: 978-989-673-636-1

 

 
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