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Música e religião

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Música e religião

É catolicamente tradicional a crença na música como forma de expressão mais capaz de traduzir a atividade do sentimento religioso. Para alguns místicos - por exemplo para a religiosa francesa do século XVII Margarida Romanet - o sentido por excelência da via unitiva seria pois o ouvido. Diz ela: «Pode ser-se fiel sem olhos, sem olfato, sem paladar e sem tato... Basta ouvir; o ouvido é o único sentido indispensável à Esposa para agradar ao seu Esposo...» Ora nós sabemos que a Esposa é a Igreja., o corpo místico do próprio Jesus Cristo, o Salvador, o Ungido, o Filho de Deus Vivo, o Esposo.

Mais humanamente claro, pois escrevia um tratado de música, foi o nosso teórico também seiscentista - o Padre Manuel Nunes da Silva - quando na sua Arte Mínima(1685) sustenta que a música compreende todas as ciências e que bastava Deus tê-la infundido ao primeiro homem para de todas as ciências o fazer conhecedor. A tese de moral geral do nosso compatriota é fácil de resumir: Sendo a música uma ordem, melhor a boa ordem, ela destrói toda a desordem...

Talvez estas considerações pareçam a alguns contemporâneos «ingénuas» ou imbuídas do «espírito cândido e milagreiro» da sua época. Repetiriam assim Joaquim de Vasconcelos continuando um espírito científico muito tipicamente oitocentista... Mais justo foi o grande musicólogo alemão Forkel admirando o nosso Padre Nunes da Silva.

Aquele conceito da ordem que hoje em dia se diz comummente «pitagórico» é afinal o da tradição escriturística admiravelmente sintetizada no Livro da Sabedoria (11-21): «Omnia in mensura et pondere disposuisti».

Quando o cientismo moderno fala de pitagorismo reduz o seu significado histórica e. filosoficamente... Ê na Cidade de Deus a que se refere o Salmo 87 (86 da Vulgata) que em danças de roda, se cantara: «Omnes fonies mei: in fe sunt». (...)

A própria dança se rege pelos números: «...se procuras a causa motriz dos membros do próprio artista verás que está no número, visto que se movem calculadamente. E se lhe tiras das mãos a obra e do espírito a intenção de o fazer por forma a que a atividade dos seus membros não tenha «outro fim senão o prazer ou a distração, tal atividade toma então o nome de dança. Se então queres saber o que agrada na dança responder-te-á o número: Eis-me» (Santo Agostinho).

A amputação do pensamento antigo está em para-se aqui e não procurar o Criador dessa aludida ordem ou número cujo reflexo cria a verdadeira «razão de beleza», termo aliás usado para justificar quer certos empirismos musicais da Idade Média, quer práticas estéticas dos chamados povos primitivos.

Na verdade nas práticas cultuais de qualquer religião, por mais remota que ela se nos apresente no tempo ou no espaço, a música e mesmo a dança têm sempre um lugar principal. É facto que muitas dessas práticas têm sido rotuladas de mágicas, mas uma análise aprofundada dos mais rigorosos estudos das religiosidades ditas «primitivas» provam um fundo básico comum monoteísta, exprimindo-se a 'função religiosa - uso aqui o termo na aceção de tudo o que procura uma ligação com a Divindade - por uma cadeia de intermediários, geralmente assimilada à cadeia dos antepassados e, portanto, também estruturando-se segundo as instituições sociais por que se foram regendo os povos. Não há que ter medo aos termos: muita dessa magia não é mais do que um processo porventura rudimentar ou até sensualista - de provocar a união mística.

Muitos degraus tem a escada da via unitiva. Não é a música por si só que produz, cria ou desenvolve o sentido religioso. Não é o «número» dos filósofos antigos ou dos cientistas modernos a sua causa. O matemático de Leibniz (“dum Deus calculat fit mundus”) - do mesmo Leibniz que considerava a arquitetura «música, cristalizada» - é outra redução de uma realidade que nos transcende.

Por essa razão, como o notou Henri Davenson numa extraordinária obra concebida na lição de Santo Agostinho, «porque não exigiríamos um Deus músico»?. Não longe desta ideia andava o nosso compatriota acima citado, pelo seu amor à arte dos sons...

No admirável livro de Davenson o princípio da moral cristã da música, quanto à sua prática, está em não esquecer que a música se situa na ordem dos valores humanos - eu diria, generalizando, na ordem dos valores naturais.

Trata-se sempre de colocar os valores na sua devida ordem da escala permanentemente ascendente se a queremos usada utilmente. É o que diz S. João Clímaco no seu tratado “Scala Paradisi” resumido por Davenson: «Para as almas puras que amam verdadeiramente a Deus, toda a música, tanto a profana como a sagrada, condu-las naturalmente para a alegria interior, para o amor divino e para as santas lágrimas; quanto aos que amam a voluptuosidade carnal, será precisamente o contrário. Tudo é puro para os puros; o mesmo é válido para a música e para toda a espécie de beleza: o próprio da alma que se tornou perfeita é, logo ao ascender para o Criador, tirar dessa perfeição proveito para cantar a glória de Deus... Se alguém se tornou capaz de tal e constante inclinação de espírito, podem dizer que desde logo está ressuscitado incorruptível sem esperar a Ressurreição Geral.»

O difícil é distinguir a «religiosidade» pura, da paixão ou até do sensualismo. O terreno é delicado e talvez não possível de distinções extremes, visto sobre a terra não podermos adquirir os corpos gloriosos que nos são destinados na bem-aventurança eterna. Não antecipemos pois...

É, por exemplo, pela própria etimologia dos termos quando despida de sentidos analógicos, inteiramente o contrário de cristãmente -místico este pensamento de Nietzsche que define a música como única arte «capaz de dar ideia do que se deve entender por justificação do mundo enquanto fenómeno estético.» Análogas observações, apesar da aparência, se podiam fazer a propósito de Schopenhauer que pretende ser a música a única arte que fala do ser, ao passo que as outras apenas dele exprimem a sombra... Para ele o mundo tanto poderia ser «música materializada» como «vontade materializada».

Estamos bem longe das conceções antigas...

Por certo alguns antigos Padres recearam a música, mas apenas a música sensual. (...)

A escrupulosidade exagerada não é obviamente um atributo da perfeição mas com certeza impede a demasiada «elasticidade» de costumes. Periodicamente a Igreja nos vem lembrar que o seu canto litúrgico tradicional é o chamado canto gregoriano.

É lendário o caso da música polifónica religiosa, prestes a ser banida da Igreja por exageros de simplicidade, modéstia ou ascetismo, ter sido salva por Giovanni Pierluigi da Palestrina (1524-1594) com a sua missa dedicada ao efémero Papa Marcello; mas as lendas fazem-se à custa da História, quantas vezes iluminando-a e tirando dela a lição lapidar que convém fixar.

Assim sempre foi necessário acrisolar, purificar a tradição, compilá-la e fixá-la, ainda que sempre provisoriamente, por isso que a tradição é coisa vivente e portanto mutável.

Foi o que fez Santo Ambrósio em Milão (339-397) - daí o «canto ambrosiano» - e mais tarde S. Gregório Magno (papa de 590 a 604) - donde o «canto gregoriano» - cuja apologia da música religiosa - a que nos liga a Deus - Se pode ler em “Enerratio in Psalmos Davidicos”.

Toda a história bíblica está cheia de cânticos e danças. O canto dos Salmos tudo supera pois «o salmo é o louvor de Deus vez da Igreja, musical profissão de fé. O Apóstolo proibiu as mulheres de falar na Igreja, mas não de cantar... Que é pois o salmo senão o órgão das virtudes que pulsado pelo venerável profeta com o plectro do Espírito Santo espargiu na terra a doçura dos seus celestiais sons?»

Mais rigorista é S. Cirilo de Alexandria que proscreve da Igreja a música instrumental. O salmista menciona liras, cistros e outros instrumentos, porque tais instrumentos, como os sacrifícios cruentos, se admitiam na Antiga Lei mas, aos que foram reformados peio Espírito, se lhes manda cantar um cântico novo «Cantare domino canticum novum...»

S. Bernardo de Claraval (1090-1153) definiu cabalmente o que se pede ao canto religioso: «O canto deve ser cheio de gravidade; não será nem mundanal, nem demasiado rude e pobre. Deve ser suave, mas não efeminado e, ao mesmo tempo que agrada ao ouvido, deve mover os corações. Há de aliviar a tristeza, moderar a ira. Não contrariará o sentido das palavras, mas relevá-lo-á, pois não há pequena perda de graça espiritual em sermos distraídos do proveito do sentido pela beleza de canto, e em sermos levados a atentar na mera exibição vocal quando deveríamos pensar no que se canta.»

Mas o nosso propósito não é fazer a história da música religiosa nem sequer o da música litúrgica. O mais despretensiosamente que nos fosse possível quereríamos dar uma ideia de que seja a verdadeira religiosidade na música; a sua serventia e a sua grandeza, enquanto meio -entre material e espiritual, atuante na via unitiva, o caminho místico que nos deve conduzir a Deus.

Repito com S. João Clímaco: «para os puros tudo é puro»; e comento ou acrescento que, para eles, o próprio mal é meio de exercer a virtude e que a graça tem ínvios caminhos que nos não é dado perscrutar. Que o menos puro possa purificar também ou ser um degrau da tal escada do Paraíso que dá o título à obra de que citámos o passo imediatamente atrás, é o que nos não repugna a aceitar. Será o «pão partido em pequeninos» um rápido fugidio raio de luz, mas não bastará por mercê de Deus para salvar alguém? Mesmo essa música menos pura pode bem ser o .rumo que a Deus nos leve... (...)

Para rapidamente me desempenhar de parte da primeira, das minhas intenções vou arrimar-me à autoridade de Henri Davenson no livro de que já me socorri e que leva a sua excelência e bondade ao ponto de fornecer um resumo «sob forma de esquema geométrico» de tido o seu riquíssimo conteúdo.

«Como servirmo-nos da música?» Já o dissemos: Para o saber fazer «é preciso situar a música na ordem dos valores humanos». Dois erros fundamentais se nos apresentam no decorrer da história. O primeiro é o erro a que Davenson chama «romântico e gnóstico»: a música, é tomada como revelação do Absoluto, é equivalente da experiência mística. Tal erro repugna à consciência cristã, e baseia-se na ilusória confusão entre o silêncio do espírito e o «éon Silêncio, o Abismo da mitologia gnóstica.»

Outro erro é o do formalismo (como já o fora do Islamismo): toma-se a música como jogo vão, mera frivolidade, eco da beleza do mundo perecível. Quer a nossa experiência quer a realidade musical se encarregam de o refutar. Corresponde à definição setecentista da música como arte de combinar os sons por forma a agradarem ao ouvido...

Em contrapartida o augustianismo franciscano, explicitado pelos monges de Santa Catarina do Sinai, S. João Clímaco e S. Francisco de Assis, acolhe a música não se limitando a tolerá-la mas concebendo-a como meio de oração e caminho para, de dentro de nós próprios, caminharmos para Deus.

Como técnica auxiliar da vida espiritual a música, segundo Davenson, apropria-se do homem, fixa a sua atenção, liberta a consciência do seu conteúdo sensível, o que constitui o seu papel de aspeto dionisíaco - função aliás provisória e inferior. Aprofundando-se conduz a alma ao silêncio do espírito, se formos capazes de levar a experiência até às suas últimas consequências. Assim conduz a um recolhimento e a uma paz que dão à alma espiritual a possibilidade de receber uma primeira imagem da Beleza infinita. Esta aplicação da música «variará em fecundidade conforme a vocação de cada um; sob a sua forma mais elevada será uma imitação do estado angélico.»

Em quatro «exercícios de aplicação» Henri Davenson dá-nos excelentes exemplos de aplicação da teoria.

O primeiro refere-se ao «paradoxo da música ligeira»; lícita e útil para os lazeres do auditor, mas «séria» mesmo quando «ligeira», porque sempre será «imaterial» e «espiritual». Não é «triste» nem «alegre» por sua natureza: situar-se para além do alegre ou do triste.

Outro caso «resolvido» é o da «antinomia da música pura». A questão tem feito e fará correr rios de tinta. Para Davenson, o conceito é útil ao filósofo, mas a música pura por essência não deve servir para esquecer a finalidade humana da arte: Há que criar «música humana, plenamente humana que nem por sê-lo deixe de ser menos música». A conclusão agradará no que lhes é permitido... - aos mais esturrados materialistas...

A ética do compositor expõe-se no terceiro «exercício». O artista não é, como mais ou menos pretendiam os românticos, nem um deus criador nem um profeta. Artesão e operário, mas homem e não ave canora. Nunca se deverá esquecer que é sua obrigação salvaguardar a sua dignidade humana e a finalidade da sua arte.

Finalmente, como «prolegómenos a um tratado da Forma», Davenson afirma que «forma musical não deve confundir-se com o sistema de fórmulas e esquemas sonoros que não passam de meio secundário - elemento contingente e convencional da músicas.» A forma é «mais para além disso, inseparável do sentido que a obra reveste para a alma e reside na unidade interior e orgânica dessa obra». Para alguns contemporâneos qualquer obra «moderna» não pode ter sentido religioso mesmo quando a intenção do autor tivesse sido insuflá-lo na obra.

Isto levou um aliás admirável crítico e compositor português a vislumbrar na «Sinfonia de Requiem» do contemporâneo inglês Benjamin Britten... um pensamento herético! A confusão repousa na não destrinça entre música religiosa e música litúrgica, mas o nosso crítico tem talvez certa razão quando parece dar-lhe apenas valor específico quanto à sua significação humana.

Muita da pretensa religiosidade de certa música é apenas sentimentalismo ou filantropia e, repito, esse é o escolho do compositor e a pedra de toque do crítico para a separar da verdadeira religiosidade...

Têm imensa razão os que, com o crítico português, contestam em pura ortodoxia e liturgicamente, «a religiosidade da “Missa Solene” de Beethoven, a do “Requiem” de Berlioz, a da “Missa de Grau”, de Liszt, ou a do “Parsifal” de Wagner», mas não conseguem provar que «o homem moderno é um ser essencialmente profano».

Há em teorias semelhantes um catarismo exagerado mais próprio de exagerada escrupulosidade «religiosa» do que da crença na «fatalidade» histórica

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Na linha da doutrina que propusemos insere-se evidentemente - descontando o exclusivismo «profissional» — o que escreveu Beethoven a Bettina von Brentano (...): «A música é a única introdutora no mundo superior a este mundo que abraça o homem mas o homem não consegue abraçar». Com certeza tresvaria quando considera a música, em si, como «uma revelação mais alta que toda a sabedoria e toda a filosofia». Poderíamos tentar uma apologia ortodoxa do pensamento de Beethoven, mas cremos que seria forçado exercício sofístico. No entanto quero deixar honestamente a questão em aberto, citando outra vez o grande artista da “Missa Solene” que também não esqueceu “Cristo no Jardim das Oliveiras”: «Tudo o que Deus criou era puro e sem mácula. Se, mais tarde, cego pela paixão, naufraguei no mal, depois de longa expiação e de me ter purificado, voltei à fonte original pura, nobre, à Divindade e à minha arte.»

Se não podemos fazer de Beethoven um modelo de católico, no entanto, se isto não é religiosidade, então não sei o que o seja! Podemos quanto o quisermos - mas certamente sem nenhuma caridade cristã - duvidar de certas expressões, mesmo musicais, do misticismo de Liszt mas creio que não nos é lícito duvidar da sinceridade do autor da “Missa de Grau” e de “Santa Isabel Rainha da Hungria”, quando em janeiro de 1864 escrevia a um desconhecido correspondente (talvez Jules Janin, seu amigo íntimo) o seguinte: «Segui o vosso bom exemplo aproveitando também de um piedoso retiro. Durante a novena da Circuncisão, no primeiro domingo da Epifania, dois reverendos Padres Dominicanos de grande mérito fizeram uma missão na igreja paroquial da “Madona dei Rosário”, contígua ao meu domicílio como sabe. Assisti regularmente às suas pregações quotidianas, e no último domingo foi-me concedida a inefável felicidade da Comunhão. - Depois de tal começo de ano, desejo apenas que no resto dos meus dias no exílio terrestre me aproxime cada vez mais da nossa verdadeira pátria. (...)

Neste ponto da nossa exposição apenas queríamos deixar um lampejo das provas que poderiam aduzir-se para termos a certeza de que o sentimento religioso nunca andou muito alheio ao espírito da grande maioria dos máximos valores da música.

Não há que confundir, primariamente, os efeitos físicos da música com os seus efeitos espirituais, e menos com os seus efeitos finais no que deles nos interessa agora e aqui. É claro que não se deixará de ter em vista a conexão íntima entre corpo e alma. Os efeitos físicos da música são evidentes a qualquer observador de mínima atenção. Menos estudada a sua aplicação sistemática em medicina - o que não quer dizer que o assunto não tenha já uma vasta bibliografia.

Do Velho Testamento é típico o caso de David acalmando Saul, ao som da sua cítara e da sua voz. Conhecidíssimo o efeito do canto de Farinelli sobre a quase loucura de Filipe V de Espanha. A mesma melancolia depressiva - passe o termo vago que deixo aos neurologistas o trabalho de precisar - herdou-a o filho, Fernando VI, e foi ainda Farinelli que o tratou com o seu canto. Milhões de contemporâneos, conscientemente ou não, diariamente usam e abusam da música, alternadamente como calmante e como excitante. É bem provável que seja o menos contraindicado dos «tranquilizadores» e o mais benéfico dos excitantes.

O que nos interessa apenas é frisar que a música religiosa deve começar por conseguir o mais perfeito dos estados físicos propício à comunicação com Deus, em seu louvor, ou em oração impetrativa. Por isso também não confundamos o real sentido da música com a forma de expressão resultante do temperamento e da originalidade do autor ou, menos ainda, com formalismos que podem ser epocais, regionais ou modismos.

Consideremos por exemplo (por escrevermos em África) dois exemplos de música religiosa composta pelo Padre J. Kiwele, negro do Congo Belga. Oiçamos um trecho da sua “Missa Katanga” e a “Salve Regina” acompanhada a tambores. Aos que conhecem algo da música africana e ao mesmo tempo são mais ou menos familiares do canto gregoriano, a música ouvida não poderá parecer demasiado estranha. Na verdade as «escalas» da música africana estão mais próximas dos «modos» gregorianos, do que ambos da nossa tonalidade chamada «ocidental» a que nos habituou a «música clássica» e só se firmou completamente no século XVIII.

Segundo o “Motu Próprio” (1903) de S. Pio X o espírito que deve animar a música litúrgica é o da expressão do sentimento coletivo vazado em formas a que não sejam alheias santidade e bondade. À arte resultante deveria ser, pois, uma «arte verdadeira»; donde a sua universalidade.

Uma crítica fácil partiria precisamente da última palavra do período anterior e alegaria que música «africana» não é «universal». Ora o que parece chocar mais ainda do que os seus «modos» ou «escalas», do que a melódica mais ou menos estranha, são os seus ritmos acentuados e as suas síncopes exuberantes. Os processos repetir-se-ão demasiado evidentes, mas quase nada dela deixou algum dia de transparecer na música europeia e ocidental-europeia que, erradamente, consideramos «universal».

A catolicidade da liturgia recomenda-nos vivamente o canto gregoriano. Não podemos entrar em questões técnico-históricas sobre as suas origens, mas esses processos têm evidentemente que se procurar no Médio-Oriente, e isto se nos quisermos ater apenas ao período subsequente ao da Incarnação do Salvador.

É questão musicológica delicada saber se o canto litúrgico primitivo, mas já caracterizadamente cristão, era ou não acompanhado com instrumentos de percussão. Dom Jeannin era da opinião que sim. O bispo Theodoreio informa-nos que em Mileto, na Ásia Menor, «o canto dos hinos era acompanhado de palmas, movimentos rítmicos e toques de campainhas...; as intenções mais tardias... provam pelo menos a longa tolerância de tais usos. A polémica em volta do ritmo do canto gregoriano apenas fez com que se obscurecesse o sentido dos termos ligados a esta questão».

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Seria, se o pudéssemos, ocasião agora de dizer duas palavras sobre danças religiosas cristãs. Se nunca no catolicismo houve propriamente danças litúrgicas, sempre houve, e recentemente se procurou renovar, uma tradição perfeitamente lícita de dança religiosa.

Como se estabelece «esteticamente», quero dizer ao ouvido do despreconceituoso a quem não interessa o rigor técnico e histórico, a ligação entre a monódia litúrgica e a polifonia tal como veio a florescer em Dufay, Orlando de Lassus, Palestrina, Vittoria, D. Pedro de Cristo (1545-1618) ou Frei Manuel Cardoso (1571-1650) - ara não esquecer os portugueses?

Dissemos «esteticamente» e esta palavra quer dizer «por meio dos sentidos». Oiçamos, por exemplo, os “Improperia” de Palestrina para a adoração da Cruz na Semana Maior. Aqui podemos notar relíquia do canto grego — «Ágios, agíos o theos...» - canto latino ou gregoriano e polifonia sem complicações de forma, da mais alta religiosidade. Sem dúvida mais espetacular é o canto bizantino da igreja Ortodoxa.

A polifonia de um Machauit (m. 1377) não tem a doçura de contornos da de um Vittoria (1540-1613) o ibérico - além de que estes como informa o teórico Gaffurio (1541-1522) choram a cantar e são amigos do bemol. Compare-se um trecho da “Messe de Notre Dame” de Dufay, com o responsório “Tenebrae facta sunt” de Vittoria. Mas também não nos esqueçamos da diferença de séculos que separa as duas obras-primas. Continuamos a fazer análise - passe o exagero do termo - meramente estética. Ê natural que a sensibilidade tivesse evoluído, embora a finalidade fosse sempre a mesma.

Não se pede ao compositor de música religiosa ou até ao da música litúrgica - isto é destinada expressamente a atos litúrgicos fundamentais ou tradicionais - que perca a sua personalidade e individualidade ou originalidade de artista; o que é essencial é que elas se não exprimam “solipsisticamente” e procurem de facto a união da comunidade dos fiéis com a Divindade. Devem ter, afinal, as três virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade... A caridade de dar aos outros para estes entregarem a Deus o que d'Ele afinal veio.

O que nunca será critério são de reconhecimento de religiosidade na música é o de esta ser imediatamente agradável ou não ao ouvido. Nunca é demais demonstrar a inanidade da definição hedonística de música, como arte de organizar os sons por forma que satisfaçam o ouvido. Por analogia teríamos como artes irmãs da música (feita para agradar ao ouvido), a culinária (arte de agradar ao paladar), a perfumística (arte de agradar ao olfato) e outra “arte” “inominata”... de agradar ao tato! Não vou discutir o que essas técnicas possam ter de arte nem sequer atormentar os ouvintes com música que eu julgue religiosa, mas não considero mais ou menos imediatamente aceitável ao gosto médio dos que me leem.

Prefiro chegar ao século XVIII e considerar a religiosidade profunda de um trecho do “Stabat Mater» de Pergolesi, Um passo atrás no tempo e lembremos um trecho da música de Frescobaldi (1538-1643) da “Messa della Madona”.

Outro em frente e escutemos um pouco de Beethoven na sua “Missa Solene” certamente não litúrgica, mas à qual só um extremismo rigorista negará religiosidade. Dos nossos dias oiçamos um pouco do místico teatro trágico da “Jeanne d'Arc au Bûcher” de Claudel e Honneger.

E religiosidade perfeitamente litúrgica se encontra no “Padre-nosso” e na “Ave Maria” que vos quero lembrar para terminar esta descosida exposição. Talvez não seja fácil adivinhar o século a que pertence quem compôs essas páginas de ática elegância, economia de meios e... religiosidade. É um contemporâneo. Ainda vivo. Dado algum dia por o maior revolucionário musical do nosso século... Sim. Devem-se a Igor Stravinsky. Numa dialética perfeita negou Stravinsky que fosse um revolucionário. Pelo contrário: odiaria todo o “revolucionarismo”. Confessa-o na sua estupenda “Poética Musical”, em que recolheu as lições professadas pelo mestre na sua cadeira de Poética, instituída por Charles Eliot Norton na Universidade de Harvard. E será Stravinsky... religioso? Quanto à economia de meios cita ele S. Dionísio Aeropagita ou, se o quiserem, o Pseudo-Dionísio, para quem a dignidade dos anjos é também maior na hierarquia celeste quanto menor é o número de palavras de que dispõe a sua linguagem. Quanto à obra em si, diz Stravinsky que uma vez realizada se espalha para se comunicar, e reflui para o seu princípio. «O ciclo fecha-se então. E assim se nos apresenta a música como elemento de comunhão com o próximo - e com o ser». Ora o ser, em boa metafísica é, no caso sujeito, Deus.

Não vejo mal de maior que Beethoven, por exemplo, pensasse na humanidade ao escrever música religiosa. Não nos esqueçamos que o homem é ao mesmo tempo corpo e alma; não olvidemos que os exageros de pureza têm conduzido às piores aberrações - «qui veut faire l’ange fait la bête” disse lapidarmente Pascal.

E não nos esqueçamos, sobretudo, da caridade. O grande Apóstolo nos deixou a palavra de advertência: — «Como dizeis amar a Deus invisível se não amais o próximo como Sua imagem visível?»

 

José Blanc de Portugal
Brotéria (1960)
Publicado em 30.09.2014 | Atualizado em 22.04.2023

 

 
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Tudo é puro para os puros; o mesmo é válido para a música e para toda a espécie de beleza: o próprio da alma que se tornou perfeita é, logo ao ascender para o Criador, tirar dessa perfeição proveito para cantar a glória de Deus...
S. Bernardo de Claraval (1090-1153) definiu cabalmente o que se pede ao canto religioso: «O canto deve ser cheio de gravidade; não será nem mundanal, nem demasiado rude e pobre. Deve ser suave, mas não efeminado e, ao mesmo tempo que agrada ao ouvido, deve mover os corações. Há de aliviar a tristeza, moderar a ira. Não contrariará o sentido das palavras, mas relevá-lo-á
Dois erros fundamentais se nos apresentam no decorrer da história. O primeiro é o erro a que Davenson chama «romântico e gnóstico»: a música, étomada como revelação do Absoluto, é equivalente da experiência mística
O que nos interessa apenas é frisar que a música religiosa deve começar por conseguir o mais perfeito dos estados físicos propício à comunicação com Deus, em seu louvor, ou em oração impetrativa
Não se pede ao compositor de música religiosa ou até ao da música litúrgica - isto é destinada expressamente a atos litúrgicos fundamentais ou tradicionais - que perca a sua personalidade e individualidade ou originalidade de artista; o que é essencial é que elas se não exprimam “solipsisticamente” e procurem de facto a união da comunidade dos fiéis com a Divindade. Devem ter, afinal, as três virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade
Escutemos um pouco de Beethoven na sua “Missa Solene”, certamente não litúrgica, mas à qual só um extremismo rigorista negará religiosidade
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