Pensar musicalmente as celebrações natalícias presididas pelo papa dentro da reforma litúrgica que o concílio Vaticano II nos legou conduz-nos a recorrer imperativamente a um imenso repertório, o património cultural da Igreja, que precisa de ser sabiamente inserido na atual liturgia com pertinência celebrativa.
O caminho realizado nestes anos pela capela musical pontifícia Sistina conduziu-a, através do estudo e da pesquisa, à codificação de uma forma específica de cantar que pode dizer-se credivelmente pertinente em relação à grafia renascentista que encontramos nos manuscritos e nas impressões antigas presentes no fundo documental Capela Sistina conservado na Biblioteca Apostólica do Vaticano.
Esse trabalho constante levou-a, desde há três anos, a gravar em exclusivo com a célebre e prestigiada etiqueta discográfica Deutsche Grammophon, permitindo-lhe hoje oferecer nas celebrações papais um repertório musical que se liga à grande tradição que conotou esta instituição nos séculos XV e XVI, quando os melhores músicos da Europa militavam entre os seus cantores.
Procurando conjugar – e também declinar – o conceito de participação do povo com a presença de nobres segmentos da tradição cultural da Igreja, realizaram-se escolhas apropriadas para criar um processo inclusivo entre as instâncias da última reforma litúrgica e a histórica especificidade das celebrações papais.
A celebração da noite de Natal inicia-se com o canto processional “Noel”, um tradicional “carol” inglês, internacionalmente conhecido, que permitirá a participação de todos no canto da assembleia. Após o canto da calenda [indicação dos anos passados desde a ocorrência de acontecimentos relevantes na história da revelação de Deus], segue-se o intróito em canto gregoriano “Dominus dixit ad me”.
A “Missa IX, Cum jubilo”, será cantada em todas as celebrações do tempo de Natal, com a particularidade do Glória que será executado – no Natal e Epifania – em alternância entre canto gregoriano e a polifonia de Giovanni Pierluigi da Palestrina (“Messe Mantovane, Missa beatae Mariae Virginis II, Manuscrito Santa Barbara”, 1587).
Ao salmo responsorial «hoje nasceu para nós o Salvador», composto a partir do tema do gradual da noite de Natal “Tecum principium”, segue-se o Aleluia com o versículo “Evangelizo vobis gaudium magnum”, ambos de nova feitura. Também de nova feitura é a polifonia do “Credo III”.
O canto do ofertório será “Quem vidistis pastores?”, de Tommaso Ludovico da Victoria (Thomae Ludovici de Victoria, “Motecta festorum totius anni cum communi sanctorum”.
À antífona de comunhão “In splendoribus sanctorum” segue-se o tradicional canto natalício “Astro del ciel”. Após a antífona mariana “Alma redemptoris mater” decorre o canto processional para o presépio, o “Adeste fideles” na elaboração de David Hill.
Diante do presépio cantar-se-á o inevitável “Tu scendi dalle stelle”, na elaboração de Domenico De Risi, maestro da catedral de Nola, cidade onde Afonso Maria de Ligório compôs o conhecidíssimo canto natalício.
Em relação às Vésperas de 31 de dezembro com o canto do “Te Deus”, destaca-se o hino “Ave, maris stella”, cantado em alternância entre canto gregoriano e polifonia de nova feitura, o “Magnificat VIII Toni” de Giovanni Pierluigi da Palestrina, o “Te Deum” de Felice Anerio (século XVII) e o canto final, “Adeste fideles”, na apurada elaboração do compositor Bruno Bettinelli (1913-2004).
A celebração de 1 de janeiro, solenidade da Maria Santíssima Mãe de Deus, terá um canto processional de nova feitura, com o refrão composto sobre o tema do “incipit” do intróito “Salve sancta parens”. O canto de ofertório será “Beata víscera”, de William Byrd.
Sobre a solenidade da Epifania ocorre sublinhar o canto de ofertório, que será “Surge, illuminare, Hierusalem”, com coro duplo, de Giovanni Pierluigi da Palestrina, e o Santo (da “Missa cum iubilo”), alternado entre canto gregoriano e polifonia de nova feitura.
Aceitar o desafio do Vaticano II respeitante ao diálogo com a modernidade e a cultura conduz a pesquisar uma pertinência celebrativa do signo música no interior da liturgia que este concílio nos legou, e a encontrar caminhos que permitam o diálogo real com a modernidade.
O grande património cultural da Igreja permanece vivo apenas se for colocado com inteligência na atual liturgia. A fidelidade a quanto o Vaticano II nos pede hoje será então construir arquiteturas celebrativas onde coexistem novo e antigo. É um processo que exige humildade, estudo e investigação.