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Morte, vida, fé

Imagem A dúvida: Poderão estes ossos secos viver? (det.) | Henry Alexander Bowler | 1855 (exib.) | Tate Modern, Londres, Inglaterra | D.R.

Morte, vida, fé

Poucos são aqueles que encaram a morte na sua grandeza própria. Em geral, vive-se a relação com a morte de forma anedótica. As variantes são conhecidas e já foram tratadas por muitos, e por vezes sábios, autores. Mas a morte em seu sentido absoluto é fundamentalmente ignorada.

Não é incomum em filmes o realizador representar a morte – frequentemente violenta – como uma passagem abrupta de uma cena em que há luz – e a consequente imagem – a uma cena em que há total ausência de luz. Mesmo que o faça sem grande consciência do que está a realizar, tal autor anda simbolicamente perto do que está em causa e que é a vetusta relação entre o absoluto de haver ser – o meu, por exemplo – e o absoluto de não haver ser, também, por exemplo, o meu.

Ora, tal é mesmo um absoluto e é um absoluto que não diz respeito apenas ao meu ser, mas à relação com tudo o que, no meu ser e com o meu ser, é dado e a que se chama o «mundo» (há outras designações atribuídas).

Ora, o negro absoluto da cena, que dá simbolicamente o resultado da passagem do ato de vida à morte, remete para o absoluto da ausência de ser. E é precisamente isso que «morte» significa.

Não é «adormecimento», não é «passagem», não é «deperecimento», não é «falecimento», não é «ir ter com», ou qualquer outra redução da sua «realidade» de absoluto de não-realidade daquele que morre. Como diz o Poeta, «mais nada, mais nada, absolutamente mais nada».

A morte, em seu sentido absoluto, é isto e isto não se reduz, não se adocica, não se anedotiza. Há toda uma tradição de fuga à semântica profunda da morte e esta tradição é, ela própria, uma tradição de morte, pois mata o ser humano em vida, ao não lhe permitir encarar, pensar na e assumir a possibilidade da morte como absoluto. Ora, existe um termo para significar o absoluto da morte como possibilidade e como realidade; tal termo é «aniquilação».

A aniquilação significa a passagem do absoluto de ser ao absoluto de não-ser. Humanamente, do absoluto de se-ser ao absoluto de não-se-ser. Para o ser humano, a vida é este absoluto de ser, de se-ser. A morte, como aniquilação, é não apenas o absoluto de não ser, de não-se-ser, mas o absoluto de não poder mais ser.

Em termos abstratos, estas afirmações podem não fazer qualquer sentido, até porque a parte dedicada à aniquilação não tem e não pode ter qualquer relação com a – ou tradução em – experiência humana. Uma outra forma de experiência é, assim, necessária, se bem que seja, evidentemente, apenas da ordem do puramente teórico e com recurso à colaboração da imaginação científica.

Considere-se o que é o ato da nossa vida, em toda a sua plenitude presente – ao modo da descoberta de Santo Agostinho relativa ao absoluto de ato do presente. Retiremos, um a um, cada elemento do que constitui este mesmo ato de vida presente. Depois de todos eliminados, mesmo a parte que foi eliminando o restante, que terá de se eliminar a si própria, o que é que fica?

Ah! A evidência é angustiante! Nada fica, absolutamente, e a evidência final da experiência teórica realizada lança-nos em imagem perante o nada da possibilidade de nós próprios, da possibilidade do nada de nós próprios, não já como mera e longínqua perspetiva teórica, mas como aguilhão na nossa carne, no mais profundo do sentido de nós próprios, aí, onde, como Agostinho, ou encontramos Deus ou encontramos o nada; a plenitude de minha possibilidade, como providencial dom de um Deus perenemente criador de minha possibilidade, ou nada, absolutamente nada.

A fé, na sua mais profunda radicalidade, mais não é do que a pascaliana aposta em que seja Agostinho que tenha razão e que, nesse abismo interior, esteja Deus e não o nada, que a aniquilação mais não seja do que uma mera noção teórica em nós posta para que possamos apreciar em sua verdadeira grandeza isso que é o dom de possibilidade de vida sem fim. Ou, então, é tudo vão, como Paulo, desassombradamente, diz.

Se Cristo não ressuscitou, se a morte tem mesmo a última palavra, tudo é vão, toda a nossa vida é uma triste vaidade e o pó e as trevas ganham. Nada faz sentido e tem razão aquele que olha para a realidade e não vê nela sentido algum, imediatamente se suicidando.

É a sublime esperança da ressurreição de Cristo que nos mantém vivos, não a matéria que comemos e bebemos. Vivemos do e pelo sentido da fé na esperança de que haja um sentido sem fim para a nossa vida e inteligência. É este sentido que temos de agradecer à carne salvífica de Cristo, que veio fazer a experiência de mostração de que a grande vaidade não é a vida, mas vivê-la sem fé, sem esperança e sem amor.

 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 02.02.2015

 

 
Imagem A dúvida: Poderão estes ossos secos viver? | Henry Alexander Bowler | 1855 (exib.) | Tate Modern, Londres, Inglaterra | D.R.
Há toda uma tradição de fuga à semântica profunda da morte e esta tradição é, ela própria, uma tradição de morte, pois mata o ser humano em vida, ao não lhe permitir encarar, pensar na e assumir a possibilidade da morte como absoluto
É a sublime esperança da ressurreição de Cristo que nos mantém vivos, não a matéria que comemos e bebemos. Vivemos do e pelo sentido da fé na esperança de que haja um sentido sem fim para a nossa vida e inteligência
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